MAJOR-GENERAL MANUEL MONGE 1
P: Pretendia uns esclarecimentos pontuais em relação ao período, decorrido entre o 25 de Abril e o 25 de Novembro de 1975, em complemento da entrevista que concedeste a Maria João Avillez, há uns anos atrás. Um dos aspectos, seria recolher o teu comentário em relação à posição de Freitas do Amaral, publicada no seu livro de memórias, de apoio à descolonização imediata, mesmo antes da Lei 7/74 estar aprovada em Conselho de Estado...
R: Não tenho presente essa atitude. Mas parece-me que ele não era apóstolo de uma descolonização apressada. Tenho a ideia de Freitas do Amaral, como líder do Partido mais à direita do espectro político, ter a preocupação de se apresentar e afirmar, como fazendo parte do bloco dos partidos que se integravam na revolução.
Como te recordarás, nessa altura, ele pediu para ser recebido por Álvaro Cunhal, por ser considerado como o papa da resistência antifascista. A Comunicação Social assim apresentava este líder comunista; não lhe dou quaisquer direitos de exclusividade em termos de resistência, já que uma coisa foi lutar contra a ditadura e, outra, pela liberdade. Ele pugnava pela liberdade para os seus correlegionários, mas defendia um projecto totalitário, do tipo soviético. Assim, não lutava pela liberdade, mas sim por conseguir uma hegemonia em Portugal. Embora tenha muito respeito por tantos que lutaram de acordo com os seus ideais, nomeadamente no campo comunista; esta verdade deve ser dita...
P: Consideras que o CDS tinha necessidade de se afirmar na sociedade de então?
R: Sim. Nessa altura, para conquistar espaço de afirmação política. Depois, em finais de 1974, começaram a ter problemas, pois foram perseguidos, ameaçados e alguns presos.
P: Voltando ainda atrás. Desejava que analisasses o sucedido, na reunião da Manutenção Militar, em Junho desse ano, aquando dos atritos entre a Comissão Coordenadora e os militares, situados junto do então General Spínola.
R: O General Spínola foi lá com o Vasco Gonçalves. Ele fez um discurso do género, há que tomar medidas, há que dar mais força ao Governo; ter mais atenção com a descolonização. Todo o pessoal presente ouviu e nem houve perguntas. Quando saiu, caiu o Carmo e a Trindade, pois os elementos da Comissão Coordenadora puseram toda aquela orientação em causa.
P: Julgo terem também falado o Sá Carneiro e o então Ministro da Economia, Vasco Vieira de Almeida... Estes foram bem aceites?
R: Sim. A maioria dos presentes entendeu a situação.
No entanto, depois, os elementos da Comissão Coordenadora do Programa do MFA (lembro que não é a Comissão Coordenadora do Movimento, mas aquela célula política, autoproclamada e de existência equívoca) manipularam despudoradamente a assembleia. Não estive até ao final. Julgo ter partido nesse dia para Londres, integrado na delegação negociadora do cessar-fogo na Guiné.
P: Em Abril de 1994 (DN de 22-04-1994), o Marechal Costa Gomes, em resposta a acusações do Marechal Spínola, referiu: Eles é que tinham feito a revolução e detinham a legitimidade do poder, pelo que seria absurdo dissolvê-la e limitei-me a levá-la comigo para a Cova da Moura (em relação à Comissão Coordenadora).
Na Capital de 21-04-1994, já tinha afirmado que O Marechal Spínola traiu--se a si próprio, porque entrou numa revolução para a qual não sentia nenhuma convicção.
Que comentário te merecem estas afirmações?
R: Não comento mais afirmações do Marechal Costa Gomes. Nós, os ditos spinolistas, alimentámos, com a disputa entre o General Spínola e o ex-Presidente Costa Gomes, uma querela que só deu visibilidade ao segundo. Se leres o segundo livro das entrevistas de Mário Soares com a Maria João Avillez, verás que, no decurso de 10 anos da história política de Portugal (1976 a 1986), 2 o Marechal Costa Gomes nem uma só vez é referido. Não percamos tempo com ele.
P: Qual era o ambiente social existente em Portugal, depois da tomada de posse do 2.° Governo Provisório?
R: Foi entrando numa fase de cada um fazer aquilo que queria. Dou-te um exemplo. Uma vez chegou-nos a notícia de haver um pedido de tendas militares para actividades de natureza política. O General Spínola considerou haver inconveniente em autorizar tal cedência. Depois, viemos a saber que o Exército não as tinha fornecido, mas a Marinha o fizera.
Outro exemplo do descontrolo e descoordenação é o seguinte: Em relação à descolonização, recordo de que, em Agosto, o Dr. Mário Soares e o Dr. Almeida Santos deslocaram-se a Dar-es-Salam. Quando regressaram, deslocaram-se ao Buçaco, onde estava o Presidente Spínola, queixando-se ter havido uma negociação feita paralelamente pelo MFA, mais concretamente pelo Melo Antunes, à revelia da delegação oficial. Então, o General Spínola começou a sentir-se impotente e estava a preparar-se para ir embora.
