Coronel Manuel Amaro Bernardo
19-2-2004
Exm.º Senhor
Director do “Expresso”
1. Apesar de estar convencido de que esta carta não será publicada, à semelhança do sucedido com outras incómodas anteriormente remetidas a jornais diários ditos de “referência”, na tentativa de reposição da verdade dos factos, não ficaria bem com a minha consciência se assim não procedesse.
Na qualidade de oficial do QP, que cumpriu três comissões militares por imposição em Moçambique (1961/1973) e de investigador da História Contemporânea Portuguesa, em relação às décadas de 60 e 70, com cinco livros publicados (o último foi “Combater em Moçambique; Guerra e Descolonização; 1964-1975”, lançado em Maio do ano passado), julgo estar em condições de poder analisar e rectificar o texto de José Pedro Castanheira, publicado na edição de 7 de Fevereiro passado, com o título “O general sem vitórias”.
2. Este jornalista, com investigação publicada em livro sobre a Guiné-Bissau, elaborou uma peça crítica sobre o Tenente-General Kaúlza de Arriaga, visando o seu conservadorismo, mas baseado em pouca informação credível e utilizando as técnicas habituais da manipulação jornalística. Basta reparar nos dois destaques feitos: um, na 1.ª página, sobre a “dominação branca” e outro, onde refere aquele oficial como “vaidoso, que dizia ser o «segundo melhor perito do mundo em guerra subversiva»”.
Na entrevista que me concedeu (a última), que esteve no site (Internet) referido no texto de J. P. Castanheira e publicada num meu livro em 1999, com edição revista e actualizada a sair brevemente, Kaúlza de Arriaga diz que tal declaração foi proferida por dirigentes do ex-inimigo (FRELIMO), a propósito da operação “Nó Górdio” e que o Marechal António de Spínola salienta no seu livro “País Sem Rumo”(pp 290).
Este autor refere que “ de acordo com afirmações posteriormente produzidas por representantes qualificados da FRELIMO (...) esta atravessara duas fases críticas: em 1969, estivera à beira do colapso no final da operação «Nó Górdio», devido ao volumoso número de baixas sofridas e, em 1974, aquando do desencadeamento da «Revolução de Abril» (...)"
Apesar de se situar numa área política bem diversa, António de Spínola, como ex-Comandante-Chefe da Guiné, sempre teve consideração e respeito pelo ex-Comandante-Chefe de Moçambique. E mesmo após o golpe de 25 de Abril (6-5-1974), não foi ele, nem a Junta de Salvação Nacional, nem os “capitães” revolucionários, a mandar Kaúza de Arriaga para a reserva compulsiva (saneamento). Terá sido por iniciativa pessoal do então General Costa Gomes. Ressentimentos da “Abrilada de 1961” e não só...
3. Apesar de ser crítico em relação a operações com grandes efectivos militares em ambiente de Guerra Subversiva, como foi o caso da “Nó Górdio”, tenho que reconhecer o grande impacto verificado nas estruturas da FRELIMO. Lembro ainda que, nas minhas investigações, não cheguei à conclusão publicada por outros autores, como Carlos Matos Gomes, desta operação ter sido a origem do desencadeamento e intensificação de acções de guerrilha na frente de Tete. A decisão e o seu accionamento já se verificara anteriormente, devido ao anúncio pelas autoridades portuguesas sobre a construção da barragem de Cabora Bassa e o incremento dessa frente resultou do apoio incondicional da Zâmbia à FRELIMO, tal como já sucedia com a Tanzânia.
4. Quanto ao caso Wiriyamu (Dezembro de 1972), e pedindo desculpa aos leitores por esta análise fria de tão dramático acontecimento, na minha opinião, o número de mortos terá sido ligeiramente superior ao indicado pela Cruz Vermelha (centena e meia) e não os 63 referidos por Kaúlza de Arriaga, nem os 400, resultantes de uma “investigação feita pelo Expresso em 1992”.
Recordo que esse número foi muito empolado e depois indicado pela FRELIMO a uma comissão de investigação da ONU. Tal procedimento era habitual na máquina de propaganda (bem montada) daquele movimento guerrilheiro, em que normalmente exagerava bastante os números a seu favor (basta comparar os números de mortos que diziam infligir às tropas portuguesas, com os que foram posteriormente publicados pelo EME). Saliento o referido num trabalho publicado em 1994 e que mantenho:
“(...) O massacre de Wiriyamu veio depois a ser confirmado, em Novembro de 1974, por uma Comissão de Inquérito Internacional anteriormente nomeada pela ONU: cerca de 400 mortos em três aldeias (Chawola, João e Wiriyamu). Esta comissão era constituída por representantes do Nepal, República Democrática Alemã, Honduras, Madagáscar e Noruega, mas não chegou a deslocar-se a Moçambique. No entanto, em confronto com os relatórios originais, quer dos padres da Missão de S. Pedro/Tete (divulgado pelo padre Hastings, em «The Times»), quer das autoridades sanitárias locais, confirmados recentemente por um ex-inspector da DGS, o número de mortos terá sido entre 154 e 188. (...)”
Com os melhores cumprimentos
Manuel Amaro Bernardo