Canal de Opinião
por Paulo Granjo (*), in Jornal Público, Lisboa 02 Setembro 2010
A revolta de 1 e 2 de Setembro corrente, em Maputo, vista, de Lisboa, pelo antropólogo Paulo Araújo, mereceu a nossa atenção e aqui a reproduzimos com a devida vénia:
Tal como em 5 de Fevereiro de 2008, Maputo viveu ontem um dia de barricadas de pneus ardendo nas ruas, pedradas a carros e montras, cidadãos mortos pelas balas das forças policiais.
Também como nesse Fevereiro, o motim foi convocado em rede por SMS e boca-a-ouvido, alastrando em bola de neve de um bairro popular a outro, à medida que o fumo das barricadas vizinhas ia sendo avistado.
Como em 2008, o móbil imediato dos protestos foi a brusca subida de preços. Então, dos "chapas", periclitantes carrinhas que servem de transporte público à esmagadora maioria. Agora, da água, electricidade, pão e arroz - sua base alimentar.
Em ambos os casos, ainda, os aumentos ameaçam as próprias perspectivas de subsistência de uma população que precisa de toda a sua criatividade e desenrascanço para, simplesmente, se manter no fio da navalha. Mas, para esses pobres, mais irritante ainda do que os aumentos foi - em 2008 e, muito provavelmente, agora - verem neles uma desconsideração, por parte de quem decide, para com as suas dificuldades e necessidades mais elementares.
Moçambique passou, com o fim da guerra civil, de um regime socializante e paternalista para uma política ultraliberal que trouxe o aumento do desemprego e das elites económicas, coincidentes ou ligadas às elites políticas. Trouxe também a erosão do controle local da população através de instituições partidário-estatais que, se podiam cometer abusos, também podiam canalizar as necessidades e reclamações populares.
O sentimento que hoje grassa nos bairros populares do Grande Maputo é o de uma incerteza global quanto ao futuro e à própria subsistência e, face ao poder político, a sensação de que as suas dificuldades se tornaram irrelevantes para os poderosos e de que não existem canais por onde as suas necessidades e protestos possam ser canalizadas de forma eficaz.
Esta situação e visão permitem que motins como o de ontem possam ser sentidos como a única forma válida de protesto. E que possam ocorrer sempre que uma nova medida política ameace a sua subsistência, enquanto vêem desfilar perante si o que consideram ostentações de riqueza e desigualdade.
Não quer isto dizer que quem protesta violentamente pretenda pôr em causa o Governo ou o partido que o ocupa desde a independência. Maputo é um baluarte da Frelimo e a maioria dos manifestantes de ontem terá votado nela o ano passado.
Só que a visão dos direitos e deveres entre governantes e governados predominante nesses bairros populares não coincide com o hábito europeu (e das elites políticas locais) de aceitar que basta a um Governo legítimo tomar decisões legais para que também elas sejam legítimas.
Estas pessoas consideram, antes, que o poder instituído não deve ser ameaçado, mas, em contrapartida, tem que garantir o essencial de bem-estar e dignidade às pessoas que governa. O governante pode "comer mais", mas não "comer sozinho", à custa da fome dos outros. Assim, por muito que o poder seja considerado legítimo, uma sua decisão pode ser ilegítima, se quebrar esse dever.
Ou seja, os amotinados de ontem (tal como os de 2008) protestavam contra uma decisão política concreta e protestavam contra a forma como o poder político é exercido. Afinal, protestavam contra aquilo que consideram uma quebra do "contrato social" que estabelecem com o poder instituído a que se submetem. Uma quebra que, com a repetição de motins no essencial iguais, afirmam já não tolerar.
Claro que, a cada novo motim bem sucedido (e o de 2008 era um claro motivo de orgulho nos bairros pobres), mais se reforça a imagem popular de que essa é a única forma eficaz de protesto. O que coloca o Governo moçambicano perante um difícil dilema: ou não cede às reclamações e aumenta exponencialmente a repressão policial, arriscando o apoio financeiro internacional de que depende, ou se torna mais "tradicionalmente" africano, considerador e dialogante, fragilizando com isso as suas práticas mais autoritárias e os actuais padrões de concentração de riqueza. (*) Paulo Granjo, Antropólogo, ICS-UL, in Jornal Público, Lisboa 02 Setembro 2010
Canal de Opinião
por Daniel Oliveira, in (www.arrastao.org)
Libertaram o povo e esqueceram-se dele
A violência em Maputo explica-se pelo abandono a que o povo está entregue e o autismo em que vive a elite política. Os moçambicanos aceitam o poder instituído. Aceitam que ele coma mais do que todos. Mas não aceitam que coma sozinho.
Como em 2008, Maputo explodiu em violência. Dez mortos. A miséria explica. A dúvida permanente em relação ao mais elementar que a sobrevivência exige também explica. Se nada é previsível não há ordem possível. E se o abandono é total e as elites políticas não garantem o mínimo dos mínimos não há autoridade que mereça ser respeitada.
