Por Emídio Beúla
Fotos de Joel Chiziane
O Presidente da República foi esta segunda-feira à Assembleia da República para informar sobre a situação geral da Nação, cumprindo com o disposto na alínea b) do artigo 159º da Constituição da República de Moçambique, conjugado com o número um do artigo 25º do Regimento do Parlamento. Armando Guebuza precisou de cerca de uma hora e meia para fazer a leitura do seu informe de 39 páginas, numa sessão solene marcada por dois episódios extraordinariamente ordinários: o abandono da sala pela bancada da Renamo e a síndrome de exaltação e culto de personalidade ao Chefe do Estado manifestada pela bancada da Frelimo.
O PR (Presidente da República) entrou na sala de sessões às 10:00 horas ao som de uma forte ovação da bancada da Frelimo. Os deputados da Renamo e do MDM levantaram-se em sinal de respeito ao mais alto magistrado da Nação. Mas pouparam-se ao penoso exercício de exaltação da figura do Chefe do Estado.
A Presidente da AR anunciou a presença de 233 deputados dos 250: estavam reunidas as condições constitucionais (número um do artigo 187º) e regimentais (número dois do artigo 23º) para a sessão solene.
Primeiro embaraço: um deputado da Renamo solicitou uma intervenção para apresentar um ponto prévio. O pedido foi terminantemente negado por Verónica Macamo, justificando que em sessões solenes não há espaço para a intervenção dos deputados. A bancada maioritária reagiu ao posicionamento da Presidente da AR com aplausos.
Em seguida, Macamo fez a leitura do seu discurso inaugural, um manifesto louvor à figura do Chefe do Estado feito em nome do povo.
Por exemplo, Macamo disse durante a leitura que não "resistia à tentação de fazer algumas considerações procurando, de algum modo, ser fiel mensageira do sentimento e apreciação dos moçambicanos sobre a liderança de Armando Guebuza".
Foi na qualidade de fiel mensageira do sentimento e apreciação dos moçambicanos que a Presidente da AR disse que o país regista de Armando Guebuza um exemplo de dedicação e liderança, “de quem busca incessantemente soluções práticas e expeditas para o combate sem tréguas contra o inimigo número um dos moçambicanos: a pobreza”.
Vezes há em que o discurso de Verónica Macamo confundia-se com um informe do desempenho do PR: “De facto, a presidência aberta, a atribuição do fundo de iniciativa local, a descentralização e desconcentração administrativas tendo o distrito como pólo de desenvolvimento, a flexibilização dos processos de criação de negócios, são de entre outras, uma panóplia de acções concretas que catapultaram o país para uma dinâmica irreversível de desenvolvimento”.
Estrondosos aplausos voltaram a soar da bancada da Frelimo quando a Presidente da AR falou do prémio Africano de Promoção do Género atribuído ao Chefe do Estado pela Femmes Afrique Solidarité em Dakar, capital senegalesa, e da condecoração com a Ordem Amílcar Cabral outorgada pelo presidente cabo-verdiano Pedro Pires.
Culto de personalidade
Quando Verónica Macamo convidou o Chefe do Estado para dirigir-se à Nação, a bancada da Renamo retirou-se da sala. Enquanto isso, a bancada maioritária ovacionava a descida de Armando Guebuza à tribuna da magna casa.
Intitulado “Os desafios para a segurança alimentar e nutricional”, o primeiro informe do PR na presente legislatura teve o condão de ser ovacionado 19 vezes pela bancada da Frelimo. Uma média de duas ovações por página. Foi nesses intervalos que Armando Guebuza aproveitava para beber água. A primeira vez foi na nona ovação e a segunda na 16ª.
Mas a mais delirante ovação aconteceu quando Guebuza pronunciou as últimas palavras: “Muito obrigado pela vossa atenção”. Houve uma vaga de aplausos da bancada da Frelimo, com todos os deputados em pé e a acompanhar a retirada do PR do pódio. Já na tribuna de honra, Guebuza fez um gesto para que os deputados tomassem os seus lugares, mas estes insistiam em prestá-lo o culto. O PR acenou com a mão, sorrindo para os deputados. Estes responderam com alegria e intensificaram ainda mais os aplausos. Volvidos aproximadamente cinco minutos, a devoção amainou e o Armando Guebuza pôde se sentar.
O informe
No fundo, o PR disse que em 2010 tudo melhorou no país, a começar pela auto-estima até à estabilidade macroeconómica. A unidade nacional, a cultura de paz e a democracia multipartidária consolidaram-se; mais instituições de ensino e de formação de todos os níveis foram construídas em todo o país; mais empregos foram criados pelos investimentos públicos e privados, sendo os jovens os maiores beneficiários; a segurança alimentar do nosso povo melhorou de forma notória; a luta contra a pobreza urbana e rural regista progressos assinaláveis; as instituições públicas melhoraram consideravelmente a sua prestação, registando avanços no combate aos obstáculos ao desenvolvimento, entre eles o burocratismo, o espírito de deixa-andar, a corrupção e o crime; a estabilidade macroeconómica e o ambiente de ordem, segurança e tranquilidade públicas propiciam a atracção de mais investimentos e condições.
