Por Eduardo Pitta *
Sforza é o nome da família que durante cem anos dominou Milão. Por que carga de água se lembraria Luís Carlos Patraquim (n. 1953) de chamar Sforza ao Zefanias? Remissão histórica enviesada? Pode ser. Afinal, as famílias “assimiladas” mais influentes de Lourenço Marques foram os Albasini e os Fornazini, originários de Itália, radicados em Delagoa Bay a partir dos anos 1890. (Delagoa Bay é o primitivo nome de Lourenço Marques, actual Maputo. A miscigenação desses imigrantes deu origem aos clãs laurentinos.) A conjectura faz sentido.
Luís Carlos Patraquim, poeta (sete títulos entre 1980 e 2009) e autor de textos para teatro, aceitou o repto da Porto Editora para escrever sobre os 35 anos de independência de Moçambique. Assim nasceu A Canção de Zefanias Sforza. A estória, como ele lhe chama, mistura narrativa em prosa com poesia (um dos capítulos é mesmo um poema) e alguns inserts de dramaturgia. O leitor moçambicano identificará os envios: no modo das falas como nas reminiscências culturais. Zefanias, o narrador, parece ser o alter-ego de Patraquim: «O problema da teoria do romance é o de haver muitas e não me parecer que Zefanias Plubius Sforza caiba em nenhuma delas. Em linguagem chã, não foi a pensar nisso, na complexidade do romance, que me resolvi a escrevinhar sobre ele.»
Para celebrar ou simplesmente registar os 35 anos de independência de Moçambique, Patraquim podia ter usado a história da família. Ou, em alternativa, esmiuçado os sobressaltos da luta independentista, sem a qual Moçambique não seria um país soberano. Melhor ainda, atento o ano do seu nascimento, dado testemunho do papel dos estudantes nessa luta: dogmatismo, aceitação da FRELIMO como partido único, reacção face à tentativa de secessão branca de 7 de Setembro de 1974, conivência com o Thermidor (a década do terror que teve expressão eloquente nos campos de reeducação ideológica, em especial o de Nachingwea), satisfação com o êxodo dos portugueses, os anos da fome, a guerra civil (1976-92), o processo de paz alcançado em Roma, o aburguesamento da sociedade moçambicana a partir dos anos 1990, etc. A tudo isto Patraquim diz quase nada, ou só nos interstícios para iniciados. A História, como disciplina, esvai-se no monólogo dramático. Verdade que todo o autor tem direito às suas próprias idiossincrasias. Mas a vinheta vem impressa na capa: «Um olhar apaixonado sobre os 35 anos de independência de Moçambique». Um busílis.
Contudo (a ressalva é importante), a descrição dos tiques da classe dirigente tem a nitidez das evidências: «talheres de prata, cristais, vidas aplaudidas, reverenciadas. [...] Querem casas com torneiras de oiro, dez quartos [...] roupas de Paris, amante na flat, catorzinhas ocasionais...» Sintaxe local bem esgalhada, sem vénia ao cânone da língua.
Dando voz a Zefanias, Patraquim faz a ponte com o antigamente: «Morava no que fora um chalet, na Avenida 24 de Julho, quando os tramways subiam a D. Carlos, depois Manuel de Arriaga, agora Karl Marx, dobrando a Central Eléctrica e subindo, chiando, extenuando-se. [...] O dito chalet, verdade seja, tinha mais de evocação do que de estatuto, relíquia de uma certa belle époque cujos perfumes cruzaram os oceanos...» O osso da intriga é essa mnemónica tensa.
Por vezes, o registo elíptico cede: «e mandaram ela pilar o filho. Nunca mais vou esquecer os gritos. O marido já estava morto. [...] estava quase nua, nem era muito velha, gemia, parecia estátua, a olhar o seu bebé no pilão, um massanga a bater-lhe...» (um exemplo, entre outros, da crueza de alguns relatos).
Não gosto de “prosa poética”. Nem farei ao autor a desconsideração de dizer que ele a pratica. Não obstante, A Canção de Zefanias Sforza é o livro de um poeta que “cultua” a linguagem.
Não vinha mal ao mundo, e o leitor comum agradecia, notas de rodapé para belekar, estruturas (sinónimo de directório partidário), maka, maningue, massanga, matapa, patchiças, suca e vocábulos gentílicos afins.
* in Publico
SAVANA – 20.08.2010