Como explica o antropólogo Paulo Granjo , conhecedor da realidade moçambicana, o contrato social ali em vigor sustenta-se "em dois pilares aparentemente contraditórios, mas que deverão estar minimamente equilibrados: pressupõem, por um lado, que só em casos extremos deverá ser posto em causa o poder instituído; mas pressupõem, também e em contrapartida, que quem ocupe esse poder tem a obrigação de salvaguardar um mínimo de bem-estar e de dignidade das pessoas que governa". (http://antropocoiso.blogspot.com/2010/09/novos-motins-em-maputo-e-maria.html). Melhor ainda: o poder "pode (e tem o direito de) comer mais", mas não de "comer sozinho" e à custa da fome dos outros. Apesar de longe da pornografia angolana, a elite politica moçambicana não é apenas corrupta. É gananciosa na sua corrupção. E esta ganância é o maior dos pecados das elites nascidas dos movimentos de libertação. Não é a guerra, que talvez fosse inevitável. Não é a fragilidade das suas democracias, a moverem-se em terreno hostil e com uma história de colonialismo contra si. É aquilo que dependia destes líderes: ao menos garantirem o mínimo dos mínimos. E pelo menos por isso só eles podem ser responsabilizados.
Perante aumentos de preços de muitos produtos essenciais e do pão em cerca de vinte por cento, um responsável político teve o desplante de propor que os moçambicanos comessem mais batata doce. Qual Maria Antonieta, esta elite aristocrática que já se disse socialista vive completamente alheada do ansiedade quotidiana do seu povo. Não se limita a enriquecer à sua custa. Não se limita a roubar. O povo pura e simplesmente não existe para eles.
Esta explosões de violência, sem destinatário claro nem caminho, é o grito desesperado de um País entregue à sua sorte. A verdade é que a maioria dos líderes africanos soube libertar os seus povos. Mas depois esqueceram-se deles. (Daniel Oliveira)
Canal de Opinião
por José Flávio Pimentel Teixeira, 3 Set, 2010, 1h45
O Contrato Social
Paulo Granjo, antropólogo português que há muito vem trabalhando em Moçambique, publicou no jornal Público o artigo “A Razão e o Sentido de Dois Motins”, sobre a situação em Maputo. Para ler com atenção, em articulação com o texto que colocou no seu blog: “Novos Motins em Maputo e Maria Antonieta na Costa do Índico“. Face a este último texto, mais completo (o jornal tem limites de espaço), tenho duas notas: uma irritação profunda; e uma discordância.
A irritação. Ao saber da proposta da substituição do pão (base da alimentação urbana) pela batata-doce e outros produtos imediatamente me lembrei da história de Maria Antonieta. Para quem não a saiba aqui a resumo: diz a história, muito provavelmente apócrifa e que contra ela foi usada na altura, que esta rainha de França tendo sido defrontada pelos pobres com pedidos de pão lhes terá respondido “se não têm pão que comam brioches”. O dito, por mais falso que tenha sido, ficou como símbolo da insensibilidade governativa – até pelo triste fim que a rainha veio a ter (guilhotinada após a revolução de 1789). E Paulo Granjo antecipou-se na “postagem”, inutilizando-me um proto-post, coisa que os bloguistas encartados raramente perdoam.
A discordância. Granjo avança como explicação para os acontecimentos a ideia da existência de uma particular concepção de poder, “tradicional” e “africana” que ancora o contrato social [para interessados no texto tem uma ligação para um artigo académico em que desenvolve o tema]. Ou seja, considera que pela vigência dessa ideia de “poder” “só em casos extremos deverá ser posto em causa o poder instituído; mas pressupõem, também e em contrapartida, que quem ocupe esse poder tem a obrigação de salvaguardar um mínimo de bem-estar e de dignidade das pessoas que governa. Pode (e tem o direito de) «comer mais», mas não de «comer sozinho» e à custa da fome dos outros.”.
A minha discordância não se prende com questões sobre a hipotética especificidade (e como tal da sua dinâmica explicativa), da realidade ou abrangência dessa proposta concepção “tradicional” ou “africana” de poder. Num registo destes (in-blog) o que me parece é que esta proposta interpretativa está presa a discursos locais (não “aos” discursos locais) – não o digo como defeito, digo-o como característica. E se assim é, se estamos face a discursos locais [às vezes a gente chama-lhes émicos] permite uma resposta nos mesmos termos. Através do dito popular, tantas vezes repetido de norte a sul, e significando (criticamente) a prática do poder: “os cabritos comem onde estão amarrados“. Entenda-se, o voraz cabrito onde amarrado come, não contratualiza. (José Flávio Pimentel Teixeira, antropólogo, residente em Maputo)
CANALMOZ – 06.09.2010