Filipe Paúnde tenta limpar zonas cinzentas
-“Quem não quiser entrar que não entre. Mas o Museu é nosso e continuará a ser nosso para sempre. A pretensão é que tudo o que sempre foi nosso volte a ser nosso”, Filipe Paúnde
- Museu de Chai também é propriedade da Frelimo
Por Nelson de Carvalho (Nampula) e Armando Nenane (Maputo)
O secretário-geral da Frelimo, Filipe Paúnde, disse que o seu partido, no poder há 35 anos em Moçambique, não só quer alienar o imóvel do histórico Museu da Revolução, mas sim “o imóvel e todo o património” que se encontra dentro dele e que faz com que toda aquela infra-estrutura seja um museu. “Tudo isso faz parte da Frelimo”, disse, decisivamente, aquele dirigente político.
O polémico dossier da alienação do edifício onde funciona o histórico Museu da Revolução, actualmente em processo de reabilitação, foi despoletado pelo nosso jornal semana passada. O mesmo corre os seus trâmites “legais” na Administração do Parque Imobiliário do Estado (APIE).
Trata-se de um processo que tem suscitado variados comentários na praça pública, com certos sectores da sociedade, entre académicos e políticos, a não compreenderem como é que um museu que conta a história da Revolução moçambicana pode pertencer a um partido político e não ao Estado moçambicano. A Frelimo está a comprar o imóvel onde funciona o Museu da Revolução no quadro da implementação da Lei número 5/91 de 9 de Janeiro que institui a venda dos prédios até então propriedade do Estado a inquilinos nacionais.
“Foi a Frelimo quem comprou as fardas, o carro e as armas”, Paúnde
Em entrevista exclusiva ao SAVANA, na manhã desta quarta-feira na cidade de Nampula, Filipe Paúnde, assumindo publicamente a posição oficial do seu partido, referiu que o carro, as fardas, as armas e todo o património que se encontra depositado no Museu da Revolução é única e exclusivamente pertença do partido Frelimo e não do Estado moçambicano.
O número dois da Frelimo acrescentou que quem comprou todo o património que está naquele museu é a Frelimo e não o Governo moçambicano. Paúnde chegou esta quarta-feira a cidade de Nampula para, entre quinta e sexta-feira, orientar a V Reunião Nacional da Liderança da Frelimo com os titulares dos órgãos autárquicos. Os presidentes dos conselhos municipais estão reunidos na chamada capital do norte deste esta segunda-feira na 7ª Reunião Nacional dos Municípios, cuja cerimónia da abertura foi orientada pelo Presidente da República, Armando Guebuza.
E a memória colectiva
“As fardas, as armas e o carro foram comprados para movimentar as pessoas e os bens da Frelimo a fim de prosseguirmos com as actividades referentes ao processo revolucionário, com vista à conquista da Independência Nacional”, destacou.
Numa altura em que alguns sectores ligados ao processo de reconstituição da memória colectiva nacional não vêem com bons olhos que o património da luta de libertação nacional seja pertença de um privado, mais concretamente de um partido político, ao invés de ser pertença do Estado moçambicano, Paúnde não se verga ao debate, assumindo posições susceptíveis de incendiar ainda mais as discussões.
“O que é nosso não queremos que esteja em mãos alheias porque o Governo, assim como a Renamo, o PIMO, o PADEMO e outros partidos políticos também têm o seu próprio património”, frisou.
Em geral, a política nacional dos museus, segundo apurou a nossa reportagem, não impede que uma entidade privada seja proprietária de um museu, mas o que está em causa é a legitimidade de a história da revolução moçambicana ser propriedade de um privado, neste caso, um partido político. Quando a Frelimo fez a revolução, argumentam os críticos do processo, não era um partido político como o é hoje, mas sim um movimento independentista nacional, abarcando na revolução as mais diversas sensibilidades.
