MARCO DO CORREIO
Por Machado da Graça
Meu caro Luís
Como vai a tua vida? Do meu lado tudo bem, felizmente.
Mas estou preocupado. Bastante preocupado, mesmo.
E estou preocupado por causa de uma notícia que li ontem no mediaFAX.
Segundo ela, Moçambique e Angola vão reforçar as forças de paz da União Africana na Somália.
E porque é que me preocupa esta notícia se Moçambique já participou, e de forma exemplar, em outras missões de manutenção da paz, no passado.
A razão é que esta não é uma missão de manutenção da paz como as outras. Neste caso os militares têm como missão não só manter a paz mas também impô-la. Isto é, os nossos militares não irão para um país em paz ajudar a que essa paz se mantenha.
Vão para um país em guerra participar dessa guerra para impor a paz.
A mesma notícia informa que, segundo um porta-voz do Exército ugandês, a força multinacional “ poderá, doravante, atacar de maneira preventiva os insurgentes islamitas shebab na Somália, nos termos das novas regras de engajamento”.
Isto é, as tropas da União Africana, que até aqui só podiam abrir fogo se fossem atacadas, podem agora tomar a iniciativa nos combates.
Ora tudo isto me diz que, a ser verdade a notícia, estamos a entrar num vespeiro e arriscamo-nos a sair de lá magoados.
Magoados a sério.
O nosso Governo ainda não deu, publicamente, nenhuma informação sobre essa possível participação de moçambicanos no conflito somaliano. Penso que seria importante, e urgente, que o fizesse, para todos podermos avaliar até que ponto a decisão é correcta, bem pensada e segura.
E, quando falo em segurança, estou a falar, em primeiro lugar, dos soldados que possam ser enviados para a Somália. Diz um antigo provérbio que quem vai à guerra dá e leva.
Mas, por outro lado, a questão da segurança pode passar a dizer respeito também a todos os moçambicanos. Pode começar a colocar-se dentro das nossas próprias fronteiras.
Os recentes atentados mortíferos em Kampala mostram que este tipo de conflito facilmente transborda das fronteiras e vai rebentar, por vezes, bem longe.
A guerra na Somália tem uma importante componente religiosa. O inimigo que os militares vão combater, o Shebab, é um movimento islamita, ligado à rede Al-Qaeda.
Portanto, Moçambique não irá combater num ponto muito localizado do mapa de África. Vai entrar em confronto com uma rede que ataca em qualquer parte do mundo, com a violência que tivemos ocasião de assistir na destruição das Torres Gémeas.
Podes-me dizer que Angola corre os mesmos riscos e também vai mandar tropas, a ser verdade a notícia.
E eu respondo sim e não.
Sim porque, como digo acima, este inimigo ataca em qualquer parte.
Não, porque as condições são muito diferentes em Angola e Moçambique. O conflito tem uma componente religiosa muito forte, à volta do islamismo. Ora Angola praticamente não tem cidadãos que professem o islamismo, enquanto Moçambique tem uma muito alta percentagem de islâmicos. E, no momento da verdade, nem sempre é fácil a uma pessoa escolher entre a fidelidade ao seu país e a fidelidade à sua religião. Principalmente se ele estiver a combater noutro país, numa guerra que só lhe diz respeito de forma bastante distante.
Por outro lado, Angola está na costa atlântica, a muitos milhares de quilómetros da Somália, ao passo que Moçambique, não sendo vizinho porta-com-porta, está claramente no mesmo bairro.
Sempre que as nossas autoridades referem a captura de imigrantes ilegais, entrados no país, constam da lista cidadãos somalis.
É por tudo isto, Luís, que eu estou preocupado.
Não tenho uma posição sobre se a decisão é correcta ou errada. Espero que as nossas autoridades nos esclareçam sobre as razões que a ela levaram, para depois tomar posição.
E terão que ser razões muito fortes para passarem por cima de todas estas questões que aqui te expus.
Um abraço para ti do
Machado da Graça
CORREIO DA MANHÃ – 30.07.2010