Da biografia feita em “Nacionalistas de Moçambique” de Sebastião Mabote, transcrevo os parágrafos abaixo, onde Samora Machel é destaque, fazendo pensar no que, na realidade se estaria a passar no seio da FRELIMO, nos dias que antecederam a sua morte. E também na morte anos mais tarde, por afogamento no Bilene, de Sebastião Mabote.
Transcrição:
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Coronel-General das Forças Armadas de Moçambique, Sebastião Mabote será, no novo país, membro do Bureau Político da FRELIMO, Chefe de Estado-Maior das Forças Armadas e vice--ministro da Defesa.
Mabote e outros comandantes tinham conduzido admiravelmente a guerra de guerrilhas, obtendo assinaláveis êxitos. Mas, agora, os dirigentes da FRELIMO, parafraseando a escritora Doris Lessing nas suas memórias do Zimbabwé, «tinham de governar um país moderno, num mundo moderno. E isso era outra coisa».
Não bastava trazer algumas ideias de justiça para opor à injustiça do colonialismo. E também não bastava generalizar ao país, como política alternativa à colonial, «a experiência fecunda da organização da vida nas zonas libertadas», isto é, aplicar as condições de uma estrutura guerrilheira e de uma economia primitiva à organização, construção e consolidação de um país moderno.
Os teóricos da revolução davam indicações no sentido de cuidar «como das meninas dos olhos de cada especialista que trabalhe conscientemente, com conhecimento do seu trabalho e amor por ele».
Contudo, Samora Machel achava que o país não tinha «essa necessidade absoluta dos técnicos e quadros administrativos», sublinhando não ter medo de, «numa primeira fase, tornar o aparelho de Estado menos eficaz». E quando o temor não era suficiente para levar ao abandono do país, aí estavam diplomas como a famigerada Lei 24/20 a impô-lo: tinham, então, 24 horas para deixar Moçambique, com 20 quilos de peso. Só que, como ao aparelho de Estado pertencia a quase totalidade dos professores, assim como a maioria esmagadora dos médicos, engenheiros e técnicos qualificados, não era só o Estado, mas toda a economia que se tornava menos eficaz. Referindo-se a uma experiência similar em Angola, onde cumpriu duas missões de serviço, o general soviético Valentim Varennikov sublinhou os enormes problemas criados pelo facto de terem sido «expulsos impensadamente todos os portugueses, que constituíam a principal força na economia, na direcção dos serviços municipais e na organização da gestão do país...».
A este propósito, o coronel Ernesto Melo Antunes, um dos representantes do Estado português nas negociações que levaram ao Acordo de Lusaka com a FRELIMO, reconheceu:
«E claro que a descolonização teve consequências negativas em muitos aspectos, o principal foi a retirada precipitada de centenas de milhares de pessoas, sobretudo de Angola e Moçambique [...],deixando esses países numa situação calamitosa de falta de quadros. Penso que o que vou dizer não será particularmente popular em certos meios progressistas das antigas colónias. Mas, neste caso, penso que a principal responsabilidade coube aos movimentos de libertação. Porque, contrariamente à terra e ao espírito dos acordos, gerou-se um clima de total repúdio da permanência dos portugueses, um clima muitas vezes de perseguição, de insegurança de tal modo intolerável, que culminou num pânico generalizado.»
O novo poder é, com frequência, exercido sem equilíbrio, manifestando-se quer como exercício de puro formalismo quer com desmesurada arrogância e brutalidade. E foram-se acumulando os erros de gestão.
Um deles terá sido a chamada «Operação Produção». «Os improdutivos [isto é, aqueles que não apresentassem o bilhete de identidade, o cartão de residente e o cartão de trabalho] eram agarrados e deportados das cidades, em geral de avião, para o Niassa.» A imprensa da época noticiou casos isolados de abusos: a exigência de documentos que a lei não previa, como a certidão de casamento; a detenção de adolescentes, de idosos, de grávidas ou de mães solteiras acusadas de prostituição. No entanto, como já se sublinhou, «o problema não era os abusos isolados, era todo o conceito em si, do princípio ao fim. Esse, sim, era um enorme abuso do poder».
Outro dos erros, porventura ainda mais grave, foi a experiência das aldeias comunais, inspirada nas comunas rurais chinesas. «O marxismo primário e mimético da elite dirigente assimilara o camponês ao obscurantismo, ao arcaísmo, ao primitivismo. Quando os camponeses manifestavam a sua inquietação e repúdio soavam as palavras de ordem (Abaixo o lobolo! Abaixo a poligamia! Abaixo os curandeiros! Abaixo os régulos!) e as acusações (tribalismo, regionalismo, reacção, fascismo, inimigos do povo).» De modo que «as aldeias comunais adquiriram o perfil de campos de reeducação, impostos por decreto ou por violência paramilitar, sob a orientação burocrática de um Estado todo-poderoso e sob palavras de ordem copiadas de uma qualquer revolução (soviética, chinesa ou cubana).
A aliança operário-camponesa eram palavras ocas. O resultado foi a crise económica, social e política. O processo de socialização rural, pela sua extensão e gravidade, atingiu os contornos de calamidade económica e social».
Os camponeses acabam por engrossar, em muitas regiões, as fileiras da contra-revolução. E a população urbana manifesta em surdina o seu descontentamento.
