É sabido, abandonadas as utopias de há décadas, as comemorações de feitos gloriosos deixaram de alentar as promessas em futuros ridentes. Ainda assim, num mundo instável e incréu, as evocações têm a função de promoção da unidade e da coesão social e política no comum das sociedades. Elas fazem-se pela exploração de sentimentos suscitados pelo exemplo das ideias, pelo curso dos eventos ou, ainda, pela trajectória de personalidades. Por ocasião dos 90 anos do seu nascimento, chegou o tempo de lembrar Francisco Tenreiro?
Francisco Tenreiro, um paradoxal mas sugestivo legado
Por Augusto Nascimento
Instituto de Investigação Científica Tropical, Lisboa
É sabido, abandonadas as utopias de há décadas, as comemorações de feitos gloriosos deixaram de alentar as promessas em futuros ridentes. Ainda assim, num mundo instável e incréu, as evocações têm a função de promoção da unidade e da coesão social e política no comum das sociedades. Elas fazem-se pela exploração de sentimentos suscitados pelo exemplo das ideias, pelo curso dos eventos ou, ainda, pela trajectória de personalidades. Por ocasião dos 90 anos do seu nascimento, chegou o tempo de lembrar Francisco Tenreiro?
Começo por dizer que, sem embargo das homenagens, não tenho dúvida de que São Tomé e Príncipe está muito longe do que alguma vez Francisco Tenreiro terá idealizado para a sua terra. Daí a pergunta: a que vêm as homenagens ou, de uma outra perspectiva, em que medida elas podem contribuir para a tessitura de uma coesão política e social e para a (desejada) reconstrução da irmandade são-tomense (que a alguns terá alentado na era das esperanças postas no fim do colonialismo)?
Situemos o curso da memória de Francisco Tenreiro que visitou várias vezes a sua ilha natal e que, em Lisboa, ainda jovem, privou com jovens africanos que se tornariam figuras da luta pela independência das então colónias portuguesas e dos quais, à primeira vista, entrementes se afastara. Muito precocemente, morreu deputado pelo arquipélago em 1963. Após a independência, apesar dos topónimos e da circulação local de alguns textos que o mencionavam, Francisco Tenreiro foi sendo esquecido nas ilhas, pois que o não ter sido um político independentista o remeteu para um limbo, em consonância com o sucedido com os que não estiveram do círculo do poder erigido em 12 de Julho de 1975. Facto próprio dessa época, tal esquecimento não foi senão uma das injustiças muito comuns na história e que, por assim dizer, o tempo vem a remediar. E bem. Até porque, conquanto criticada, a sua produção científica afigura-se-me mais inspiradora do que a muitos cientistas sociais de hoje e do que a “obra” de incensados líderes políticos, cujos méritos científicos e literários, atestados por discursos de correlegionários e amplificados pelas estruturas do poder, não devem ser inferidos do mérito do desempenho político propriamente dito.
Em todo o caso, depois de esquecido durante anos, Francisco Tenreiro – inquestionavelmente, o vulto intelectual são-tomense da segunda metade do século XX – veio a ser lembrado pelas autoridades do país. Hoje, Francisco Tenreiro anda literalmente nas mãos dos são-tomenses, pois que a sua efígie está estampada nas notas de 100.000,00 dobras. Nem todos os discursos sobre os significados subliminares são legítimos porquanto podem não colar à realidade. Mas, diríamos, substituir o imaginado heroísmo de Amador (santificado porque vitimizado por uma traição e valorizado por leituras anacrónicas dos seus actos) pela evocação da produção poética e científica de Francisco Tenreiro, transbordante de afecto pela sua terra, constituiu um passo cujo significado só não é maior pelo diminuto curso do debate sobre os processos identitários em São Tomé e Príncipe. De alguma forma, esqueceu-se o posicionamento e a crença política de Francisco Tenreiro – relembremo-lo, um expatriado –, acerca do qual não se pode presumir que viesse a ser um adepto da independência da sua terra, e, ao invés, valorizou-se o seu contributo literário, decerto mais prezado do que o científico. Seja como for, a homenagem inerente à sua adopção para a nota de 100.000,00 dobras, a mais valiosa, é tão mais relevante quanto ele contrariou o radicalismo de épocas não muito distantes. E, arriscaríamos especular, a ser vivo, ele contrariaria o curso do país independente. Sem que isso beliscasse a relação quase simbiótica com a sua terra. Por isso, importaria, talvez, aprofundar as consequências deste primeiro passo no sentido de restituir Tenreiro ao lugar do afecto dos são-tomenses.
