IGREJA CATÓLICA: AINDA A “SOLIDARIEDADE DO SILÊNCIO”?
Por: Barnabé Lucas Ncomo
REVERENDÍSSIMA PAPA, BENTO XVI
Ó, Eminência,
Eis então o nosso apelo:
O II “Sínodo Africano” dos Bispos Católicos de Outubro de 2009, na prática, acabou por “ratificar” a proposta de beatificação do primeiro presidente tanzaniano, o Sr. Julius Kambaraje Nyerere, então encaminhado ao Vaticano pela Diocese de Dar-es-Salam em Janeiro de 2005, e aceite pela Santa Sé em Maio daquele ano.
A decisão não surpreende, Reverendíssima, uma vez que pouco se podia esperar diante dum “histerismo colectivo” de servos de Cristo. Tantos foram os elogios dos clérigos em torno da figura do saudoso líder tanzaniano, que não admira que este se tenha posto a rasgar sorrisos lá nas profundezas da sua tumba. Perante o mundo, a Igreja Católica, na sua mais alta hierarquia, declara assim a sua “solidariedade” para com os métodos de repressão protagonizados pelo “proposto Santo” contra vários povos: o seu povo; o povo de Moçambique; de Zanzibar; da Nigéria; do Uganda, etc. Nyerere materializou assim o seu grande sonho quando afirmou – e nós citamos – que “desejaria acender uma vela e colocá-la no topo do monte Kilimanjaro para iluminar até além das nossas fronteiras, dando esperança aos que estão desesperados, pondo amor onde há ódio e dignidade onde há humilhação”.
Sabemos que o processo arrasta-se desde então, e que havia sido despoletado pela voz do “digníssimo” Cardeal Polycarp Pengo, arcebispo de Dar-es-Salam, em Janeiro de 2005, numa cerimónia toda ela insuspeita: aniversário do casamento do proposto Santo com a Sra. Maria Nyerere.
Reverendíssima,
Que Nyerere, aos olhos de alguns dos dignatários da Vossa Igreja naquele país, tenha vivido e morrido em comunhão com os principios da Igreja que Vossa Eminência dirige, não duvidamos. Duvidamos sim se tais princípios são, na essência, os mesmos que orientaram secularmente a Igreja Católica Romana que o mundo conhece, hoje superiormente representada por Vossa Reverendissima.
Pensamos que há que encontrar nas cabeças dos proponentes de tal canonização algo que espelhe a comunhão do “proposto Santo” com o Cristo que muitos de nós veneramos, e que tal seja suficientemente convincente a ponto da Congregação das Causas dos Santos, na Cúria Romana, poder apelidá-lo de “Servo de Deus” e beatificá-lo. Até lá, Reverendissima, as almas das vítimas do totalitarismo político protagonizado pela governação do “proposto Santo”, tanto no paraiso como no purgatório, aguardarão na santa paz ou na guerra, dependendo dos pecados de cada um e das razões que os levaram ao céu.
E seria bom que não houvesse discriminação, lá na Cúria Romana, Reverendíssima. Alias, já Deus não discrimina os seus filhos.
Uma vez que na Cúria Romana cabe à Comissão para as Causas dos Santos a dura missão de analisar o processo iniciado a nível diocesano em Dar-es-Salam, pedimos apenas que para a decisão final sejam chamados à depôr todas as almas das vítimas da governação do “Santo proposto”. Que se arrolem as almas das crianças de Biafra na Nigéria, que as armas fornecidas pelo proposto Santo ajudaram a ir “pró o céu” na década de 60. E as almas de seus pais, irmãos e avós também. E que não se esqueça, Reverendissíma, de ouvir também o ex-vice presidente de Zanzibar, senhor Abdallah Kassim Hanga, que conheceu muito bem o “Santo proposto”. Hanga tem algumas coisas a dizer sobre a sua prisão e “julgamento público” em situação de indefeso, perante o sorriso matreiro do “Santo proposto”. Alias, nós conhecemos aquele “santo sorriso” só de fotografia. Apenas imaginamos o estado espiritual em que Hanga se encontrava nas mãos dos esbirros à mando daquele Santo sorridente.
E como nisto de “tribunais humanos” as testemunhas é que fazem o juízo dos Juizes, Reverendíssima, outras figuras naquele país são de suma importância para que a decisão da Congregação para a Causa dos Santos seja justa. Solicitamos também que se arrolem para depôr os senhores Joseph Kasella-Bantu, Christopher Kassanga Tumbo, Eli Anangisye, Ndugu Choga, Ndugu Bakampenja e Ndugu Kaneno. São poucos. Certamente que os custos de passagens aéreas e estadia em Roma não superarão os custos das mordomias politicas em África, que muito precisa de dirigentes Santos como muito bem o entendeu o II Sínodo no seu documento final.
De Moçambique, bastará apenas chamar pela alma de dois outros antigos servos de Cristo, que o destino pregou uma partida. Falamos do padre Mateus Pinho Gwengere e do Rev. Uria Simango. Certamente que terão uma palavra a dizer, sobretudo no que diz respeito ao papel da polícia politica tanzaniana nos seus raptos no Kénia e Malawi. Também dirão como foram parar no céu. Mas há mais: as centenas de vítimas dos pseudo julgamentos de Nachingwea, raptadas no estrangeiro umas, presas arbitrariamente no territorio tanzaniano outras. Só que, como sabe, Reverendíssima, o custo dos per-diem para essa gente toda seria enorme para os cofres da Cúria Romana.