Obrigados a combater numa guerra civil contra aqueles mesmos camponeses a quem tinham estado ligados e por quem, afinal, tinham lutado, reduz-se o moral das forças armadas e uma «maré de desleixo e corrupção» atinge oficiais superiores. Por outro, ao descontentamento da população urbana vai contrapor-se uma violência desmesurada, uma «carga de horrores» contra pessoas inocentes por parte das forças policiais e de segurança.
Aos problemas internos juntavam-se os externos, suscitados pelo Acordo de Nkomati com a África do Sul. Escreveu um conhecido jornalista moçambicano: «Nunca como nesses dias Samora esteve tão isolado [...] Muitos Chefes de Estado que o admiravam, mesmo na linha da Frente, hesitaram. Outros chegaram ao ponto de repetir acriticamente a interpretação que Pretória dava ao Acordo. Outros ainda, cometeram a injustiça imperdoável de pensar que Samora abandonara a luta contra o "apartheid".»
As dificuldades internas e externas são agravadas pela guerra civil.
Surgem problemas no seio do poder político e militar, acompanhados por periódicos rumores de golpe de Estado. O Presidente da República e da FRELIMO está cada vez mais isolado. O falecido Fernando Ganhão, antigo reitor da Universidade Eduardo Mondlane, retratou assim o clima político-militar e o estado de espírito do seu amigo Samora Moisés Machel:
«[...] Os seus homens, os seus comandantes, não revelavam mais as capacidades e a dedicação desprendida que tinham feito deles heróis da luta de libertação. A crueldade das acções do inimigo, os massacres, as famílias divididas e deslocadas, os refugiados dos países vizinhos, tudo avolumava a amargura que nos últimos anos de vida dele se apoderara. A incapacidade de defender as populações dos ataques bárbaros daqueles que ele assim considerava, a impossibilidade de vencer a guerra, de lutar contra os vizinhos inimigos e contra a incompreensão dos vizinhos amigos, o gradual desencanto com muitos dos seus mais íntimos colaboradores, as suspeitas de traição e o sentimento duma imensa solidão, tal era o Samora dos seus últimos dias. Aqueles que o conheciam bem, notavam a progressiva degradação da personalidade do seu chefe. Longe os dias eufóricos da guerra contra o tabaqueiro da Rodésia, longe os comícios dos dias de Sol e as paradas militares com as medalhas e os atavios chocando e brilhando e os sons das bandas tocando triunfais marchas militares. Longe os dias em que, no mundo, ser moçambicano era uma forma de orgulho e o respeito cercava a actividade do governo. [...] Bebia muito nos últimos meses, perdera a serenidade, exaltava-se sem propósito, levantava a voz, prendia-se a detalhes mesquinhos e tanto mais. [...] A permanência no poder e o isolamento vão-no gradualmente afastando de quase todos os seus fiéis companheiros».
Outros testemunhos confirmam os problemas e o isolamento do Presidente. Luís Bernardo Honwana, escritor, jornalista e membro do governo, afirma que «para o fim da vida, Samora tomava as decisões sozinho». E José Luís Cabaço, antigo ministro e dirigente da FRELIMO, declara: «Era evidente que Samora estava em crise em 1986. Isto conduziu a um comportamento cada vez mais autoritário e a cada vez mais decisões tomadas só por ele».
São substituídos ministros responsáveis pelas forças policiais e pelos serviços de segurança. E mais tarde verificam-se mexidas na cúpula militar, que atingem directamente Sebastião Mabote.
Em 17 de Outubro de 1986, três dias antes do desastre que o vitimaria, o Presidente da República Popular de Moçambique, Samora Moisés Machel, conclui «a remodelação de quase todo o Estado--Maior General das Forças Armadas de Moçambique, designando Armando Panguene para Chefe do Estado-Maior General».
Mabote é, pois, afastado. E vai estudar para Cuba, onde obtém uma Licenciatura em Ciências Militares.
Regressa a Moçambique em 1990. Contudo, apesar das competências acrescidas que adquiriu, não é reintegrado nas Forças Armadas.
Pior do que isso. Em Junho de 1991, Mabote é detido, sob a acusação de tentativa de golpe de Estado, o que afirma ser falso, acusando alguns generais de estarem na origem da trama.
Em Setembro de 1992, o Supremo Tribunal conclui que as acusações não têm fundamento. E um mês antes do acordo de paz celebrado com a RENAMO, Mabote é libertado. Passara, entretanto, 14 meses na prisão.
Eleito em 1994 deputado da FRELIMO, será reeleito em 1999. E também o Chefe do Departamento de Defesa da FRELIMO.
No dia 27 de Janeiro de 2001, morre afogado nas tranquilas águas da praia do Bilene, onde se encontrava de férias.
Sebastião Marcos Mabote foi sepultado no Panteão dos Heróis, na cidade de Maputo, ao lado de Eduardo Mondlane, o fundador da FRELIMO, e de Samora Machel, o primeiro Presidente do país.
Segundo o então Presidente da República, Joaquim Chissano, «os soldados inimigos capturados foram por ele protegidos, os civis sempre respeitados. A sua bravura era lendária. A sua inteligência assegurou as vitórias do "Nó Górdio" e da travessia do Zambeze».
Ele foi, sem dúvida alguma, um dos grandes obreiros da independência de Moçambique.