Escrito por João Vaz de Almada
É hoje, sexta-feira, lançado no Instituto Camões, em Maputo, o livro “Manauè e Outros Contos” da autoria do jornalista Rui Cartaxana. A obra, publicada a título póstumo – o autor faleceu há cerca de um ano – e com a chancela da editora Kaia Ka Hina, irá ser apresentada por Luís Bernardo Honwana, tendo preâmbulo do pintor Malangatana e prefácio de Francisco Noa. @ VERDADE, em conversa com este último, disseca um pouco a obra. “Ao recordar-me do quanto custava ser jornalista em Moçambique nos anos ferventes do colonialismo, digo Bayathe.”
Assim começa o pintor Malangatana o preâmbulo da obra “Manauè e Outros Contos” da autoria de Rui Cartaxana. Mais adiante acrescenta: “O teu trabalho não é ficção, e isso é uma vaidade quando nos recordamos do quanto sofreste com as pressões directas de censura, e dos grandes senhores apanhados na linha onde se sentavam e não aceitar que nós tínhamos o direito de despertar.
Os teus trabalhos foram e ainda são "despertadores". Não acaba a sua contundência no passado colonial. Estamos repletos de sequelas. Temos necessidade de vermo-nos e querermo-nos nos teus escritos contundentes.” O docente Francisco Noa, autor do prefácio, comunga da contundência destes escritos: “São muito fortes e contundentes, particularmente na denúncia do sistema colonial.
Cartaxana, apesar de ter ido para Portugal ainda antes da independência, marcou muitos de nós, sobretudo enquanto opinador na revista `Tempo`, na qual foi director.” Depois confessou: “Não conhecia o seu lado ficcionista por isso foi uma agradável surpresa.”
Intemporal e Universal
Com cerca de duzentas páginas, “Manauè e Outros Contos” é uma colectânea de 15 contos todos datados do período colonial. “Apesar de estarem bem localizados no tempo e no espaço – período colonial e zona centro de Moçambique (Cartaxana vivia à época na Beira) – Noa destaca-lhes a intemporalidade “porque há uma grande representação do ser humano, por isso possuem uma dimensão universal.
A técnica de escrita é muito evoluída, quer do ponto de vista estético, quer temático. São contos que se lêem em qualquer lado e em qualquer tempo.” Apesar de quase todos os contos terem como espaço físico Moçambique, Noa tem dificuldade em classificá-los como “contos moçambicanos”: “Esta escrita é claramente uma escrita de dois mundos. Territorializá-la como escrita moçambicana penso que não seria muito fácil, mas obviamente depende do olhar do leitor. Nota-se uma grande preocupação em representar personagens negras moçambicanas, mas sente-se, da parte do narrador, que é sempre um olhar do outro. Mas são contos com uma nítida temática sobre Moçambique, isso é claro.”
Denúncia Omnipresente
Aliás, ainda de acordo com Noa, a temática das histórias passa muito por denunciar a situação colonial. “Vê-se que é alguém que está contra o regime colonial. A questão racial está muito presente, tanto ao nível da linguagem do narrador como das personagens, a questão do preto versus branco é omnipresente. É o registo de uma sociedade claramente dividida ao meio em que uns são os dominadores e os outros os dominados.” E prossegue: “É óbvio que era do lado dos brancos, dos colonizadores, que estavam os mecanismos de sujeição, de dominação, de repressão e até de tortura. Os contos de Cartaxana representam muito bem as crueldades que eram cometidas, são histórias muito realistas, de alguém que tem um profundo conhecimento do espaço onde está inserido.”
Mas, se há um conflito, dir-se-ia quase permanente, entre colonizador e colonizado, não se vislumbra ainda qualquer tentativa de emancipação em relação ao poder instituído. “Sente-se mais um conflito personalizado.” Por toda a obra perpassa “um olhar condoído em relação às pessoas que se encontram numa condição de sujeição. Mas não há um movimento reivindicativo ou uma tomada da identificação com um movimento nacionalista.” Em relação à escolha do conto Manauè para título Noa justifica-a “talvez pela enorme tensão da história”, onde um homem branco atormenta um velho negro, tornando-o praticamente num alvo do seu tiro. “Somos envolvidos pela própria narrativa.
Talvez seja o conto onde é mais exacerbada a violência da situação colonial. Violência que é física, psicológica e mesmo moral, porque as personagens são deixadas numa situação inqualificável e a perseguição que é movida ao Manauè é animalesca. Igualmente o facto de o conto terminar sem o leitor saber se o Manauè é morto ou não, reforça todo este dramatismo.” Efectivamente, ouve-se uns tiros e o conto acaba. “É como se o autor quisesse deixar abertas todas as hipóteses, mas sobretudo mostrar a violência que não acaba.”
Assimilado, contratado, sipaio: palavras que o colonialismo levou
À pergunta porque Cartaxana ficou, na ficção, por um género literário, o conto, considerado subalterno, Noa, depois de defender que o conto, sob o ponto de vista intelectual, é o mais exigente dos géneros literários, porque apela a um grande poder de síntese, explica a opção: “Possivelmente prende-se com um melhor registo.
Terá talvez sido para apanhar melhor os fragmentos da sociedade, mas que nos remetem sempre para a totalidade, ajudando a imaginar melhor o que é o contexto global. Ele consegue isso muito bem. A opção pelo conto acaba por alinhar bem com a sua escrita. Ele possuía na revista “Tempo” uma página onde opinava e nos contos passa um pouco o espírito dessa página, tentando concentrar o máximo de informação possível. Isso é bem passado para os contos, obviamente que aqui com uma vertente mais ficcional.” Noa desvaloriza a dificuldade que os jovens de hoje poderão sentir ao ler “Manauè e Outros Contos”. “Há vocábulos completamente estranhos a um jovem dos dias de hoje como assimilado, contratado, sipaios, mas essa é a função da literatura.
A literatura é um espaço de recriação e disseminação de saberes e por isso apela sempre a novos horizontes. Por isso, nos jovens será um olhar de descoberta.” E termina: “Aristóteles dizia que a literatura é mais filosófica do que a história, porque enquanto a história se debruça sobre coisas que aconteceram, a literatura vai buscar coisas que não aconteceram mas que podiam ter acontecido, a ficção.”