Em Moçambique, onde as preocupações apresentadas na nossa introdução se fazem também sentir, uma grande maioria das línguas existentes pertence ao grupo bantu[2] e são faladas nativamente (e/ou como L2[3]) por diversas pessoas em situações de uso diversificado. Estas coabitam (desde o tempo colonial) com o Português[4], que é a língua oficial, e as línguas asiáticas (como o Gujarate, Memane, Hindi e Urdo) que são também faladas nativamente por vários moçambicanos, o que faz deste país não apenas multi-étnico, mas também multilingue e multicultural (cf. Lopes, 2004).
Estas características fazem do país um sítio potencial para a implementação do EB a quase todos os níveis. Um EB que deve ser visto como enriquecedor, tal como preconizou Machel (1979) já depois da independência do país no Seminário de 1979, conforme exposto a seguir: a Ministra da Educação (i) “sublinhou a potencial contribuição das línguas bantu no enriquecimento do Português”; e (ii) “apelou para a adopção de uma metodologia L2 no ensino da língua oficial” (Lopes, 2004:21). Todavia, a adopção de uma metodologia L2 efectiva ainda está por acontecer, decorrente de inúmeras dificuldades que o país enfrenta. O que se verifica actualmente é uma preocupação em adoptar o EB ao nível da escola primária.
Tendo em conta as diversas interpretações e as ideias sobre aquilo que pode denominar-se EB, definimo-lo de forma mais estrita como “qualquer programa educativo […] que inclua o uso e desenvolvimento sistemático de duas línguas não somente para propósitos de instrução explícita e comunicação em aula, como também para o ensino de matérias curriculares ou de conteúdo específico em ambas línguas, de acordo com a idade e o nível de escolaridade dos alunos.” (Contasse, 2004:355).
RUMO AO ENSINO DO PORTUGUÊS COMO L2 E À IMPLEMENTAÇÃO DO MODELO BILINGUE
Em Moçambique a língua portuguesa é L2[5] para a maioria da população – e há mesmo casos em que se deve considerar LE –; e a existência de falantes nativos desta língua aponta para uma pequena minoria (entre a população jovem) concentrada nas grandes cidades. Sendo assim, há esforços para a adopção do ensino do Português como L2 e implementação do EB em Moçambique. Estes esforços vêm desde a década de 70, altura em que houve abertura para a questão do bilinguismo. O primeiro reflexo destes esforços esteve nas actividades que então e mais tarde foram realizadas pela Comissão de Elaboração de Textos (CET) no Ministério da Educação e Cultura (funciona desde 1976) e pelo Instituto Nacional de Desenvolvimento da Educação (INDE) (fundada em 1980) (Lopes, 2004). Mas as dificuldades de implementação do EB e da adopção de uma metodologia L2 efectiva para o Português ficaram ainda por ultrapassar.
Para além das dificuldades que o próprio país enfrenta, como já referimos, as que se ligam ao fenómeno EB parecem ter explicação olhando para aquilo que são as pesquisas sobre o mesmo na actualidade. Como estima Baker (1979), citado por Contasse (2004:352), “a ausência de uma perspectiva histórica que aborda o EB é duplamente perigosa”; porque por um lado, não se reconhece a sua evolução desde a antiguidade[6] até actualmente e, por outro, a sua presença não é sempre interpretada dentro das raízes próprias de cada comunidade concreta, de modo a decidir dentro do amplo contexto social, cultural, político e económico em que surge o EB num determinado país ou região. Estes factores ajudam a estabelecer uma clara distinção entre os modelos de EB e decidir que modelo é aconselhável implementar. Por exemplo em Canadá o EB adoptou desde a fase inicial a fórmula dos programas de imersão e, portanto, a preferência pelos modelos de manutenção; os que assistem a estes programas pertencem principalmente a grupos maioritários cuja língua materna é o Inglês, a língua dominante do país. A língua alvo dos programas de imersão é normalmente o Francês, língua co-oficial com o Inglês; pelo contrário, os programas norte-americanos de EB têm tradicionalmente considerado iniciativas educativas de subalternização (submersão) dirigidas a comunidades sociais subordinadas ou minoritárias que provêm de famílias em que a língua predominante não é o Inglês. Aqui o modelo de transição é o preferido.
Considerando estes dois exemplos, à margem de certas semelhanças que podem existir, repara-se que a implementação do EB em grande escala deve reflectir efectivamente as circunstâncias sociolinguísticas, sócio-culturais e sócio-políticas particulares de cada país (cf. Contasse (2004)).
Tendo em conta as necessidades do país, conjugando esforços ora iniciados na década de 70, em 1993 pós-se em marcha um projectos-piloto[7] para o EB na educação primária e na alfabetização de adultos sob a utilização de línguas bantu como meio de ensino. Nestas experiências foi utilizado o modelo de ‘transição gradual’ (cf. Lopes, 1997 e 2004), o que pressupõe a utilização de uma língua bantu como meio de ensino durante as primeiras classes e posterior transição para o Português como língua de ensino nas classes mais avançadas.
