ARGEL, semana passada, foi uma oportunidade para exaltar os heróis de todo o mundo, mortos e vivos, com um grande sublinhado aos sonhadores e lutadores da descolonização africana. O pretexto foi a celebração do 50 aniversário da resolução 1514 das Nações Unidas, de 14 de Dezembro de 1960, sobre a concessão das independências dos países e povos colonizados.
Nos corredores do palácio das nações, entre centenas de delegados, durante dois dias, circulavam homens notáveis, perseguidos por câmaras e luzes, acercados por pessoas ávidas de ter deles, um aperto de mão, de dar uma palmadinha nas costas e fazer uma foto para a história pessoal. Eram poucos, porém geniais. Homens de cabelo branco, curvados pela marca do tempo natural e vincados pelo tempo da história. Homens nostálgicos de sonhos da juventude que não a tiveram, como a conhecemos hoje. Kenneth Kaunda, da Zâmbia, Ahmed Ben-Bella, da Argélia, Marcelino dos Santos de Moçambique, só para citar alguns exemplos, são essa marca do tempo, que insistem que a luta continua, porque acreditam na reconstrução das utopias.
Heróis são heróis. Homens de causas, seguidores e escravos de suas utopias, dispostos a quebrar tudo, a começar pelas suas próprias vidas para construir um mundo melhor. O amor, a vida e o altruísmo deles foram como um grão. Tiveram de ser lançados à terra, morrer para germinar como uma floresta prenhe de novas vidas, como proclamaria um poeta anónimo. E em todas as épocas e gerações existem heróis, mais ou menos problematizados. Mas há os do consenso social, os que atravessam fronteiras, raças e religião.
Eduardo Mondlane, Nkwame Nkrumah e Patrice Lumumba são, efectivamente, esses ídolos com registo indelével, que evocamos quando falamos da descolonização africana. Mas qual é a responsabilidade de ser filho dum herói desta envergadura? “Noticias”, presente na Argélia, traz leves opiniões, tiradas em conversas simples, longe das entrevistas clássicas, Samia Nkrumah (filha de Nkwame Nkrumah) e Roland Lumumba, (filho de Patrice Lumumba). Em Maputo, completamos este pequeno, mas grande quadro simbólico, com Nyeleti Mondlane (filha de Eduardo Mondlane) o também nosso herói da descolonização, do além fronteiras.
ENFATIZAR O MODO DE SER AFRICANO – SEGUNDO ROLAND LUMUMBA
Noticias (NOT): como se sente estar presente num evento destes, tendo um pai herói africano e combatente pela descolonização?
Roland Lumumba (R.L.): Como filho de Patrice Lumumba sinto-me orgulhoso pela forma como o governo argelino pensa acerca deste assunto. Mas como cidadão congolês nem tanto, porque sinto que perdeu-se muito tempo nos últimos anos. Continuamos, praticamente, no mesmo sítio (estagnados), se perdeu muito tempo. Entretanto, também temos sinais positivos. Por exemplo, quando o meu pai morreu, ou quando nos tornamos independentes, havia menos de 10 pessoas com o grau universitário e hoje temos milhares de congoleses. Existem outras tantas coisas positivas e negativas, mas o tempo agora é de nos sentarmos e vermos o que fizemos, sejam elas coisas boas ou más, temos que as ver e analisarmos como as fizemos, onde nos encontramos e o que teremos que fazer nos próximos 50 anos.
NOT: O que acredita que deve ser feito nos próximos 50 anos?
R.L: Eu penso que a independência foi a luta que o nosso pai travou. Independência do nosso continente. Agora é altura de lutarmos pelo futuro dos nossos filhos. Temos que lutar contra esta globalização, contra esta forma que o mundo está hoje tomar-se hoje. Temos que ser contra vários “fundamentos dogmáticos” do mundo.”Temos que pensar na influência dos EUA. Os EUA estão a ensinar a sua forma de ser e estar, o estilo americano (...). Não sou contra os EUA, mas temos que diferenciar, temos que enfatizar no nosso povo o modo de ser e estar africano.