Foi por estas e outras constatações que o PR concluiu que “a nação moçambicana está no bom caminho rumo à sua prosperidade”. Este anúncio foi motivo para mais uma estrondosa ovação pelos deputados da Frelimo que fizeram questão de se porem a pé para aplaudir o Chefe do Estado.
No informe, Guebuza elegeu a celebração dos 35 anos da independência nacional como o maior acontecimento do ano.
Quanto às manifestações de 1 e 2 de Setembro, o PR referiu-se a elas solidarizando-se com “os compatriotas que perderam os seus entes queridos”. Não falou da assistência prestada a esses compatriotas. Sobre as causas do que chamou de “agitação de Setembro”, Guebuza apontou para o elevado custo de vida que, por sua vez, foi motivado pelo “comportamento dos preços dos produtos nos mercados nacional e internacional, influenciados pela crise económica e financeira internacional”.
Quanto às medidas tendentes à redução do impacto da crise nos orçamentos familiares, o PR apontou a contenção de despesas com vista à criação de poupanças que possam ser reorientados para o financiamento de bens essenciais, incluindo insumos para a produção alimentar. “Os resultados até agora alcançados são positivos e encorajadores”, disse, sem precisá-los.
A agricultura, cuja componente alimentar dá título ao informe, foi abordada em cerca de 30 pontos. A tónica é a transformação estrutural da agricultura visando progredir de uma agricultura de subsistência para um sector agrário integrado, sustentável, competitivo e próspero que contribua para o crescimento económico do país. Repetiu o discurso da revolução verde, de centros zonais de investigação agrária, edificação de estufas para hortícolas e frutas, construção de celeiros, mecanização gradual da agricultura, plano de produção de alimentos, comercialização agrícola, entre outros.
No fundo, o informe do Chefe do Estado foi uma descrição das acções desenvolvidas e/ou a desenvolver pelo Governo e não necessariamente uma análise das dinâmicas sociais, económicas, culturais e políticas que Moçambique viveu em 2010.
Reaçoes
Informe vazio para MDM
A bancada do MDM acompanhou a leitura do informe do PR sobre o estado da Nação. No final, o seu porta-voz disse que o informe não trouxe nada de novo, indicando que se tratou da repetição do mesmo discurso apresentado em ocasiões anteriores. Para José Manuel de Sousa, era imperioso que Guebuza abordasse as graves acusações contra altos dirigentes do Estado, incluindo o próprio PR, tornadas públicas pelo portal Wikileaks. “Sabemos que aquelas informações podem não constituir verdade, mas seria interessante que o Chefe do Estado falasse do assunto”, disse ao SAVANA.
Outro assunto que o MDM gostaria de ver abordado é o tipo de apoio prestado pelo Estado às famílias cujos membros foram atingidas mortalmente por balas disparadas pela Polícia nas manifestações de 1 e 2 de Setembro nas cidades de Maputo e Matola.
A bancada minoritária queria também ouvir do PR quanto o Estado ganha com as concessões de áreas de exploração mineira a várias empresas, incluindo multinacionais.
Informe rico para Frelimo
Quem saiu satisfeita com o informe do PR é a bancada da Frelimo. Seu porta-voz, Damião José, disse ao SAVANA que o discurso correspondeu às suas expectativas. “Recebemos grandes ensinamentos do PR sobre os caminhos que estamos a percorrer no combate à pobreza”, elogiou.
Sobre a “deserção” da Renamo, Damião José indicou que a atitude são surpreende: “Infelizmente nós temos representantes do povo que não tem cultura de Estado”.
Sobre o caso Wikileaks, o porta-voz da Frelimo minimizou a sua relevância para constar do informe.
“Respeitamos que existam expectativas em ouvir explicações sobre isso, mas para nós o caso não é relevante para merecer a atenção do deputado muito menos do PR”, afirmou, reiterando que o Chefe do Estado fez bem por não ter feito referência ao assunto.
Lembre que a Frelimo sempre desqualificou as notas diplomáticas da embaixada americana em Maputo publicadas pelo Wikileaks, referindo-se a elas como informações infundadas e tendenciosas, baseadas em boatos, que visam manchar a imagem do país e dos seus dirigentes e desviar a atenção dos moçambicanos da sua agenda de combate à pobreza absoluta. Foi com este discurso que a bancada da Frelimo inviabilizou a proposta do seu maior opositor, a Renamo, que solicitava a ida do Governo ao plenário da AR para dar explicações sobre as acusações.
Razões do abandono
Uma hora depois da sessão plenária, a bancada da Renamo deu uma conferência de imprensa na qual explicou as causas da sua retirada da sala.
No fundo, os motivos estão relacionados com a inviabilização, pelo voto maioritário da Frelimo, do seu requerimento para o agendamento do caso Wikileaks ao abrigo do qual o Governo seria intimado a dirigir-se ao Parlamento para explicar aos deputados a suspeição do envolvimento no tráfico de drogas de altas figuras do Estado, incluindo o Chefe do Estado.
A Renamo disse ainda que ao requerer o agendamento para esclarecimentos tinha em vista a imagem do PR, sabido que ele ia à AR.
SAVANA – 24.12.2010