JOÃO MANUEL ROCHA
É talvez o historiador estrangeiro mais traduzido para português. Especialista em história colonial e militar portuguesa e lusófona, René Pélissier fala sobre a instabilidade guineense
"Um historiador não pode ler nos astros, mas não vejo estabilidade no curto prazo" na Guiné-Bissau, afirma o francês René Pélissier. Ao cabo de duas décadas, regressou a Portugal para participar no colóquio Vozes da Revolução, que decorreu nos últimos dois dias no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e Empresa (ISCTE), para falar sobre a situação militar no Leste de Angola nas vésperas da descolonização.
Em entrevista ao PÚBLICO, relacionou o poder dos militares guineenses - "parte de uma explicação global" para a instabilidade do país - com o facto de, enquanto PAICG [partido da luta pela independência]
Tem seguido os acontecimentos na Guiné-Bissau? O poder político está refém dos militares e há o narcotráfico. À luz da história do país, como devemos encarar esta instabilidade permanente?
Primeiro há que destruir o mito dos cinco séculos de colonização portuguesa na Guiné. É um erro tremendo, porque no fim da primeira metade do século XIX as posições reais portuguesas eram de
A sua tese é que a colonização portuguesa acontece, de facto, no século XX.
Deve saber que nos anos 20 não havia mais de 200 ou 300 brancos na Guiné. A influência cultural era feita maioritariamente pelos cabo-verdianos, que se impunham sobre um aglomerado de etnias muito diferentes e com problemas de antagonismo em certos casos, mormente entre os que eram islamizados e os animistas. Este parcelamento étnico é, como em quase toda a África, um problema para o nascimento de uma consciência nacional forte. Além disso, o papel dos militares na Guiné deve-se, na minha opinião, ao facto de o PAIGC ter sido a única organização que venceu militarmente um poder colonial na África Ocidental. O seu papel é talvez excessivo em relação às estruturas políticas. E quem tem as armas tem o poder. E abusa.
Essa legitimidade explica o forte poder dos militares, o qual está na origem da instabilidade dos últimos 30 anos?
É parte de uma explicação global. A divisão étnica também. A Guiné é um canto da África Ocidental para onde a maioria das populações foram empurradas pelos invasores vindos de Leste e do Norte e acabaram por fixar-se naquele espaço de território pouco agradável. O país mereceria melhor governo, mas o poder dos militares talvez seja forte de mais para garantir uma estabilidade a longo prazo.
Parece-lhe que o país ainda tem condições para alcançar a estabilização?
A curto prazo não. Um historiador não pode ler nos astros, mas eu não vejo estabilidade no curto prazo. É pena, mas é assim. O futuro é muito incerto na Guiné. Não me atrevo a prevê-lo. Não é esse o papel dos historiadores e, geralmente, quando tentam fazer conjecturas sobre o futuro enganam-se.
Sem o assassínio de Amílcar Cabral teria sido diferente?
Absolutamente. Era um homem fora do comum, conseguiu quase o impossível num país tão dividido em etnias... Ele era essencialmente, apesar de ter nascido na Guiné, um cabo-verdiano e, como sabe, os cabo-verdianos eram os agentes da colonização e, de certa maneira, da exploração dos guineenses. Não eram muito bem vistos. Não estou a apontar o dedo aos cabo-verdianos: eram mais educados porque beneficiavam de cinco séculos de colonização. Eram a única parte do antigo império africano - com as ilhas de São Tomé e Príncipe - que beneficiou dos cinco séculos de colonização e aproveitaram o facto de serem mais desenvolvidos para virem a ser agentes do poder.
Com Cabral teria sido possível manter a unidade entre Guiné e Cabo Verde?
Julgo que cedo ou tarde a situação iria desembocar numa separação política, mas podemos supor que com Cabral à cabeça do partido durante dez anos uma estrutura adaptada da estrutura da guerra teria surgido e reforçado as instituições.
As situações são diferentes, mas, 35 anos depois, constatamos que nos cinco países africanos lusófonos quem está no poder são os partidos da independência. Como entender isto? É ausência de alternativas?
Estando no poder detêm todas as possibilidades de oferecer lugares às elites. Os outros são opositores sem possibilidades financeiras endógenas. Ajuda muito estar no aparelho do Estado e julgo que vão ficar muito tempo, salvo algum imprevisto. Tem a ver com a possibilidade de distribuir riqueza.
A colonização ainda deve ser a explicação para o que se passa nesses países ou isso já não faz sentido?
Não vou incriminar a colonização para explicar a situação actual. Podia ser um bode expiatório durante, talvez, 20 anos, mas houve tantas evoluções negativas... Há um aspecto que deve ser encarado, e não apenas na colonização portuguesa, que foi a falta de preparação das elites. Mas isso já não pode ser um bode expiatório.
Especifique melhor a sua tese de que só houve colonização portuguesa no século XX.
Salvo nos corredores angolanos que vão de Luanda a Malange e em Moçambique, ao longo do Vale do Zambeze, e nas ilhas, que foram as únicas terras onde houve uma impregnação contínua durante séculos, não havia [colonização]. Uma colonização precisa de colonos. Havia nove mil portugueses em toda a Angola no início do século XX e a maioria estava em Luanda, em Moçâmedes, Huíla e em alguns portos como Novo Redondo e Ambriz. E mais nada.
PÚBLICO – 17.04.2010