NOT: Como filho de Patrice Lumumba qual pensa que seja a sua responsabilidade individual?
R.L: A minha responsabilidade pessoal é muito pequena. Eu acho que Palrice Lumumba é um legado de todos, não só dos seus compatriotas, mas todos os africanos. Patrice Lumumba somos todos nós, africanos que precisam de ver o seu continente, os seus países, o seu povo, melhores do que estão, melhor do que vêm sendo. Eu me revejo nisso e abraço também essa responsabilidade de cada um de nós. Vejo-me assim.
Não é fácil seguir os ideais de Patrice Lumumba, mas é algo que diariamente devemos fazer. Os camaradas do meu pai cumpriram o seu dever de conservar e transmitir-nos esse legado, para que as gerações actuais saibam o que é que Patrice Lumumba defendia. É também por isso que abraço totalmente os desafios que a África segue hoje em dia, no sentido de proporcionar o melhor para si. Devemos todos nos engajar nessa luta, porque somos africanos.
NOT: Como é que nos devemos engajar?
R.L: Muitos de nós enfrentam os risco de atravessar oceanos à procura de melhores condições de vida e o que encontramos na Europa, que é onde vamos, é a ocupação de limpar restaurantes e outros pequenos trabalhos. Penso que já não precisamos disso, hoje em dia, em África. Se trabalharmos internamente, isso não será mais necessário, porque penso que o que temos em termos de recursos é suficiente para nos afastarmos disso. Muitos são os filhos de África que foram enviados para estudos na diáspora. Hoje são detentores de conhecimentos que, bem usados, se podem tornar na chave que precisamos para melhorar a nossa vida. Precisamos de reflectir mais e melhorar, precisamos também de nos engajar na formação de pessoas que possam abraçar estes desafios que são, afinal, a ponte por que devemos andar para alcançar o caminho que queremos.
“TEMOS DE PARAR DE AJOELHAR” – AFIRMA SAMIA NKRUMAH
NOT: Como se sente, sendo filha de um ícone africano, a forma como as pessoas olham para si. Quais que acredita que sejam as suas responsabilidades?
Samia Nkrumah (S.NK): Alto sentido de responsabilidade. Mas deixa-me esclarecer algo. Nós crescemos conscientes de que somos filhos de Nkwame Nkrumah, porém sabemos que no Ghana “somos todos filhos” de Nkrumah. Eu sou uma Nkrumah, por convicção, e não somente de nascimento. Tornei-me muito ligada a Nkrumah e seu pensamento político, depois de ter lido seu livro. Nós crescemos como crianças normais e não com privilégios por sermos filhos de um presidente com prestígio. O governo olhou por nós, mas nunca tivemos privilégios, não éramos ricos.
Para mim e para maior parte dos Nkrumah não vimos a necessidade de reclamar o nome ou o seu legado. Não queremos nos apropriar disso. Por essa razão, quando decidi voltar ao Ghana e entrar na politica fui à base, assumi um círculo eleitoral, não fiquei pedindo os meus direitos de volta ou ficando por detrás da secretaria, comentando. Fomos ensinados que não temos qualquer privilégio, temos simplesmente nos manter em contacto com as pessoas, caso queiramos participar de qualquer actividade politica. Tanto quanto é um privilégio levar comigo o nome Nkrumah é igualmente uma grande responsabilidade perante o meu povo, mas nós nunca reclamamos a propriedade desse nome.
NOT: Quando olha para o legado do seu pai no momento em que se celebra 50 anos de descoloração, o que lhe vem à mente?
S.NK: Que foi uma luta que valeu, claro, uma grande luta. Mas, esse legado, a visão de uma África económica e politicamente independente e auto-suficiente foi em parte, não teve o seu devido prosseguimento. Devemos lembrar que a independência política não era, em si, um objectivo, mas sim um meio de alcançarmos a nossa dignidade. Isto significava não somente alcançar a independência política mas igualmente a independência económica e a auto-suficiência. O que consideramos independência económica, em outras palavras, significa ganharmos nós mesmos com a exportação das nossas matérias-primas e transformar a nossa economia em prol do nosso povo, adicionarmos valor acrescentado às nossas matérias-primas, industrializarmos a nossa agricultura e industrializarmos, no geral, de forma a alcançarmos o bem-estar básico para a população.