Existem também alguns sobreviventes do lado lusitano da história que não se importarão de depôr na Cúria Romana, Reverendíssima. Deste modo, Eminência, sugerimos apenas que chamem o português Adelino Serras Pires, que, raptado no território tanzaniano a mando da polícia política moçambicana (SNASP), teve até o privilégio de viajar de Dar-es-Salam para Maputo no jato presidencial tanzaniano, então exclusivo do “proposto Santo”. É que a missão era por demais ultra-secreta, Reverendíssima. Não ia o diado tece-las. Serras Pires e seus acompanhantes (filho, sobrinho e um amigo) “gostaram” bastante da hospitalidade a si dispensados nas masmorras da Machava e Xefina. Não duvidamos que irão facilitar o penoso trabalho da Congregação para a Causa dos Santos.
Reverendissima,
Cá, do nosso lado, já está em voga a essência do “escovismo”. “Escovistas” politicos, disfarçados em académicos nas nossas academias, vulgarizam agora os diplomas e títulos honoris causas. Que a Igreja Católica entre também na onda assusta-nos bastante. Pois, se a moda pega, não duvide, Reverendíssima, que daqui surjam também propostas de canonizações de muitos Santos. Embora os tempos da aliança da “Cruz e a Espada” em Moçambique tenha ficado para a história das “civilizações dos povos bárbaros” – nossos avós e trizavós – a então “solidariedade do silêncio” fundada em neutralidades deveras duvidosas no seio do clero por cá está ainda em pleno exercício. Apenas mudou de roupagem. Há “escovistas” por todos os cantos, e entre os servos de Cristo também. Há vezes que pensamos que Deus devia mandar um outro filho para nós salvar. Se o matassem de novo, que Deus não se cansasse de enviar mais filhos, tantos quantos fosse necessário, até que os Homens se comportem como gente.
Os criterios arrolados pelos proponentes da Igreja Católica na Tanzania para a canonização de Julius Nyerere também facilmente se encontram nos que dirigiram e dirigem o nosso país. Tal como Nyerere, aqui fala-se que houve alturas em que os dirigentes máximos do país não eram corruptos. Embora estes últimos fossem conhecidos pelas suas “saidas” públicas contra a Igreja que Vossa eminência superiormente dirige, são tidos hoje como “bonzinhos”; “libertadores da pátria e dos homens”. Diz-se ainda que na época, na solidão dos seus cantos não se cansavam de rezar a Deus e a Cristo, soluçando até de dor, por ver o povo de Deus a sofrer. De meninos, muitos desses “senhores bonzinhos” (auténticos “moiséses” conduzindo os povos de Deus para a terra prometida) foram baptizados e receberam o sacramento, o que certamente facilitará aos “escovistas de batinas” de agora, em nome do Criador supremo, perdoar-lhes os eventuais pecados, abrindo-lhes assim o caminho para a canonização. A existência de “ovelhas arrependidas”, ó, Santo Padre, é normalíssima. Aqui, algumas “ovelhas” então perdidas na embriaguês dos outros tempos, regressaram voluntariamente ao rebanho. Hoje, à eles se reserva religiosamente assentos nas partes nobres das nossas catedrais, que ocupam docilmente espiando os seus pecados. Qual pastor não ficaria feliz por uma “ovelha” recuperanda, Reverendissima?
Santo Padre, ó, Sumo Pontífice,
Vai longo o nosso apelo à consciência de Vossa Eminência e do Clero que compõe a Comissão para as Causas dos Santos. Gostariamos, Reverendissíma, de terminar sugerindo que aos membros dessa Comissão seja facultado exemplares dos escritos do tanzaniano Ludovick Simom Mwijage, The Dark Side of Nyerere’s Legacy. Embora não se trate de “verdades absolutas completas”, tais escritos são um testemunho interessante para o ajuizamento que culminará, agora, ou num futuro breve, com a canonização do Santo proposto. Vossa eminência pode, facilmente, consegui-los via internet no www.zanzanet.org/files/darkside,txt ou, por outra, pode encomendá-los já em forma de livro com o título “Nyerere, Servant of God or Unternished Tyrant?”.
Terminamos pedindo mais, Reverendissima:
1. Que Deus não se esqueça de abençoar, todos os dias, os seus servos.
2. E não se esqueça, também, de dar saúde a todos, e também a nós, os plebeus, para festejarmos, todos juntos, com alegria, a canonização do nosso saudoso Mwalimu.
3. Enquanto isso não acontece, Reverendissima, que aos plebeus não seja impedido o ir cantanto o “Santificado seja o Mwalimu Julius Kambaraje Nyerere”, e o acender de velas por cima de alguns túmulos em M’telela e noutras paragens deste vasto Moçambique, pois nem todos têm a possibilidade de chegar ao cimo do monte Kilimanjaro.
CANAL DE MOÇAMBIQUE – 26.05.2010