Da Constituição da República
- Miguel Mabote é um balão de ensaio
Por Armando Nenane
A caminho de mais uma revisão da Constituição da República de Moçambique, o jurista Custódio Duma analisa, em entrevista ao SAVANA, os cenários da coisa. Denuncia o surgimento de tentáculos da revisão constitucional, aqueles balões de ensaio como Miguel Mabote, presidente do Partido Trabalhista, que vão surgindo, amiúde, para medir a pulsação da opinião pública a favor do partido no poder. Duma, defensor acérrimo dos direitos humanos, não duvida que a Frelimo tende para o exercício de um poder absoluto. Segue-se a entrevista.
A Frelimo está a auscultar sensibilidades com vista à revisão da Constituição da República de Moçambique. Como encara este momento?
Acho que sempre temos que partir do ponto de vista legal. É um mandato que a Constituição determina. É bom que assim seja. Há determinadas matérias que de momento a momento precisam de ser revistas. É um exercício legítimo para adequar a Constituição ao contexto actual. Todas as leis devem seguir a Constituição. Se estiver desajustada, as outras leis também estarão desajustadas. É legítimo. A Constituição não é uma lei pequena, é mãe de todo o ordenamento jurídico. Mas, por outro lado, há limites, materiais e formais, que visam proteger que essa revisão não seja a bel-prazer de quem entender fazê-la. Deve reflectir a vontade dos moçambicanos, protegendo os direitos fundamentais dos cidadãos. São necessários dois terços para que isso aconteça. São limites formais para que não haja um pequeno grupo a fazer isso.
Fora as questões de ordem formal, o que lhe oferece dizer, olhando para o contexto político actual?
Olho e vejo dois cenários importantes. Se os deputados da Frelimo enveredarem pelos conhecimentos jurídicos que têm, pela lealdade ao Estado de Direito, teremos uma Constituição que representa as necessidades do país. Se puderem se despir da lealdade política, teremos uma revisão representativa. Mas há outra hipótese, que é a de fazerem uma revisão que serve aos interesses do partido em nome do respeito pela disciplina partidária. Ora, não existe nenhuma proibição legal para que isso aconteça, porque o partido têm a maioria no parlamento.
Quais são os grandes riscos da opção pela disciplina partidária?
As grandes preocupações dos cidadãos são as garantias fundamentais, a imobilidade das correspondências, os segredos, o recurso aos tribunais, a liberdade de reunião, os direitos à greve e à manifestação. Foi para proteger estes direitos que a Constituição surgiu. A separação de poderes é a segunda preocupação. Qual será a definição dos órgãos. A separação de poderes implica que o parlamento tenha autonomia, assim como o governo e o judiciário. Depois, o tipo de governo, se parlamentar, presidencial, semi-presidencial, entre outros modelos. As formalidades, se o presidente é eleito, depois os mandatos. Os mandatos são importantes, pois pode sobressair a possibilidade de outros candidatos concorrerem. Depois, a questão, se calhar menos relevante, dos símbolos nacionais.
Qual é a tendência da revisão na sua óptica?
É complicado especular agora. Se os deputados quiserem vão mandar o Presidente para mais um mandato. Ou então decidirem que passe a ter 10 mandatos. Podem fazer isso sem ninguém poder fazer nada contra. Eles têm a maioria no parlamento. Sobre o sistema de governo, também podem fazer, mas tem que ser por via de uma auscultação pública.
Miguel Mabote, do PT, “representante oficial da oposição”, lançou a ideia da adopção de um sistema parlamentar, em que o PR é eleito pelo parlamento…
Os balões de ensaio sempre existiram e esse indivíduo é um deles. Desde quando propuseram um terceiro mandato para Guebuza, começaram a surgir balões de ensaio. Mabote é um tentáculo da Frelimo. Através dos seus tentáculos, que são tantos, a Frelimo está a tentar ver se é momento certo para avançar com certas decisões, algumas das quais podem custar muito aos moçambicanos. Mesmo a nível dos artigos na imprensa, dos debates nas rádios e na internet, nota-se que a intenção é medir a pulsação da opinião pública. Os cidadãos não podem fazer nada, senão consumir tudo.
A Frelimo pode fazer o que entender…
O legislador pensava que os dois terços eram representativos, que neles caberiam os partidos políticos e que não seriam absorvidos por um único partido, para o bem da democracia. Em democracia, se o povo não decide, os escolhidos vão escolher por todos. Só através da participação política é que se reverte o cenário.
De que depende a participação política?
Depende do fortalecimento dos partidos políticos, das instituições da sociedade civil, entre outros. Mas neste momento os partidos políticos estão numa situação obsoleta. Estão mais preocupados com agendas de sobrevivência como partidos e não como instrumentos de oposição. Não têm uma agenda própria e tendem a transformar-se em tentáculos de um partido maior, num cenário em que um grande partido domina todos os espaços.
Há saídas?
A menos que surjam partidos novos para renovar a situação. Mas também passa pela capacidade de todos os moçambicanos perceberem a necessidade de participarem na vida política do país, não pela via da repetição do discurso político do dia, do discurso da auto-estima, entre outros. Há necessidade de um levantamento de consciência, não partidária, mas em termos de cultura de cidadania.
A tendência é o partido assumir maior prepotência?
Estamos numa situação em que caminhamos para um maior engrandecimento do partido Frelimo. Isso é notável pelos grandes discursos que têm acontecido, as campanhas de presidência aberta, as chamas da unidade, relembrando o papel histórico do partido. Tudo isso é um engrandecimento absoluto do partido. Mariano Matsinhe mostrou, em entrevista recente à STV, que a Frelimo é e quer ser superpoderosa. Há um elevado nível de clientelismo por causa disso, a grande parte dos jovens não acredita que pode se realizar fora do partido, não acredita em si própria fora do partido. Isso é fruto de como as coisas são colocadas. Nos debates, as pessoas têm receio de serem conotas, não dizem as verdades, não criticam. Este cenário não é bom e têm como consequência a destruição de todo um Estado de Direito, que passa a ser autoritário e ditador. Isso é perigoso, pois quanto menos liberdade de participação as pessoas tiverem, procurando outras formas menos ortodoxas.
Há quem diga que o caso da Beira também é uma demonstração de poder da Frelimo.
É mais uma forma de ditadura do mais forte. Só o facto de o processo não ter chegado ao Supremo, não ter tido efeito suspensivo, é sinal de ditadura. O Daviz Simango reclama com as garantias constitucionais, mas mesmo assim a decisão do tribunal só tem efeito devolutivo. O direito é cristalino, não pode deixar zonas nebulosas, de penumbra, tal como está a acontecer na Beira. Quem não entende a decisão do tribunal, tem que ser explicado. O juiz explica a sentença ao réu porque o réu não é jurista. Tende a se instalar um clima de medo, é preciso pensar duas vezes antes de intentar uma acção contra a Frelimo.
SAVANA – 06.08.2010