NOT: o que faz para dar uma ajuda nesse sonho?
S.NK. Hoje sou parlamentar e represento um círculo eleitoral predominantemente rural, estes que são a maioria no Ghana, e acredito que igualmente por toda África. O que vejo claramente é que 50 anos depois não alcançamos ainda aquelas que são as necessidades básicas da nossa população, falo da água potável, das condições sanitárias adequadas, do adequado fornecimento de energia, acesso aos serviços de saúde, da educação básica entre outros. Para mim, este aniversário vem como um alarme para o nosso senso de responsabilidade e sobre o iremos fazer, baseado numa plataforma continental.
NOT: Esse era o sonho dos pan-africanistas. Acredita que se esteja a ir de encontro ao que foi por eles projectado?
S.NK: Não acredito que esteja a correr bem, mas terá que acontecer tarde ou cedo, para a nossa própria sobrevivência económica. Para a garantirmos a nossa sobrevivência económica, teremos que parar de nos ajoelharmos e aceitar as regras ditadas pelo FMI e pelo BM, porque dessa forma não iremos em momento algum alcançar as metas no que respeita a garantir o acesso aos serviços básicos para o nosso povo. Então teremos que criar as nossas próprias soluções e adequadas à nossa realidade. A união que foi prescrita há décadas, mesmo antes da Europa ter implementado alguns dos seus canais de união como a questão da cidadania comunitária é uma via.
NOT: Será que os jovens africanos, hoje em dia, estão a desenvolver grande envolvimento na vida e pensamento políticos, ou estão apenas a ver as coisas a acontecer e as aceitar?
S.NK: A Juventude é parte da sociedade, não podemos dissocia-la. Os jovens são parte e produto da nossa cultura, não iria separá-los. Porém, não há dúvidas que alguns eventos históricos como a Guerra Fria desestabilizaram-nos, porque de certa forma destronaram os nossos valores que na altura da independência estavam em alta. Aspectos como o patriotismo e entusiasmo político foram com a Guerra Fria e toda sua dinâmica, isso fez com que lutássemos uns contra os outros, ficamos confusos e perdemos a identidade, perdeu-se o sentido das coisas e da construção das nações, tudo isto ficou muito distorcido, adulterado. A Juventude é fruto desta confusão, mas acredito que o que se pode fazer hoje é restaurar aqueles valores perdidos, temos que olhar para o passado e voltar lá para levar o que é relevante. Muito do que ficou no passado é realmente valioso para os dias de hoje. Voltemos para recuperar aquele sentido de objectivo, dignidade, patriotismo, sacrifício e serviço pelos nossos países. Precisamos dessa energia e a juventude está numa boa posição de fazê-lo. Claro que eles têm a força e energia, eles são o grupo populacional em maior crescimento e penso que muitos deles se revê nestas ideias, muitos deles não estão satisfeitos com a sua actual condição.

Nyeleti Mondlane
O MEU PAI ERA TREMENDO VISIONÁRIO – REVELA NYELETI MONDLANE
Not: O mundo celebrou na Argélia os 50 anos da descolonização. Num momento como este, como filha de Eduardo Mondlane que sentimento tem sobre a utopia de Mondlane em relação as independências africanas e de Moçambique? Valeu a pena?