Esclareça-se, Tenreiro não repetia a vulgata nacionalista e colonial da excepcionalidade portuguesa, da vocação orgânica ou do encargo divino da disseminação da fé católica da nação lusa, obrigada, por isso, à colonização. Ou, com maior precisão, aludiu a uma plurissecular tradição portuguesa de colonização para, justamente, salientar que teria sido abandonada nos derradeiros séculos em São Tomé e Príncipe com resultados perniciosos para todos os envolvidos. A seu ver, a capitulação do poder colonial perante os interesses das roças tinha alienado outras facetas da colonização portuguesa. Esta construção correspondia a uma subliminar reivindicação política em prol dos seus conterrâneos que, outrora súbditos e vassalos da Coroa – a quem se dirigiam para obter justiça face aos desmandos dos governantes locais, incluindo os reinóis –, teriam visto rebaixado o seu estatuto de cidadãos por causa de décadas de política subserviente perante a hegemonia dos roceiros.
É forçoso reconhecer, para Tenreiro, o nacionalismo português terá parecido mais ajustado do que qualquer outra proposta política para enquadrar a identidade cultural dos são-tomenses. Nessa óptica, Francisco Tenreiro revelou-se particularmente útil ao conservadorismo do poder colonial: sendo são-tomense, a sua integração no sistema político em representação da sua terra derivava do seu percurso metropolitano e não de quaisquer movimentações políticas no arquipélago que pressionassem o poder a concessões. Por outras palavras, para Lisboa, em tempo de sopro de ventos de mudança, o arquipélago não podia ter representação mais apropriada, sem que, todavia, o poder colonial tivesse tido de promover elites locais ou de atender a demandas destas, aliás, incapazes de as formular e, por maioria de razão, de uma combativa acção política no arquipélago. Esta é a leitura que nós podemos fazer hoje, mas, cumpre lembrá-lo, não seria nem a deliberadamente gizada pelos decisores coloniais, que amiúde iam decidindo ao sabor de ventos e marés de ocasião, nem, tão-pouco, a de Francisco Tenreiro. Ele terá pesado os prós e os contras das várias possibilidades políticas e, decerto à margem de instrumentalizações grosseiras, prestou-se a um desempenho político que, é legítimo crer, seria porventura mais determinado pela avaliação de um futuro plausível para a sua terra do que por uma adesão cega a um nacionalismo português que, em todo o caso, por esse tempo ia alijando as suas roupagens mais passadistas e gravosas.
Cônscios da finitude da condição humana, por demais evidente na (não) concretização da equidade imanente aos projectos independentistas e indutora, quando não de arrependimentos, ao menos de dúvidas entre os próprios são-tomenses, quem atirará a primeira pedra a quem, parecendo ter pendido para para o país colonizador, inegavelmente tinha o coração em África?
