TRIBUNA DO EDITOR
Por Fernando Gonçalves
Desesperadamente, a Frelimo tem se desdobrado em esforços para provar que o aparelho de Estado que controla há 35 anos não está partidarizado, que não há células do partido nas instituições públicas.
De facto, a persistência de alegações de que a Frelimo dirige o Estado moçambicano como um seu apêndice significa que o assunto já não pode continuar a ser ignorado e simplesmente posto de lado como se tratando de alegações infundadas, construídas por uma oposição que nenhuma contribuição tem a dar para a construção do país.
Na última Sexta-Feira, a Frelimo fez-se valer da sua maioria parlamentar para derrotar uma moção proposta pela Renamo visando a institucionalização de uma comissão de inquérito para averiguar tais alegações. O MDM votou contra a moção por considerar que as alegações são tão óbvias que qualquer investigação seria supérflua.
Por agora, só a Frelimo acredita que o Estado moçambicano não está partidarizado. É compreensível este posicionamento defensivo. Precisamente porque as acusações são apontadas na sua direcção, a Frelimo vai fazer tudo para tentar provar que não há nenhum fundo de verdade nestas alegações. O que tacticamente aconselharia o partido a aceitar a proposta da comissão de inquérito.
Ao não aceitar, a Frelimo atingiu precisamente os objectivos contrários dos que possivelmente pretendia; admissão de culpa. A recusa em aceitar a realização do inquérito será interpretada como um passo para evitar a descoberta da verdade.
Mas em todo este debate filosófico esconde-se uma realidade que deve ser reconhecida com honestidade, o que também ajudará a encontrar as soluções mais ajustadas.
Não basta acusar, mas também não é solução recorrer-se ao comportamento de avestruz, de enterrar a cabeça.
Em princípio não deve constituir nenhum crime a existência de células do partido em qualquer organização, incluindo nas instituições públicas. A constituição de Moçambique consagra o direito à liberdade de associação, o que significa que indivíduos que se identifiquem com um determinado ideal ou causa, e que por coincidência estejam a trabalhar no mesmo local, gozam perfeitamente do direito de se juntar como um grupo organizado e fazer avançar a sua causa. Nesse sentido, qualquer partido político legalmente reconhecido em Moçambique tem o direito de ter quantas células quiser, em qualquer parte do território nacional.
O que está sendo posto em causa não é a existência de células partidárias nas instituições públicas. A verdadeira questão é o entremear que se processa entre as células da Frelimo e o funcionamento normal dos órgãos administrativos e de direcção ao nível das instituições do Estado, e o efeito pernicioso que isso produz.
É um sistema que resulta de um passado em que a Frelimo era o único partido legalmente autorizado a operar no país, e em que a lealdade ao partido era a condição para a confiança política que era necessária para se assumir cargos de direcção nas instituições públicas. Nesse ambiente, o secretário da célula local era a peça central por onde gravitava todo o processo de tomada de decisões. Os secretários e os demais membros da célula também exerciam um papel de controlo sobre até que ponto os responsáveis administrativos, estavam em sintonia com a política e os objectivos do partido no seu local de trabalho. Este sistema era extensivo até para as Forças Armadas, onde o lema era de que “os nossos oficiais têm que ser vermelhos por dentro”. “Vermelho”, bom, quando a Frelimo ainda iludia-se de ser vermelha.
A mudança de regime para um sistema multipartidário deveria ter posto fim a esta tradição. Contudo, o facto de essa mudança ter sido feita num ambiente em que a Frelimo continuou no poder, significou a continuação destas práticas até aos dias de hoje. Velhos hábitos levam tempo a morrer.
A Frelimo não tem que tentar nos convencer que as suas células nas instituições do Estado não põem em causa o normal funcionamento da máquina administração pública. O seu Secretario Geral já o confirmou em público e explicou as suas razões sobre a necessidade da existência destas células.
Só que se a Frelimo estiver na verdade empenhada em modernizar o aparelho de Estado e torná-lo cada vez mais eficiente, como vários dos seus dirigentes no governo têm repetido inúmeras vezes, terá mesmo que aceitar a importância da separação entre o Estado e o partido. É esta supremacia do partido sobre o Estado que muitas vezes cria bloqueios no processo de tomada de decisões cruciais sobre a vida do país, onde funcionários do Estado têm que tomar decisões em função dos benefícios que estas representam para a consolidação e fortificação do partido, não necessariamente em função do que tais decisões representam para o progresso da Nação.
SAVANA – 28.05.2010