As ditaduras não gostam de mim. E o desgosto é mútuo.
Aparentemente estou proclamando aquela obviedade que Nelson Rodrigues qualificava de ululante. Mas não é tanto assim. Há pessoas que exercem a ditadura com o maior prazer e o ar mais conspícuo de salvadores da pátria. E outros que a sofrem, ou a exercem em nível menor (exemplo, o guarda da esquina), como patriotas a praticar um sacrifício cívico.
Modéstia á parte, sou especialista no assunto.
Conheço as de direita, as de esquerda e as de centro. As ideológicas e as pragmáticas. As que se exercem em nome do comunismo e do fascismo e as que actuam em nome do anticomunismo e do antifascismo. Uma longa e triste experiência mostrou-me que as faces são as mesmas, e só as máscaras variam.
Sou contemporâneo do estado novo de Vargas e Felinto Mueller, que torturou Harry Berger até à loucura irrecuperável e entregou Olga Benário Prestes, grávida, aos carrascos da Alemanha nazista para ser assassinada numa câmara de gás. Sou cúmplice do movimento comunista mundial que apoiava Stalin, no mesmo momento em que ele enviava poetas para os campos de concentração, torturava e fuzilava os divergentes, inclusive um teórico brilhante como Bukharin, e mandava assassinar Trotsky no exílio.
Sim, conheço-os. Assisti aos primeiros e dantescos dias do reinado fascista de Pinochet no Chile, com os cadáveres boiando no rio Mapocho ou atrapalhando o tráfego nas ruas de Santiago. Vi
Conheço-os, sim. Na Coreia do Sul, que tem de se fingir um pouco democrata para receber ajuda dos EUA, o clima é de pesadelo. A sombra de um espião incompetente me perseguia o tempo todo, quase fazendo-me perder a paciência e a compostura para dar-lhe um murro - o que certamente teria tido consequências catastróficas para mim.
Mas o facto mais chocante - talvez por ser o mais recente - foi o de Moçambique.
Em Maputo, antiga Lourenço Marques, deveria realizar-se uma conferência de capitais de expressão portuguesa - irrealizada por causa da morte em acidente de avião do presidente Samora Machel.
Aí cheguei como representante do governo de Brasília, e o meu visto de entrada já estava assegurado através de entendimento do Itâmarati com a embaixada brasileira em Maputo.
Seria dado no aeroporto, no momento da chegada. Na realidade, com escusas infantis, retiveram meu passaporte durante 23 horas, e só o liberaram após meu protesto junto á embaixada brasileira. Eu desembarquei ali com a
maior simpatia, achando que minha pátria, no dizer de Fernando Pessoa, era a língua portuguesa e os moçambicanos, portanto, eram meus compatriotas.
Fiquei numa casa com todo o conforto, cercado de criados solícitos, mas só podia sair acompanhado de um agente do partido único, Frelimo, ou talvez da polícia. Até no interior da embaixada brasileira era seguido de perto, vigiado.
O secretário de transportes e trânsito da cidade, Felisberto Massingue, é um fascista de sólidas convicções. Fascista de esquerda, claro, pois Moçambique é uma república popular e orienta-se pelo marxismo-leninismo. Massingue, que me havia feito a apologia do partido único e criticado como anarquia política o pluripartidarismo, citando os exemplos da Itália e de Portugal, impediu até que eu me despedisse do vice-cônsul da embaixada brasileira. Acompanhou-me até à porta do apartamento dele, criando um constrangimento que tornou impossível entrar lá para cinco minutos de conversa.
Conta uma lenda moderna que dois cães se cruzaram numa fronteira do leste europeu. Questionaram-se. Um vinha da Polónia e ia à Checoslováquia para comer. O outro vinha da Checoslováquia e ia á Hungria para latir, pois hoje nesse país há muito mais liberdade do que nos demais países do socialismo real. O drama maior dos cães moçambicanos é que não podem latir nem têm o que comer.
Osvaldo PêraIva
in Folha Ilustrada, São Paulo, Outubro de 1986
NOTA:
Muito se alterou desde então. Mas dá para recordar.
Fernando Gil
MACUA DE MOÇAMBIQUE