A inglesa Susan Barton andou pela Baía, à procura da sua filha raptada. Na viagem, do Brasil para Lisboa, a tripulação do navio amotinou-se, matou o comandante, português, e a ela deitou-a ao mar... “abandonada no Atlântico por amotinados portugueses”. Náufraga, como Robinson Crosué, conseguiu chegar a uma ilha. Estava estendida na areia, exausta, quando apareceu o negro Friday. Temeu que fosse um canibal. Pediu-lhe água, e ele conduziu-a para dentro da ilha deserta, paupérrima. “Vim parar à ilha errada... Se a companhia dos animais tivesse sido suficiente para mim, teria vivido muito feliz na ilha”.
Foram dar a um acampamento, onde encontrou Cruso, um inglês de 60 anos que, antes de naufragar, tinha sido comerciante e fazendeiro. Falava português. Trabalhava muito, a fazer terraços, a preparar a ilha para possíveis agricultores que algum dia ali aportassem. Um trabalho, que ela considerou estúpido.
Cruso era ríspido e de “uma inquestionável e solitária autoridade... não admitia nenhuma mudança na ilha”. Ela bem queria convencê-lo a sair de lá. “Cedo comecei a perceber que era um desperdício de tempo querer persuadir Cruso a salvar-se. Envelhecer, no reino da sua ilha, sem ninguém que lhe dissesse não, tinha limitado de tal modo o seu horizonte (quando o horizonte que nos rodeava era tão vasto e majestoso!), que acabou por se convencer que já sabia tudo o que havia para saber sobre o mundo... o desejo de fugir definhara dentro dele. Ficou obstinado em permanecer, até ao dia da sua morte, rei do seu minúsculo reino”. Enquanto ela queria “escapar para a civilização”, para ele a civilização era aquilo: simplicidade, despojo, silêncio. Ela tinha que lhe obedecer em tudo, para não parecer que tinha naufragado, para lhe tirar o reino. “Um dia perguntei a Cruso se havia leis na ilha, e que leis seriam essas. Ou se preferia seguir os seus ditames interiores, confiando que o seu coração o guiasse no caminho da rectidão. Para mim, mar e céu permaneciam mar e céu, vazio e monótono. Não tinha feitio para amar tanto vazio”. Mas, para ele, eram fonte de contemplação, e davam-lhe luz e força.
Friday era um escravo brasileiro e náufrago. Ela admirava-o, mas considerava-o um imbecil, por ele não falar. Não falava porque lhe tinham cortado a língua. “Onde está a justiça disto? Primeiro escravo, e agora náufrago. Roubado à sua infância e consignado a uma vida de silêncio. Estaria a Providência a dormir?” Cruso sentenciava: “nem todos os que trazem a marca do naufrágio são náufragos de coração”.
Apareceu um navio inglês e salvou os três. Para Cruso era a perda do reino, o degredo. Antes de aportarem na Inglaterra, morreu. Friday, fora da ilha e da vida primitiva, era como peixe fora da água. Quanto à “senhora Cruso”, conheceu o escritor Foe, e, como quem se confessa, pôs-se a narrar-lhe o diário da sua vida na ilha.
E enquanto lho contava, revivia toda a sua vida e sentia saudades da ilha. “Restitua-me a essência que perdi, senhor Foe: é esta a minha súplica. Porque embora a minha história transmita a verdade, não transmite a essência da verdade”. Para ela, o seu escritor Foe veio, de algum modo, substituir Cruso, na sua fantasia.
Foe foi preso e ela foi morar na casa dele. E ele ia escrevendo o livro, servindo-se das cartas, em que ela lhe ia contando a vida na ilha.
Entretanto Susan fazia de tudo para descobrir algo sobre Friday: “Falo com Friday, para o ensinar a sair da escuridão e do silêncio. Mas será esta a verdade?”
Fazia desenhos e mostrava-lhos, a ver se ele reagia e ela conseguia descobrir alguma coisa. “Os anos antinaturais que Friday tinha passado com Cruso tinham endurecido o seu coração, tornando-o uma pessoa fria, indiferente, como um animal totalmente oculto nele próprio” E assim, naquela casa, “a vida que levamos está cada vez menos separada da vida que levávamos na ilha de Cruso... O mundo está cheio de ilhas”.
A sua grande pergunta era: quem terá cortado a língua de Friday? E como? Terá sido Cruso? E porquê? “A língua pertence ao mundo do jogo, enquanto o coração pertence ao mundo da seriedade... Que te roubassem na vida, para que te roubasses a ti próprio?”
Entretanto, apareceu lá em casa uma rapariga, a afirmar que era a tal filha dela e conhecia tudo sobre ela. Susan considerou-a uma espia, desconfiou que fosse filha de Foe e que este lhe tivesse contado a história. E entretanto começou também a ficar céptica sobre o possível diário da sua vida na ilha: “Quem é que quer ler sobre dois idiotas, no alto de uma rocha virada para o mar , e que preenchiam o tempo a desenterrar pedras?”Em casa de Foe, encontrou umas flautas e deu uma a Friday. E acabaram por tocar juntos. A música humaniza e aproxima. “Enquanto a música estiver presente em mim e em Friday talvez a linguagem não será necessária... Conversar não será simplesmente uma espécie de música, na qual alguém toca primeiro o refrão e o outro o repete? Será que interessa saber qual é o refrão da nossa conversa? Mais do que a melodia que tocamos? E vou mais longe: a música e a conversação não são como o amor?”
Susan acabou por considerar-se senhora de Friday. E decidiu dar-lhe a liberdade e metê-lo num barco. Preparou tudo, para o embarcar para a África. Mas depois temeu que os do barco o fossem vender outra vez, e voltou atrás. “Há afinal um desígnio nas nossas vidas e, se esperarmos o suficiente, seremos compelidos a vermos esse tal desígnio revelar-se”.
Finalmente, Susan com Friday reencontraram Foe. Entre ele e ela houve um longo diálogo de tipo humanístico. Para ele, aquela história da ilha era apenas uma pequena parte da história. E ela não queria contar de si senão a história na ilha “porque sou uma mulher livre, que defende a sua liberdade, contando a sua história, segundo o seu próprio desejo... Agora toda a minha vida se tornou a história, e não resta nada de mim própria... nada mais me resta que a dúvida. Eu sou a própria dúvida. Quem me fala? Serei também um fantasma? A que espécie pertenço? E você? Quem é você?... o homem a mulher estão para além das palavras... Confrontemo-nos com o nosso maior medo, que é o facto de termos sido chamados ao mundo... Será que nos tornamos necessariamente bonecos numa história, cujo fim nos é invisível e em direcção à qual caminhamos como criminosos condenados?” E os dois discorrem e discutem sobre Friday e a liberdade. Foe convence-a a levá-lo a conhecer algumas palavras, através de desenho. Ela tenta, mas não consegue.
“Cabe a nós abrir a boca de Friday e ouvir o que ela guarda: silêncio, talvez um eco, como o eco de uma concha do mar, encostada ao nosso ouvido... Devemos fazer falar o silêncio de Friday, assim como o silêncio que o rodeia... Até termos dito o não dito, não chegaremos nunca ao coração da história... Friday exprime-se através da música e da dança, que são para a fala o que o choro e o grito são para as palavras.”
E a conclusão é imprevista, é poética, é uma espécie de sonho delirante. Esta é realmente uma história tão bela como difícil.
- Pe. Manuel Ferreira