P: Mas ainda não saiu nessa altura...
R: Só não saiu porque então foi elaborado o Documento Hugo dos Santos. Isto é, feito por uma ala moderada, liderada por este oficial...
R: Onde estava também o Engrácia Antunes...
P: Sim. E que o terá ajudado a redigir. Depois, esse documento foi posto a circular, para recolher assinaturas. Costa Gomes pôs o visto, autorizando a circulação, mas a seguir, apertado pela Comissão Coordenadora, recuou; por exemplo, deu ordens, por mensagem rádio, para Angola, a proibir a sua difusão.
Assim, perante este clima, o General preparou-se para sair, porque considerou não ter condições para continuar. Não era uma personalidade que soubesse conciliar os contrários, mas com autoridade, habituado a dar as suas ordens e a ser obedecido. Ao ver que isso não acontecia, passou a entrar em stress...
P: E o sucedido no 28 de Setembro?
R: Nessa altura terá havido umas promessas, feitas pelo Galvão de Melo, que queria levar por diante aquela desastrada manifestação da maioria silenciosa...
P: Desastrada, porquê? Ela tinha sido alimentada pelo então General Spínola, em discursos que vinha fazendo do antecedente...
R: Considero que não devia ter sido feita daquela maneira. Não se podia fazer uma manifestação de apoio ao Presidente da República, sobrepondo-se aos partidos organizados ou, no mínimo, sem eles terem tomado uma posição contrária à sua concretização.
P: O PC e o PS tinham tomado posição contra...
R: Claro!
P: Era apenas apoiada pelos partidos da direita, o do Progresso, o Liberal...
R: Mas esses partidos, na realidade, não existiam; apenas se auto-intitulavam como tal. E certo que, depois, o MFA mandou prender os seus dirigentes. Aproveitou o 28 de Setembro para meter na prisão os elementos do Partido Liberal e do Progresso. Depois, foi prendendo cada vez mais à esquerda, de tal modo que, depois do 11 de Março até quis prender dirigentes do PS...
Também quiseram ver aparecer o tal partido verdadeiramente socialista...
P: Através do Manuel Serra...
R: Sim. Ele prestou-se a isso, mas quem lançou a ideia foi Rosa Coutinho. Queria um partido que fosse acompanhando o rumo do PC.
P: O MDP/CDE já fazia esse papel...
R: Sim. Mas esse era um caniche do PCP. Até o apelidávamos de MDP/PC é. Apesar de tal não acontecer inicialmente, pois tinha elementos de grande gabarito, que se portaram muito bem na luta contra o anterior regime e tinham alguma independência. Só que esse espaço acabou por ser ocupado pelo PC...
P: Rosa Coutinho queria, então, um partido verdadeiramente socialista?
R: Várias vezes o anunciou nas Assembleias do MFA, pois não considerava assim o PS, já que, no seu entendimento, este devia ser o compagnon de route do PC.
P: O Rosa Coutinho, há cerca de dois anos, declarou, na Comunicação Social que, antes do 28 de Setembro, estavam previstos levantamentos em Moçambique (dia 16) e Angola (entre os dias 21 e 23). Já alguma vez ouviste falar nestes planos?
R: Rosa Coutinho impediu, no terreno, que a descolonização de Angola decorresse com normalidade. Foi o grande responsável pela situação, que resultou na guerra civil. Desarmou e amedrontou as populações brancas e impediu haver qualquer possibilidade de convivência... Aliás, teve a honestidade de declarar que, na sua opinião, deviam ser criadas as condições para entregar o poder ao MPLA. E foi isso que fez...
P: Por que veio então com aquelas declarações?
R: Para se querer justificar do que fez. Repara que a situação criada impossibilitou a grande massa de população branca e negra de se pronunciar. Assim, acabou por não aparecer a quarta força, fundamental para se realizar uma descolonização controlada. Bastava suceder o que aconteceu na Namíbia e, mais tarde, na África do Sul. Assim, neste segundo país apareceu um partido ligado aos brancos e, no primeiro, outro ligado às forças moderadas. Isto é, partidos a representarem outros interesses, que não apenas os dos movimentos guerrilheiros.
Em Angola, a grande massa da população africana, incluindo os mestiços e a burguesia negra ligada à administração portuguesa, não teve hipóteses de se pronunciar. Uns fugiram, outros foram perseguidos, devido àquelas manipulações, inventando-se golpes que lhes eram atribuídos para, depois, os poderem prender indiscriminadamente.
P: Técnicas idênticas às praticadas aqui no Continente...
R: Claro que eram idênticas. Por exemplo, em Cabo Verde, também prenderam, à traição, os elementos dos partidos que se opunham ao PAIGC. Os quadros superiores foram mandados para Caxias...
P: E ficaram lá todo o ano de 1975...
R: Sim. Eu falo nisto, com conhecimento de causa, porque os encontrei lá. Tal acontecera devido à audácia em se apresentarem como uma força, não ligada aos movimentos guerrilheiros.
