Por Armando Nenane
O partido Frelimo, no poder há 35 anos em Moçambique, está num avançado processo de alienação do edifício onde funciona o histórico Museu da Revolução, actualmente em processo de reabilitação. Ao que o SAVANA apurou, o processo sinuoso corre os seus trâmites “legais” na Administração do Parque Imobiliário do Estado (APIE).
Contudo, o dossier de alienação está a suscitar os mais variados comentários na praça pública, com certos sectores da sociedade a não compreenderem como é que um museu que conta a história da Revolução moçambicana pode pertencer a um partido político e não ao Estado. Mais ainda, há quem entenda que tudo faz parte de uma mesma novela em que grande parte do património do Estado está, supostamente, a ser saqueada pelo partido Frelimo.
Recorde-se que no município da cidade da Beira estão em disputa 17 edifícios municipais que a Frelimo reclama serem seus. Mas tais edifícios foram sempre usados pelo Município da Beira para desenvolver a prestação de serviços municipais nos diferentes bairros da autarquia, mesmo na altura em que a Frelimo estava no poder naquele ponto do país.
Duas décadas após a entrada em vigor do multipartidarismo em Moçambique, fundamentado em princípios de um Estado de Direito e Democrático, o partido Frelimo parece estar, nos últimos tempos, a desdobrar-se em esforços descomunais para ver restabelecida a velha ordem monopartidária, onde o património do Estado era ao mesmo tempo pertença do partido único, segundo constatam alguns analistas.
Depois do polémico escândalo em que a Frelimo tomou, de forma pouco criteriosa, embora por via das instancias judiciais, as 17 sedes distritais e de bairro do município da cidade da Beira, ora em poder do Movimento Democrático de Moçambique (MDM), a novela continua, com novos capítulos que prometem fazer correr muito mais tinta. Agora, o partido Frelimo encontra-se seriamente envolvido num processo pouco claro com vista à compra das instalações do Museu da Revolução de Moçambique, o que, a acontecer, seria não mais que a consumação de uma investida que vem sendo contestada em certos circuitos ligados ao processo de reconstituição da memória colectiva nacional.
Academia
No seio da academia, poucos concordam com o processo, enquanto que a nível político, os partidos da oposição destacam que a história de Moçambique não pode ficar refém de uma única formação política.
Situado em plena Avenida 24 de Julho, em frente ao Jardim dos Madgermanes, o Museu da Revolução tem como foco essencial a história da independência do país, sendo visitado por estudantes, académicos e público em geral. Está organizado cronologicamente e pode ser visitado em quatro pisos.
É naquele museu que se pode ver a estratégia da Frente de Libertação de Moçambique – referimo-nos ao movimento e não ao partido – no primeiro ataque armado a Chai. Podem ser vistas, também, as armas utilizadas pelos portugueses e o carro utilizado por Eduardo Mondlane, o primeiro líder do movimento revolucionário.
Comité-Central
Embora o museu seja gerido pelo sector de aprovisionamento do Comité Central do partido Frelimo há bastante tempo, somente agora é que esta formação política decidiu comprá-lo, um facto que vem reacender uma polémica antiga no seio da crítica. Há sectores que não compreendem como é que um museu, que conta a história da revolução moçambicana, tem que pertencer a um partido político e não ao Estado, como um bem público.
Porém, segundo apurou a nossa reportagem, a política nacional dos museus não impede que uma entidade privada seja proprietária de um museu, mas o que está em causa é se a história da revolução moçambicana pode ser propriedade de um privado, neste caso, um partido político.
“Os museus privados são para servir interesses privados, como o caso, por exemplo, da Casa Museu José Craveirinha, ao contrário do que seria um museu para a história da independência de Moçambique”, sublinhou uma fonte abalizada que não quis ser identificada.
