Por Lawe Laweki*
Estando a ler o livro de Sérgio Vieira intitulado, “Participei, por isso testemunho” entristeceu-me ver como o autor, um académico de renome, escreve sobre assuntos que ouviu dizer, não se preocupando em citar fontes. O autor viveu pouco tempo em Tanzânia. A conclusão a que se chega é que tudo quanto escreveu sobre acontecimentos no seio da Frelimo que tiveram lugar naquele país no período em que esteve ausente baseia-se no “diz-se”, no “consta” e no “ouvi dizer”. E como não cita fontes, podemos mesmo concluir que andou a inventar, como adiante se verá. Acima de tudo, é a arte do sofisma, do enganar e a forma impiedosa como distorce a análise o que tem de repugnante em Sérgio Vieira.
Contando-me eu entre os moçambicanos que testemunharam acontecimentos marcantes da história da luta de Frente de Libertação de Moçambique, considero também meu dever escrever sobre o que vi. Num futuro breve publicarei um estudo mais circunstanciado sobre a minha experiência, pois cabe-me igualmente o dever de deixar aos meus filhos, aos filhos dos meus familiares e amigos, e aos de todos moçambicanos de bem uma outra versão dos acontecimentos. Se o meu contributo servir para ajudar a reinterpretar a versão oficial ou, se quisermos, a verdade oficial de que hipocritamente agora nos fala Sérgio Vieira, tanto melhor, especialmente depois de anos a fio ele, mais o regime que representa terem andado a caluniar, a ostracizar e a reprimir os demais moçambicanos que lutaram e sacrificaram as suas vidas para a independência deste país.
Barnabé Lucas Nkomo, o autor do livro, “Uria Simango, um homem, uma causa”, já desmentiu as inverdades de Sérgio Vieira em artigos publicados no jornal Canal de Moçambique, desmistificando com documentos e com o parecer da polícia tanzaniana o alegado papel do primeiro vice-presidente da Frelimo na morte de Mondlane. Num artigo intitulado “Sérgio Vieira: autor de um livro sem valor académico e moral”, que também saiu no Canal de Moçambique, o Professor Luís Benjamim Serapião da Universidade de Howard, desmistifica a versão de Sérgio Vieira sobre a União Nacional dos Estudantes Moçambicanos (UNEMO).
Pelo que me cabe, desejo desmentir as inverdades que o autor de “Participei, por isso testemunho” escreveu sobre os acontecimentos que tiveram lugar no movimento durante a luta de libertação nacional. Começo por desmentir as inverdades sobre o Padre Mateus Pinho Gwenjere e sobre o Instituto Moçambicano.
Sérgio Vieira escreve no seu livro (página 248): “Padre Mateus Pinho Gwenjere provocou agitação entre os estudantes do Instituto Moçambicano”. Isto é falso uma vez que o descontentamento reinante no seio dos estudantes datava de antes da chegada do Padre Gwenjere à Tanzânia. De acordo com a sua autobiografia, o Padre Gwenjere fugiu para Tanzânia a 14 de Junho de 1967, tendo recebido treinos militares em Nachingwea. No dia 12 de Setembro, seguiu de avião para Dar-es-Salam para no dia 1 de Novembro viajar para Nova Iorque, na companhia de Uria Simango. Nesta cidade, depôs perante o 4o. Comité das Nações Unidas. No dia 12 de Novembro encontrou-se em Nova Iorque com Roberto Kennedy e o irmão, Edward.
Duas razões ditaram a revolta estudantil, surgida antes da chegada do Padre Gwenjere:
Comparando as datas é fácil perceber que não foi o Padre Mateus Pinho Gwenjere quem provocou agitação no Instituto Moçambicano, agitação essa que se alastrou até aos princípios de 1968, altura em que este estabelecimento de ensino foi encerrado por decisão da presidência da Frelimo.
Afirma ainda Sérgio Vieira (página 248) que os estudantes pretendiam “estudar em Inglês e não em Português, porque era a língua dos colonialistas”.