O 28 de Setembro no Palácio de Belém
P: Regressemos à situação vivida antes da demissão do então General Spínola...
R: No 28 de Setembro, por exemplo, o CEME e o Vice-CEME, que estavam no Palácio de Belém, deram ordens ao Comandante do Regimento de Cavalaria 7, entretanto chamado à Presidência, para mandar avançar um Esquadrão para a segurança do Palácio, o que não aconteceu. Só o fez, depois, porque eu o fui buscar, a Cavalaria 7. Como te recordas, esta Unidade situava-se a paredes meias com o Palácio de Belém, no quartel onde agora se encontra o Corpo de Intervenção da PSP.
P: Quando foi isso?
R: Quando chegou a notícia de que o Dinis de Almeida ia sair com os seus blindados, para fazer pressão sobre a Presidência. Aquilo sucedeu porque um furriel, às ordens do Otelo, tinha impedido o Esquadrão de sair.
P: Em carta que me dirigiu (13-10-1996), em resposta a um meu inquérito escrito, o Marechal Costa Gomes afirma: desconheço os assuntos tratados com os Presidentes Nixon e Mobutu. Do lado português não houve qualquer assistente, apesar do General Spínola ter sido acompanhado aos Açores pelo Dr. Sá Carneiro e ao Sal pelo General Firmino Miguel e ambos falavam correntemente os idiomas em que as conferências se realizavam. Só tomei conhecimento dos problemas da descolonização, cujas directrizes estavam já traçadas, depois de assumir a Presidência da República (...).
Como comentas estas afirmações?
R: Como já referi, não comento declarações do Senhor Marechal Costa Gomes. Ele pretende autojustificar-se; o que já nem é preciso. O Marechal Spínola morreu, mas continua na memória de muitos portugueses. O Marechal Costa Gomes ainda é vivo. Quem se lembra dele?
P: Desculpa insistir mais uma vez. O mesmo Marechal também refere o seguinte, em relação ao 28 de Setembro: O discurso pessimista e tétrico da renúncia do General Spínola deixou congelado o Conselho de Estado. Todos ficaram na sala, com excepção do General Bruno e do Brigadeiro Durão (que saíram com o General Spínola) e o Almirante Rosa Coutinho, que estava em Angola.
Foi opinião geral que a situação era extremamente grave sob os pontos de vista nacional e, sobretudo, internacional, e que o novo Presidente da República deveria ser nomeado no mais curto espaço de tempo possível. Infelizmente fui praticamente forçado a aceitar a nomeação que não desejava, como aliás tive ocasião de demonstrar na noite de 25/26 de Abril, em que fui eu a propor o General Spínola para essa função. (...)
Que comentário te merecem estas afirmações?
R: As declarações não comento. Mas afirmo-te:
O povo português, pelo seu voto livre, conseguiu corrigir, quando lhe deram voz, os disparates dos revolucionários pró-soviéticos com Costa Gomes a servir--lhes de bandeira, ainda que com pouco poder.
1 Entrevista (1.* parte).
Manuel Soares Monge nasceu em 18-2-1938, em Aldeia Nova de S. Bento (Alentejo). Cumpriu quatro comissões no Ultramar: as duas primeiras em Angola e as outras na Guiné (1968-70 e 1972-74).
Foi eleito para a Comissão Coordenadora do Movimento em 1-12-1973, na reunião de Óbidos. Participou na insurreição do 16 de Março e esteve preso na Trafaria até ao dia 25 de Abril. A seguir foi nomeado assessor do Presidente da República, General António de Spínola, cargo que desempenhou até ao seu pedido de demissão, em 30-9-1974.
Voltou a ser detido, por ter sido considerado envolvido no golpe do 11 de Março de 1975, mantendo--se nessa situação até 31-10-1975. Acabaria por não ser alvo de qualquer acusação, em relação aos referidos acontecimentos.
Foi entrevistado em 12-9-1997, em Lisboa, antes de seguir para Macau, onde desempenhou as funções de Secretário-Adjunto para a Segurança, no Governo do território.
2 Ver Maria João Avillez. "Soares; Democracia". Lisboa, Ed. Círculo de Leitores, 1996.
In MEMÓRIAS DA REVOLUÇÃO – PORTUGAL – 1974-1975, de Manuel Amaro Bernardo (pág. 214 e seg.)
NOTA:
Destaco:
“P: Técnicas idênticas às praticadas aqui no Continente...
R: Claro que eram idênticas. Por exemplo, em Cabo Verde, também prenderam, à traição, os elementos dos partidos que se opunham ao PAIGC. Os quadros superiores foram mandados para Caxias...
P: E ficaram lá todo o ano de 1975...
R: Sim. Eu falo nisto, com conhecimento de causa, porque os encontrei lá. Tal acontecera devido à audácia em se apresentarem como uma força, não ligada aos movimentos guerrilheiros.”
E em Moçambique, Angola e Guiné como foi?
Repito: É evidente que tudo estava combinado antes do 25 de Abril de 1974.
Fernando Gil
MACUA DE MOÇAMBIQUE