PROBLEMAS DE ESCOLHA DE MODELO BILINGUE PARA MOÇAMBIQUE
Na essência, o modelo de ‘transição gradual’ proposto pelo INDE traz alguns problemas para o Português porque, a ser implementado globalmente, não daria igual oportunidade ao uso deste como língua de ensino para o número crescente de crianças que a falam como língua materna (cf. Lopes (op. cit.)). Para além de que se se tomar como base que o Português vai ser utilizado como meio de ensino nas classes mais avançadas, o modelo de ‘transição gradual’ pode vir a gerar competência empobrecida nessa língua e criar dificuldades às crianças que não têm o Português como língua materna quando forem confrontadas com outras para quem o Português é língua materna (cf. Lopes, ibid.). Outra desvantagem deste modelo prende-se com a impossibilidade de mobilidade das crianças de uma província para a outra, antes de atingirem o tempo do uso do Português.
Ademais, há que realçar que um EB ideal que tem um objectivo aditivo tem propósitos pluralísticos e não de assimilação. Encoraja a aquisição, a manutenção e o uso de todas as línguas que estão no repertório da criança para a aprendizagem e uso legítimo. Pelo contrário, o programa com perspectiva de assimilação tem normalmente propósitos subtractivos – tal é o caso do projecto-piloto proposto pelo INDE –, porque as línguas maternas, especialmente se tiverem um estatuto baixo (e as línguas bantu moçambicanas ainda têm estatuto baixo) serão substituídas pela variedade alta ou, neste caso pelo Português, o Inglês e o Francês para a instrução e aprendizagem. Objectivamente visto, com o modelo de transição, porque também de supressão, assistiríamos a não progressão escolar das crianças justamente por causa da supressão da sua L1, podendo fazer com que elas sofram consequências emocionais e cognitivos negativos (cf. Winitzky (1997)).
DOIS MODELOS EM COMPETIÇÃO
Como referimos no ponto 2 o modelo piloto introduzido em Moçambique foi o de ‘transição gardual’. Tentámos mostrar no ponto 2.1 os problemas que tal modelo levantava para a realidade moçambicana. De facto os problemas que o modelo de transição pode levantar no cômputo geral foram também vistos por Baetens Beardsmore, 1993; Collier, 1995; Cummins, 1981 e Cummins, 1984a (citados por Shameem, (2006)) em outros contextos, em relação ao Inglês, numa perspectiva de aprendizagem dos conteúdos, quando referem que “In most programmes in the Pacific, transition to English language instruction starts in the third year of primary school (Samoa) if not earlier (Fiji).” (cf. Shameem, (2006:9). Avançam que “This is an insufficient period of time for students to cognitively benefit in the long term over a wide range of learning functions” (cf. Shameem, (ibid)). Ora, se o modelo de transição em si não seria benéfico por razões apontados no ponto 2.1, então estaria longe de angariar apoio ao nível microlinguístico[8], tendo em conta as considerações destes autores. Daí que o modelo de bilinguismo inicial – para o caso de Moçambique pensamos que não se aplicaria o modelo de manutenção nos moldes referidos por Contasse (2004:355) por não ser necessariamente inicial – ora proposto por Lopes (1997), em alternativa ao de transição, encontre eco na sua plenitude. No modelo de bilinguismo inicial as crianças começariam a sua escolarização usando duas línguas (uma língua bantu e o Português – e porque não as outras de origem não bantu[9] e o Português?). Corroborando com Lopes (op cit.), as crianças usariam as duas línguas em simultâneo (de modo flexível) até a 5ª classe, altura em que o Português seria usado de modo exclusivo para o ensino, devendo as línguas bantu serem aprendidas como disciplinas curriculares, nas classes subsequentes. Sendo assim, as crianças usariam as duas línguas em todas as disciplinas curriculares durante o período proposto, devendo optar por uma só quando fossem responder a questões dos exercícios escritos (isto é, não deverão misturar as línguas num mesmo exercício). Reitere-se que as crianças deverão responder às questões da disciplina de Português em língua portuguesa e as da disciplina de língua bantu na respectiva língua; os professores deverão, neste processo, incentivar o uso do Português (não numa perspectiva de proibição de uso da língua bantu), pois duma ou doutra maneira é a língua alvo do processo.
O USO DAS LÍNGUAS BANTU NO MAIS LARGO ESPECTRO DA SOCIEDADE – CONTRIBUIÇÕES PARA O ENSINO
É importante referir que dado haver uma série de aspectos culturais, económicos, históricos e políticos relacionados directa ou indirectamente com as línguas e com o que se pode descrever como EB, é muito provável que as percepções sobre este assunto variem consideravelmente ou, em certas ocasiões pareçam contraditórias (cf. Contasse, 2004).