Nyeleti Mondlane (N.M): A primeira vez, que pensei seriamente sobre a questão que agora me coloca foi quando a África do Sul conferiu a Eduardo Mondlane, um reconhecimento nacional, a Ordem Oliver Thambo. O Presidente Mbeki reuniu os filhos de alguns ícones africanos. Na ocasião conheci pela primeira vez os filhos de Lumumba e Nkrumah. Nesse momento percebi que meu pai e seus pares pan-africanistas foram muito ligados ao sonho comum de uma África unida, algo que os próprios africanos acharam uma piada há tempos atrás. E ali estava o presidente Mbeki, falando do renascimento africano! Meus pensamentos eram: então, esses líderes africanos do mundo contemporâneo não se esqueceram dos ideais dos fundadores das nossas nações. Mas é claro que a realidade da modernidade global trouxe desafios complicados aos africanos. Nós em Moçambique somos confrontados com um grande problema. A nova geração não está consciente do que aspiravam os pan-africanistas, eles realmente não entendem por que Mondlane e seus parceiros lutaram, o inicio da luta travada por Mondlane, a sua motivação para pressionar por uma mudança e assim por diante. Como deve imaginar, uma geração de jovens que desconhecem sua história não terá muito que se orgulhar, para proteger ou defender. Será que a luta e os esforços de Mondlane valeram a pena? Claro que sim. Mas, como sua filha não consigo parar de pensar que aqueles que puseram termo a vida de visionários, como Mondlane, causaram um tremendo prejuízo à África e ao mundo em geral. Nenhumas das respostas referentes ao assassinato de Mondlane são suficientes para mim. Até hoje, tenho sido pouco feliz nas tentativas de explicar esta situação aos seus netos.
NOT: Que responsabilidade pesa sobre si, filha dum herói moçambicano, de dimensão africana, da grandeza de Mondlane?
N.M: Mondlane é uma grande figura histórica, mas na minha vida, a pessoa que mais me influenciou foi a minha mãe em virtude do facto de que quando Mondlane morreu eu era muito jovem. Esta situação faz com que o meu papel como figura pública se torne bastante complicado, uma vez que procuro Mondlane através da Janet. Portanto, quando sou apresentada a pessoas como filha de Mondlane, elas tendem a procurar o reflexo do que Mondlane foi. Essa é uma responsabilidade enorme.
Embora, como uma pessoa pública, todos os dias sou confrontada com o peso de ser o que eu imagino que Mondlane gostaria que eu fosse e estar orgulhoso com a imagem da filha, a sua pequena Nyeleti crescida, o que eu sei, e a Janet continuou me lembrando enquanto crescia é que ambos queriam que seus filhos seguissem seus corações, para fazerem o melhor possível na vida e ter orgulho de si mesmos. Como uma família, temos a sorte de ter as centenas de cartas que os nossos pais escreveram uns aos outros, então temos essa rica informação que diz, em primeira mão, diz o que Mondlane pensava de si mesmo, sobre seu mundo e sobre as pessoas ao seu redor. Eu jamais esquecerei, lendo as cartas entre Mondlane e Guebuza há alguns anos, e espontaneamente de Guebuza, afirmando que uma das coisas que coloca Mondlane anos-luz à frente da maioria das pessoas é o facto de ser um tremendo "visionário".
NOT: Pensa que as novas gerações perderam a luta visionária da política? É possível resgatar as utopias de Mondlane e porque faz política?
N.M: Antes de mais nada, estou a aprender sobre o meu país e o meu povo, o país de Mondlane e seu povo, o tempo todo. Portanto, participar activamente na política é uma experiência interessante para mim. É difícil identificar quando eu me tornei um político. Estive sempre cercada de políticos a vida inteira, isso me ajudou a concentrar-se naquilo que é importante para os moçambicanos. Eu sou uma pessoa com cometimento, tenho fortes ideais e convicções. O que eu mais gosto nas minhas actuais responsabilidades políticas, como membro da Assembleia da República, é conhecer pessoas interessantes de todas as esferas da vida que eu não teria a oportunidade de conhecê-las de outra forma, entender os seus desafios e expectativas e junto de meus camaradas buscar formas de satisfazer essas expectativas com realismo. Estou muito feliz por ser capaz de trabalhar com os companheiros muito experientes na Frelimo e conheci igualmente alguns conterrâneos extraordinários na Assembleia da Republica. Estas oportunidades únicas irão me ajudar a crescer como indivíduo. Estou certa de que quando a chegar a hora de compartilhar a minha história com meus netos, terei muito para contar.
- Rogério Sitoe