Situado em plena Avenida 24 de Julho, em frente ao Jardim 28 de Março, popularmente conhecido como “Jardim dos Madjermanes”, o Museu da Revolução tem como foco essencial a história da Independência do país, sendo visitado por estudantes, académicos e público em geral. Está organizado cronologicamente e pode ser visitado em quatro pisos, podendo-se ver a estratégia da Frente de Libertação de Moçambique – movimento revolucionário e não partido político – no ataque armado a Chai. Podem ser vistas, também, as armas utilizadas pelos portugueses e o carro utilizado por Eduardo Mondlane, o primeiro líder do movimento.
“O Museu nem é do Povo”
Filipe Paúnde disse que desconhece as razões que levam as pessoas a se preocuparem com os bens da Frelimo, tendo acrescentado que o Museu “nem sequer é do Povo e nem de pessoas quaisquer”. “É dos quadros da Frelimo”, insistiu o dirigente político.
Depois da Independência, conforme contou Paúnde, o Museu foi inaugurado em 1978 pelo então presidente Samora Machel. Aliás, referiu, quem começou a gerir foi o partido Frelimo, até aos dias de hoje. E que, afinal, “é assim que vai continuar a ser”, conforme disse.
Não obstante, Paúnde referiu que mesmo que esteja nas mãos da Frelimo, o museu continuará a abrir as suas portas para a população efectuar visitas, tal como vem acontecendo, salvo a interrupção para efeitos de reabilitação. Acrescentou que o museu continuará a ter um director e a ser gerido pelos mesmos funcionários actuais, sendo que todas as despesas serão pagas pela Frelimo.
Museu de Chai
No seu entender, a situação do Museu da Revolução é semelhante a do Museu de Chai, onde todos entram e saem, apesar de ser pertença do partido Frelimo. “O que não queremos é que o museu seja gerido por pessoas estranhas ao nosso partido”, elucidou.
Questionado se não achava que o facto do museu ter que pertencer ao partido Frelimo e não ao Estado não poderia criar divisão no seio dos moçambicanos, Filipe Paúnde foi lapidar na sua alocução: “Quem não quiser entrar que não entre. Mas o Museu da Revolução é nosso e continuará a ser nosso para sempre”, disse, acrescentando que “a pretensão é que tudo o que sempre foi nosso volte a ser nosso”.
Insistimos sobre as modalidades do acesso ao museu que irão vigorar doravante, tendo em conta que o mesmo passará a ser um património da história da revolução nacional de domínio privado e não público, ao que o nosso interlocutor respondeu que esse e outros aspectos serão definidos somente depois de se concluir o processo de alienação do museu e de todo o património ali depositado.
Informações em nosso poder indicam que a polémica em volta do Museu da Revolução originou debates acesos no seio da UNESCO, um organismo das Nações Unidas que tem apoiado o país no domínio da conservação e preservação do património histórico e cultural nacional. Há uma série de convenções referentes a conservação e preservação do património histórico e cultural, algumas das quais Moçambique aderiu, mas que poderão estar a ser postas em causa no contexto da expropriação patrimonial do Estado a favor de privados.
Na África Austral, está em marcha um processo que visa a instituição de um movimento regional da história da libertação nacional, onde o respectivo património é discutido entre Estados e não entre partidos políticos.
Em Março de 2007, a Associação Cultural Mozolua, dedicada à promoção da cultura moçambicana através de várias actividades, submeteu à direcção do Museu da Revolução uma proposta visando reforçar da melhor forma o papel do museu na divulgação da história de Moçambique.
A proposta, a que tivemos acesso, sugere a actualização e modernização do museu, no sentido de vir a divulgar uma parte importante da história, através da documentação existente, seja fotográfica, cinematográfica ou literária. Nisso, o museu veio a fechar nos finais de 2007, tendo iniciado o processo de reabilitação. A associação nunca teve resposta da direcção.
SAVANA - 28.08.2010
NOTA:
“Filipe Paúnde disse que desconhece as razões que levam as pessoas a se preocuparem com os bens da Frelimo, tendo acrescentado que o Museu “nem sequer é do Povo e nem de pessoas quaisquer”. “É dos quadros da Frelimo”, insistiu o dirigente político.”
Aliás como tudo em Moçambique, a partir do chão que se pisa.
Fernando Gil
MACUA DE MOÇAMBIQUE