Por esta razão há todo um trabalho de consciencialização a ser desencadeado para o sucesso do programa. O trabalho de consciencialização pode ser feito tendo em conta os benefícios micro e macrolinguísticos[10] que podem advir do EB.
Por exemplo Lameta (1997) (citado por Shameem, (2006:8)) sugere, relativamente ao Samoa, que “bilingual education (English and Samoan medium) benefits students’ social, linguistic, cultural, cognitive and academic development but also further raises the status of Samoan, enabling vocabulary extension, which in turn, increases the domains of use and desirability of knowing Samoan for many different purposes”. Dir-se-ia que os benefícios microlinguísticos são, por exemplo, aqueles que constam em Baker (1993) onde mostra através de diversos estudos, que os bilingues, tendo a vantagem de dois sistemas linguísticos com dois conjuntos de regras de construção, são mais flexíveis e analíticos nas suas habilidades em língua. Possuem igualmente um nível de consciência metalinguística elevado do que os monolingues. Ainda sobre este assunto, Baker e Prys Jones (1998); Bialystok (1987, 1988 e 2001) referem que os bilingues são mais capazes de analisar a sua própria língua, têm alto controlo do seu processamento interno da língua, e este processo cognitivo tem um papel importante na resolução dos problemas. Igualmente, Skutnabb-Kangas (1999) aponta que as crianças em nações multilingues desenvolvem muito cedo competências em todas as suas línguas da comunidade. Estes factores podem ser tomados em conta para o fortalecimento do Português.
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[1] Veja-se, a propósito da discussão dos conceitos L1 e L2, Grosso (2005) e Ançã (2005)
[2] A reclassificação de Greenberg (cf. Heine, 1992) propôs o agrupamento das línguas africanas em quatro famílias que são: a) afro-asiática; b) família khoisan; c) família Nilo-sahariana; e d) família Níger-congo. Esta última integra de uma forma geral a sub-família bantu.
[3] Como refere Firmino, “a língua constitui um factor crucial na definição da identidade étnica” (2002: 110). Contudo, a definição de fronteiras linguísticas não significa universos de comunicação intransponíveis. Pois, geralmente os moçambicanos falam mais de uma língua autóctone, as quais podem ser reunidas em grandes grupos que favorecem a intercomunicação.
[4] No 1º Seminário Nacional sobre O Ensino do Português, realizado em Maputo em 1979, a Ministra da Educação recordou como as diferentes línguas maternas tinham resistido e sobrevivido ao longo do tempo (cf. Lopes, 2004:21)
[5] Referimo-nos aqui a L2 tendo em conta a cronologia da aquisição da língua (critério psicolinguístico). Mas o Português é também sociolinguisticamente L2, enquanto língua oficial.
[6] Makay (1978) refere que o EB data de há uns 5000 anos. Para Lewis (1977) o uso de uma língua que não era a que servia como meio de instrução formal foi um fenómeno habitual durante a expansão grega e romana. Genesse (1978) manifesta que a prática do EB se adoptou na Antiguidade porque havia muito poucas línguas com um sistema de escrita, pelo que o ensino que tinha lugar fora do território da língua escrita tinha que ser através de uma língua que não era familiar (cf. Contasse, 2004)
[7] O INDE tem vindo a experimentar o modelo de transição nas províncias de Gaza e Tete desde 1993, através de um programa financiado pelo PNUD e pelo Banco Mundial. Segundo este projecto as crianças devem aprender os conteúdos até a 3ª classe, altura que deverão mudar de língua (bantu) para o Português. Há que destacar ainda o Programa de Alfabetização Solidária em Moçambique (PASMO) de origem brasileira implementado no ano 2000 (cf. Fargetti, sd)
[8] Segundo Lopes (2004:209), em “microlinguística, que é equivalente à linguística do código, o enfoque é na descrição de qualquer sistema formal de uma determinada língua, no âmbito do chamado paradigma da fonologia-à-semântica. Assim, para os microlinguístas a tarefa principal consiste no estudo da forma da língua (…), mais ou menos no sentido articulado da langue de Saussure, competência de Chomsky e uso formal da língua (‘language usage’) de Widdowson.”
[9] O Gujarate, Memane, Hindi, Urdo e o Inglês, assim que houver condições para tal.
[10] Segundo Lopes (2004:209) “A macrolinguística, que em larga medida tem sido chamada de linguística da comunicação, compõe-se (…) de todas as descrições não só de processos da comunicação mas também de processos sociais, cognitivos e culturais no âmbito (…) de um paradigma da análise de texto-ao-discurso. Assim, o trabalho dos macrolinguístas incide principalmente no estudo das funções da língua (…), mais ou menos no sentido articulado pela competência comunicativa de Hymes, fala situada de Coulthard e uso funcional da língua (‘language use’) de Widdowson”.
- Osvaldo Guirrugo - Linguista