O movimento que nasceu na zona do Riboque em 1974, desempenhou papel importante no processo de libertação do país. Filinto Costa Alegre, um dos jovens são-tomenses que liderou o movimento de massas, garante que foi a Associação Cívica quem pôs em causa o regime colonial no país, ao contrário da Frente Popular Livre que defendia uma federação com Portugal.
Téla Nón – Como é que nasce essa organização cívica?
FILINTO Costa Alegre - Isso remete-nos para décadas atrás quando estávamos na casa dos 20 anos. O que se passou é que o MLSTP, não foi capaz de estabelecer células com verdadeira capacidade mobilizadora no país. Quando se deu o 25 de Abril de 1974, sentiu-se que havia necessidade de lançar a luta principalmente na componente de mobilização popular. Então a direcção do MLSTP que se encontrava em Libreville, e outros militantes que estavam em Portugal, figuras como Pinto da Costa, Miguel Trovoada, Guadalupe Ceita, Gastão Torres, Pedro Umbelina, eram pessoas que compunham o bureau político do MLSTP. Cá internamente haviam pessoas como meu pai Norberto Costa Alegre, Quintero Aguiar, Francisco Diogo, Pedro Gomes, Dona Alda do Espírito Santo e outros. E havia nós os mais jovens enquanto estudantes do liceu, que já constituía um quebra-cabeças para os professores. Era a luta da emancipação dos negros nos Estados Unidos. Ouvíamos o programa Angola Combatente do MPLP, e então as emissões radiofónicas do MLSTP que era feita de Acra-Gana e depois de Libreville. Fomos para Portugal estudar. E quando se deu o 24 de Abril regressamos a São Tomé, para divulgar as ideias da libertação e da independência que o MLSTP estava a preparar, exigir que o MLSTP fosse reconhecido como representante da luta pela independência. Criamos então essa Associação de massas designada Associação Cívica.
FCL – Tive a honra de ser o primeiro estudante são-tomense a regressar. No entanto nesta altura já havia uma Frente Popular Livre, que era uma organização mais virada para a celebração de uma federação com Portugal. Não queriam a independência. Eles advogavam contra o ideário do MLSTP, e depois contra o ideário da Cívica. Queriam claramente uma federação com Portugal. Foi numa tarde de sábado em Junho de 1974 no salão que se chamava ar e vento que nós criamos a Associação Cívica. Mas antes disso tinha havido um longo processo de mobilização dos trabalhadores agrícolas. Fomos nós que nesse trabalho de mobilização e esclarecimento levamos a esses trabalhadores algum pensamento de liberdade que serviu para que eles passassem a incorporar a luta.
TN – Tarefa difícil tendo em conta a presença ainda das forças de segurança portugueses no terreno
FCL – Olha tinha havido o 25 de Abril mas a liberdade era formal. Tínhamos que trabalhar as mentes porque independência nunca seria uma dádiva dos colonos. Por isso tomamos como alvo as grandes concentrações de trabalhadores. Para além das roças actuamos nas antigas obras públicas, as alfândegas. A famosa frase da altura era independência total, “Sá cuá cu povo mêssê”. Portanto queríamos a nossa independência total e imediata. E quando começaram as movimentações eles fizeram vir de Angola uma companhia de comandos. Os trabalhadores tinham-se revoltado nas roças. Foi a partir da mobilização feita pela Associação Cívica é que se põe em causa o regime colonial. Então houve diversos conflitos. Fizeram vir um novo Governador chamado de alto-comissário, com ele chegaram os fuzileiros para nos intimidar.
TN – Houve detenções?
FCL – Alguns de nós foram detidos. Eu pessoalmente em alguns momentos fui convocado pela polícia. Éramos ameaçados, apontavam-nos armas e diziam que iam dar cabo de nós. Mas naquela altura com o fulgor da juventude achávamos que sem a liberdade a nossa vida valia pouco.
TN – Mas a unidade no seio do movimento de libertação foi frágil.
FCL – De facto em Março de 1975 há mesmo uma cisão no seio das então forças do movimento de libertação. Era um verdadeiro movimento
TN – São Divergências e Clivagens que por sinal corroíam o movimento de libertação antes mesmo da independência.
FCL – No seio do bureau político do MLSTP, antes mesmo de 1974 havia uma situação bastante desagradável neste aspecto. Constante intrigas, mas pensamos que era devido a falta de preocupação com as questões de resolução dos problemas dos são-tomenses.
A cisão maior no seio do MLSTP aconteceu do conflito com a Cívica. Porque no seio do bureau político de então uns ficaram conotados com a Cívica e outros ficaram conotados com os politicamente correctos. Então o doutor Guadalupe de Ceita, o Doutor Gastão Torres e o engenheiro Pedro Umbelina ficaram conotados com o eixo do mal, que era a associação cívica. Mas as cisões não ficaram por aí. A incapacidade de resolver os problemas do país, prisões arbitrárias que depois desemboca em 1990 no movimento de mudança que também acaba por não mudar nada.
TN – O grupo dos jovens estudantes que formaram a Associação Cívica tiveram depois que exilar-se.
