Um grupo de três dezenas de antigos funcionários coloniais segue uma tradição já com cinco décadas de almoçar todas as terças feiras, na baixa de Lisboa, "sem saudosismo, discriminações políticas ou de raça, e sem criticar a atual situação em São Tomé e Príncipe".
O grupo, refém da memória, vive de lembranças de uma realidade que se esfumou no tempo, unido por uma sólida ligação forjada sob o inclemente sol tropical do equador, que os tornou amigos e irmãos para sempre.
Não se importam de serem rotulados de "colonialistas" e dão ao adjetivo o sentido de "construtores de impérios", de que se orgulham. São homens honrados que tiveram uma vida árdua, paga com magros salários na administração colonial. Hoje almoçam numa tasca, em frente ao restaurante mais caro de Lisboa, o Gambrinus, onde nunca puseram os pés.
O grupo de portugueses, são-tomenses e cabo-verdianos, que durante décadas ocupou postos na administração colonial, da aeronáutica, à Fazenda, passando pela estatística ou pelas roças de cacau, encontra-se também no dia 12 de julho, para celebrar a independência de São Tomé e Príncipe.
"Perto do dia da independência de São Tomé e Príncipe fazemos o "Calulu da Independência", explica Carlos Dias, antigo administrador da Ilha do Príncipe.
Carlos Dias, o grande dinamizador do grupo, dispõe de uma memória prodigiosa, a que todos recorrem. Os seus conhecimentos tornam-no numa espécie de arquivo histórico ultramarino para o grupo.
Mas o decano dos comensais é o alentejano Vicente Cortes, 90 anos, antigo piloto da Força Aérea Portuguesa, que ouve mais do que fala.
Nestas idades, as primeiras palavras quando os membros do grupo se encontram versam sobre a saúde de cada um e das respetivas famílias. De vez em quando, fala-se em memória de algum que tenha faltado porque foi "desta para melhor!".
"Sabe, eu também sou escritora, e fiz o ano passado sozinha o Transiberiano", diz, em jeito de apresentação, a septuagenária Otilina Santos, das poucas mulheres ainda sobreviventes da tertúlia.
Otilina Santos, viúva de um grande comerciante de São Tomé, licenciou-se em filosofia depois de regressar a Portugal em 1975, é natural de Alvaiazere, está reformada e escreve livros sobre São Tomé.
Raul Cardoso recorda, por seu lado, que estudou em São Tomé até ao sétimo ano. "Todos os que exerceram funções de liderança em partidos ou no governo naquele país foram meus colegas. E desfia o rol de nomes. "Até o Fradique (de Menezes, atual Chefe de Estado) ou o Assunção (dos Anjos), atual ministro dos Negócios Estrangeiros de Angola, andaram comigo. "O Assunção, era mais novo, mas já media quase
A um canto, António Esteves, 82 anos, antigo gerente da Roça Porto Alegre, carrega no olhar uma profunda tristeza que parece não conseguir esconder.
"Trabalhei como um escravo", recorda. "Na roça, não havia folgas para ninguém, nem ao fim de semana", diz com a voz amargurada.
O professor universitário alemão Gerhard Siebert marca presença nos convívios do grupo, alimentando a sua eterna paixão pelas ilhas do Golfo da Guiné, às quais dedicou numerosos trabalhos científicos.
A convivência entre os "são-tomenses" é reforçada com pratos do arquipélago como o calulu, a banana com peixe, o feijão à moda da terra, o molho no fogo, ou búzios da terra.
Os antigos colonos são-tomenses vivem de lembranças de uma época e realidade que praticamente desapareceu mas que subsiste na memória dos sobreviventes das malhas que o império teceu.
LUSA – 09.05.2010