Nada mais falso. Os estudantes estavam contra a decisão de não poderem prosseguir os estudos na escola internacional de Kurasini e de só poderem estudar até à 9ª Classe, após o que deveriam seguir para Nachingwea ou para o interior.
A páginas 249, Sérgio Vieira atribui aos estudantes a afirmação de que “A mulher branca de Mondlane e os professores brancos recebiam salários, tal como os médicos brancos, mas os estudantes e os soldados nada recebiam”.
Uma vez mais, o autor de “Participei, por isso testemunho” não escreveu a verdade. Efectivamente, os estudantes do Instituto Moçambicano recebiam dinheiro. A Sra. D. Janet Mondlane e o ex-deão do Instituto Moçambicano, Dr. Coloma, ambos a residir em Maputo, poderão confirmar que, semanalmente, os estudantes recebiam um subsídio. Era um subsídio razoável, que deu para fazer poupanças, ajudando-me a sobreviver durante mais de um ano no Campo de Refugiados de Rutamba e depois fugir para Nairobi para prosseguir os estudos.
Diz Sérgio Vieira (página 249) que “Os militares, com receio de que os estudantes se qualificassem e pudessem vir a dirigir o país, exigiam que durante as férias estes se submetessem ao treino militar e trabalhassem no interior, arriscando a vida, diminuindo, pois, a possibilidade de os intelectuais virem a fazer concorrência aos militares.”
Isto também é falso pois não havia divergências entre os estudantes e os militares. É incoerente afirmar-se o contrário. Afinal, foram os militares ou a direcção da Frelimo quem decidiu que os estudantes deveriam submeter-se a treinos militares e a trabalhar no interior?
Na página 249, Sérgio Vieira refere que “Mondlane e os brancos queriam que a FRELIMO se tornasse comunista, por isso trazia professores dos países comunistas.”
Novamente, Sérgio Vieira falta à verdade. Os estudantes conheciam bem quem era Mondlane e quem eram os “moleques” do Kremlin.
Na mesma página, Sérgio Vieira afirma que “Mondlane e vários membros da direcção, Marcelino, Chissano, Manave, em particular, reuniram-se com estudantes do Instituto Moçambicano que tentaram agredi-los e provocaram distúrbios, que levaram a polícia tanzaniana a intervir. A polícia, por absurdo, prendeu as vítimas, algumas vezes Chissano e o saudoso Manave”.
Isto é falso. Antes de mais, Aurélio Manave não esteve presente durante a reunião a que se refere Sérgio Vieira. A que título o enfermeiro Aurélio Manave deveria estar presente? Sérgio Vieira confunde dois incidentes diferentes que tiveram lugar em duas datas diferentes: a agressão levada a cabo por Samora Machel e Joaquim Chissano contra os estudantes do Instituto Moçambicano no dia 6 de Março de 1968 e a reunião que os estudantes do Instituto tiveram posteriormente com o Presidente Mondlane. Estiveram presentes na reunião: Mondlane, Simango, Marcelino dos Santos, o velho Nkavandame, Armando Guebuza, Mariano Matsinhe e o ex-deão, Coloma.
Dirigentes da Frelimo (Samora Machel e Joaquim Chissano), acompanhados de Aurélio Manave e Luís Arranca-Tudo, todos armados, agrediram os estudantes na noite de 6 de Março de 1968 quando Daniel Baulene Chatama agrediu um outro estudante de nome Paulino Xadreque, acusando-o de prestar informações à liderança da Frelimo. Neste incidente, Chissano não foi preso pela polícia tanzaniana, ao contrário do que alega Sérgio Vieira. Chissano assim como Samora Machel foram conduzidos à esquadra para prestarem declarações. Nunca sofreram qualquer agressão, nem da polícia, nem dos estudantes. Manave é que foi bastante maltratado pela polícia tanzaniana.