FCL – Havia mesmo a intenção da Direcção do MLSTP em libertar-se de nós e ficar com o poder todo para si. Em Março de 1975 fomos todos forçados a abandonar o país.
TN – Mas porquê?
FCL – Porque aquele embrião do exército começou a ser utilizado contra nós. Prenderam nossos elementos. Éramos perseguidos sistematicamente pelos militares que barravam as viaturas onde seguia-mos, e depois uma série de boatos que puseram a circular naquele momento. Porque a situação que se vive hoje, foi lançada desde aquele momento. Tornamo-nos os inimigos do povo. Todos os males de São Tomé e Príncipe, estavam simbolizados em nós. Era a mensagem que a Direcção do MLSTP na altura fazia passar. Criou-se uma situação em que os nossos pais acharam que estávamos em perigo e que era melhorar sairmos do país. Todos tivemos que sair. E então espalhamo-nos por Moçambique, Angola, etc. E mesmo nestes países continuamos a ser perseguidos. Por exemplo o grupo que estava em Moçambique durante mais de um era impedido de trabalhar porque o MLSTP escreveu a FRELIMO; dizendo que não deviam aceitar-nos em Moçambique etc. E mesmo se não fomos expulsos, foi porque tínhamos boas relações com alguns elementos influentes da FRELIMO , e também porque a Dona Alda do Espírito Santo escreveu uma carta ao seu grande amigo da Frelimo que era o senhor Marcelino Santos, pedindo-lhe o favor de não nos expulsar , porque não tínhamos feito nada de mal, e que não justifica tomar essas medidas contra nós.
TN – Mas a associação Cívica é muito criticada pelo facto de alegadamente ter mandado queimar produtos alimentares, lojas etc.
FCL – Isto é absolutamente falso. É a tal ideia que a direcção do MLSTP havia mandado por a circular contra a Associação Cívica. Olha por exemplo nós é que construímos onde o MLSTP tem a sua sede no Riboque. Aquele edifício foi construído com mobilização popular. Cada pessoa que tivesse um saco de cimento, um ferro, um bloco levava para construir a sede da Associação Cívica naquele espaço. Mas logo a seguir a direcção do MLSTP pôs a circular que estávamos a construir aquilo com um subterrâneo para torturar as pessoas e tudo mais.
O que se passou em
E eles viam que os comerciantes estavam a esconder os produtos. Em consequência uma vez a população revoltou veio para a cidade, retiravam os sacos de arroz, açúcar etc, traziam para a rua e rasgavam os sacos para mostrar as pessoas que haviam esses produtos e que estavam a ser escondidos pelos colonialistas. Fomos informados da situação de revolta e viemos a praça e interpusemo-nos entre os fuzileiros militares colonos e do outro lado a população. Falamos a população e dissemos que não era essa a luta da Associação Cívica. E as pessoas obedeceram e saíram das ruas. A praça estava inundada de militares portugueses armados. Mas esses casos nunca são contados.
Outra questão que muita gente sobretudo os nacionais que tinham muito mais posse, aborreceram com a Associação Cívica, é que a dada altura os portugueses queriam ir-se embora e pretendiam vender os seus bens. Nós a Associação Cívica, tomamos a decisão difícil de dizer as pessoas para não comprarem esses bens. Se os colonos queriam ir-se embora que fossem e que nós encontraríamos uma melhor de administrar esses bens. Isso caiu muito mal as pessoas que tinham mais posse que iam beneficiar desse maná. Mas temos a consciência que trabalhamos com a melhor das vontades. No entanto é natural que tenha havido excessos, sobretudo nas roças. Mas nunca a partir da Associação Cívica.
TN – Passados 35 anos, não está arrependido pela luta que travou em 1974?
FCL – Não. Muito longe disso. Só as pessoas que não conheceram ou que não viveram o regime colonial, o que ele significou de humilhação, de violência, é que pode alguma vez questionar a independência. A luta continua, a luta continua. Agora conhecemos melhor o nosso país. Temos mais quadros, temos um ambiente que permite expormos as nossas desavenças, e portanto estamos em condições de continuar a lutar por um São Tomé e Príncipe melhor.
Eu estaria arrependido se realmente estivessem bloqueadas todas as possibilidades de alterar a situação. Não é o caso. Estamos no período eleitoral e vê que é uma mascarada. Uma compra desenfreada de consciências, não se discute o país. Mas por outro lado nem toda gente está envolvida nesta forma de delapidação do nosso património colectivo. Mas tome o pulsar da sociedade nas organizações não governamentais e verifica que há um potencial a explorar. Mas com o crescimento da contestação e da reivindicação, mas cedo do que tarde vai haver a inversão do processo.
TN – Então acredita num futuro promissor.
Por um lado o que ressalta é a nossa capacidade colectiva de nos congregarmos em torno de um ideal, e disponibilizarmos as disponibilidades e as vontades para concretizar este ideal. Mas por outro lado estes 35 anos intensamente vividos não são completamente inúteis. Há aspectos bastante positivos. Só o facto de eu estar a dar esta entrevista e em termos em que estou a dar revela que alguma coisa se tem feito. Só que tem-se falhado de forma rotunda no que toca a realização dos ideais que nortearam esta nossa participação desde a primeira hora.
Téla Nón – 12.07.2010