O Museu da Revolução deverá ser integrado no património histórico do partido Frelimo e será gerido pela Fundação 25 de Junho, liderada pela antiga Primeira-ministra de Moçambique, Luísa Diogo. Esta fundação tem como principal objectivo conservar todo o património do partido dentro e fora do país.
É no mínimo caricato
- Barnabé Lucas Ncomo
“É no mínimo caricato que uma situação dessas esteja a acontecer”, disse Barnabé Lucas Ncomo, autor do polémico livro “Uria Simango: Um Homem, Uma causa”
“Há uma Frente de Libertação de Moçambique, que é o movimento independentista, mas também existe o partido Frelimo. São duas instituições distintas. A história do movimento de libertação nacional pertence ao Estado moçambicano e não pode, em circunstância nenhuma, ser alienada a favor de um partido político”, acrescentou Ncomo.
Nas suas palavras, a Frelimo, como partido, tende a querer se confundir com o movimento FRELIMO que trouxe a independência, mas a ter que querer retirar do Estado um museu que conta a história da revolução a seu favor “é no mínimo caricato”.
Tal é o entendimento do académico Momed Yassin. Para ele, a alienação do património de um povo por parte de um partido político é eticamente desastrosa.
“Não se explica como é que o Ministério da Cultura permite que um partido político adquira o património histórico-cultural nacional”, destacou.
Yassin comparou o dossier do Museu da Revolução ao caso da Beira. “Em todo o caso, é interessante, em termos de cidadania, questionar como é que uma história que pertence ao povo vai ser propriedade privada de um partido, uma vez que a FRELIMO, movimento revolucionário independentista, não é mais a Frelimo, partido politico de hoje”, concluiu aquele académico.
A revolução foi feita pela Frelimo
- Jorge Rebelo
O histórico Jorge Rebelo, combatente da luta de libertação nacional, não tem dúvidas de que o Museu da Revolução pertence ao partido Frelimo, como fez questão de referir quando contactado pela nossa reportagem.
“Há razões históricas óbvias para que aquele museu seja pertença do partido, embora possamos questionar hoje se os ideais que ontem nortearam a revolução ainda prevalecem. Será que esse projecto revolucionário ainda é assumido hoje? Mas isso é outra coisa”.
Nas suas palavras, quando se fala de revolução não tem que haver dúvidas de que quem a fez foi a Frelimo.
Mesmo assim, quando questionado sobre a legitimidade de um partido político ter sobre seu controlo a história da independência nacional num contexto de multipartidarismo, Rebelo foi peremptório: “Não vamos deturpar as coisas e dizer hoje que quem fez a revolução foi a Renamo, porque não foi. Ela foi feita pela Frelimo”.
Machado da Graça
Enquanto isso, o jornalista Machado da Graça acha uma maluquice pensar-se que o património histórico da revolução moçambicana tenha que ser privatizado a favor de um partido político.
No seu entender, a ter que se pensar que o facto do processo revolucionário que levou à independência nacional ter sido conduzido pela FRELIMO é suficiente para que o partido tome para si o património desse processo, então todo o pais é da Frelimo. “Isso é insensato”, denunciou.
“O mesmo raciocínio, então, servirá também para privatizar a Praça dos Heróis. Mas de uma coisa tenho a certeza: no dia em que a Praça dos Heróis também ser privatizada a favor do partido, Craveirinha fugirá de lá”, disse.
António Sopa
A lei do património diz claramente que o património da luta de libertação nacional é nacional, segundo um parecer do historiador António Sopa.
Mas, na prática, isso não se verifica. “A situação daquele museu não está muito bem clara em termos legais”, admitiu.
Acrescentou que recentemente o partido Frelimo afirmou que o Museu da Revolução era parte do seu património. Trata-se de uma questão que foi discutida a nível do Comité Central, tendo levado à criação, há dois anos, de uma fundação para a gestão desse património.
“O museu tem características de um museu militar, daí que há uma série de aspectos que não estão muito bem claras”, precisou.
SAVANA – 20.08.2010