Na página 173 do seu livro, Sérgio Vieira afirma que os estudantes “decepcionados num momento porque o país não os houvesse convidado para os postos de governação, que ambicionavam, consideram-se moçambicanos na diáspora, quando a emigração não resultou de qualquer coerção imposta pela Frelimo, ou ainda menos pela Pátria independente, mas sim de uma opção voluntária de vida”.
Isto não é apenas ridículo, mas também uma afronta à permanente ansiedade dos familiares que até ainda hoje esperam pelo regresso de um filho, de um neto ou de um irmão. É, também, um insulto à memória dos que sofreram sevícias e a pena capital às mãos do regime instalado em Moçambique após a independência. Permitam-me que pergunte a Sérgio Vieira aonde é que estão os estudantes moçambicanos que regressaram a Moçambique quando a Frelimo assumiu o poder em Moçambique? Muitos desses estudantes desapareceram, sabendo-se que alguns deles foram sumariamente executados. Para além dos estudantes André Saene e João Humberto Wafinda citados no artigo supra do Professor Luís Benjamim Serapião, qual o paradeiro de António Tchade, Luís Quembo, Joaquim Nhaunga, Basílio Banda, Domingos Aníbal, Gilberto Waya, entre outros?
Alguns dos antigos estudantes moçambicanos que haviam entrado em conflito com a direcção da Frelimo durante a luta armada viriam a ser presos durante o governo de transição, desfilando depois perante a caricatura de julgamento encenada em Nachingwea pelo próprio autor de “Participei, por isso testemunho”. Sr. Sérgio Vieira: Aonde estão os Drs. João Unyai, Júlio Razão Nihia e Arcanjo Faustino Kambeu? Os familiares de todos esses e outros moçambicanos desaparecidos desejam conhecer as valas comuns para onde foram atirados os seus entes queridos por forma a prestar-lhes uma derradeira homenagem, aplacando os espíritos, conforme regem as tradições seculares do povo moçambicano.
Em 1969, depois da morte de Eduardo Mondlane, no auge da revolução moçambicana, o movimento sofreu um assalto violento. Samora Machel é catapultado para o poder pela “Terceira Força” (“moleques” do Kremlin). Guerra aos “reaccionários” foi a palavra de ordem, resultando no aniquilamento e afastamento dos filhos mais nobres da revolução moçambicana. Tudo isso graças à conivência de um amigo poderoso – Presidente Julius Nyerere de Tanzânia. A massa militante ficou “domesticada”. A maioria retraiu-se, não se manifestando por causa do medo das armas.
Entre 1969 e 1975, muitos moçambicanos foram mortos não no campo de batalha, mas pela Frelimo. Não foi Mariano Matsinhe quem admitiu numa entrevista ao semanário Savana que “era norma na Frelimo fuzilar pessoas”? Depois da independência e até a morte de Samora Machel, esta “Terceira Força” que detinha o poder real continuou a praticar graves violações dos direitos humanos. Não foi por acaso que a Sra. D. Graça Machel uma vez disse, e cito de memória: “Muitos culpam o meu marido pelos excessos que tiveram lugar durante o seu regime, mas não era ele o culpado”. Com a publicação do livro do Sérgio Vieira, ficamos a saber quem foi um dos culpados: a “agulha, que ninguém notava, mas que desapercebida ia reparando isto e aquilo [...] o bombeiro, chamado a apagar fogos, a iniciar as reconstruções…”(p. 45).
É nosso dever, dever da maioria silenciosa, dever de todos nós, principalmente aqueles que estiveram na Frelimo, contar a verdade e desmentir as inverdades. Nenhum cidadão de bem pode concordar que determinados indivíduos condicionem da pior maneira a história de um povo. Os escritos de Sérgio Vieira acabam com qualquer réstia de esperança da reconciliação da família moçambicana. Importa, pois, em nome da estabilidade, prosseguir com os esforços iniciados pelo Presidente Joaquim Chissano para uma verdadeira reconciliação do povo moçambicano.
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* Ex-estudante do Instituto Moçambicano, mais conhecido por João Baptista Truzão. Regressou ao país com o advento da democracia.
CANAL DE MOÇAMBIQUE – 28.04.2010