Justamente, a opção política de Francisco Tenreiro merece ser, não ponderada à luz de uma inflamada proclamação de fidelidade identitária são-tomense, mas compreendida a partir do estudo aturado da sua leitura do mundo baseada no seu percurso científico. Repise-se que tem pouco sentido produzir uma adjectivação mais ou menos panfletária sobre a sua obra (porventura menos lida do que comentada) e sobre as suas pertenças afectivas e políticas. Ao invés, talvez valha a pena analisar alguns dos seus pontos de vista à luz do ambiente político dos derradeiros tempos no arquipélago, estabelendo, dessa forma, um diálogo entre as suas concepções e as nossas (de hoje). Repetindo-nos, diferentemente da atitude de políticos no ante e pós-independência, valerá a pena recordar e aprender com Tenreiro, apetrechando-nos, de caminho, para escrutinar e repensar a sociedade são-tomense.
Por razões de economia de texto, não cabe aqui uma rigorosa exegese do acervo científico de Tenreiro. Centremo-nos, então, na mestiçagem ou, se quisermos, nas celebradas metanarrativas da etnogénese dos são-tomenses. A hoje tão evocada crioulização era valorizada por Tenreiro (na verdade, ele falou de mestiçagem, uma palavra da sua época e que actualmente tem um sentido redutor, quando não politicamente carregado). Segundo Tenreiro, mais do que a religião ou a língua – elementos de socialização que tinham contribuído para determinar a feição do são-tomense –, a mestiçagem constituíra um harmonizador das relações sociais e um elo de ligação importante na compósita sociedade insular, onde o politicamente decisivo da integração se referia aos elementos culturais e institucionais transportados pelos portugueses. Embora tributária de paradigmas ideológicos da época, a sua noção de mestiçagem tinha um papel na explicação da superação da violência disruptiva que, em séculos anteriores, acompanhara a génese da sociedade são-tomense pautada pela escravatura. Embora a ideia de harmonia social ou, por outra, da afabilidade dos ilhéus tenha acabado por se tornar um lema ideológico instrumentalizado pelo poder colonialista, nem por isso deixou de ser abraçado pelos são-tomenses como uma imagem de marca de si mesmos e da terra. Retornando a Tenreiro, a ser vivo, certamente trocaria a sua noção de mestiçagem pelas modernas teorias da crioulização, entendidas como processos de troca e, sobretudo, de contínua criação de novas realidades a partir de referentes anteriores, na circunstância, portugueses, africanos e outros.
Actualmente, esgotado o curso das enunciações sobre São Tomé e Príncipe como sociedade crioula (enunciações de uma fase não muito distante em que, ao mesmo tempo em que se abraçava o ideal socialista, se valorizava a herança europeia), essa dimensão da crioulização vem sendo trocada pela da africanização e, mais, por uma deriva denotada pela evocação da são-tomensidade ou santomensidade. Afloram laivos de essencialização na evocação dessa ‘realidade’ cultural, diga-se, ainda pouco densa e pertinaz nos seus métodos e conteúdos. Na medida em que se revelar excludente, tenderá a favorecer uma atitude que se tem revelado prejudicial em São Tomé e Príncipe, a saber, a da avaliação de realidades da vida colectiva pela dimensão do arquipélago e não pela do mundo, a que importa estar aberto, como, não obstante as dificuldades apostas por um regime ditatorial, Tenreiro conseguiu estar há cerca de meio século.
Ainda se sabe pouco das suas motivações políticas – que não podem ser resumidas à sua condição de deputado do Estado Novo, já depois de ter convivido com os que partiram para a luta de libertação – e acerca destas, em abstracto, importaria lembrar que seriam, nele como no comum das pessoas, mais contingentes do que se tende a imaginar. Mas talvez seja possível alvitrar que o unanimismo e os constrangimentos, efectivos e potenciais, da acção política anti-colonial diriam pouco ou nada à fina sensibilidade científica e poética de Francisco Tenreiro. Quiçá baseado numa intuição política escorada na sensibilidade poética, ele terá antevisto e, porventura, até compreendido mas também rejeitado alguns dos caminhos atinentes à libertação das terras africanas do colonialismo.
Não sabemos como teria reagido a uma evolução política avessa ao trilho por si escolhido. A ser vivo, é crível que o afastamento tivesse prevalecido nos primeiros anos da independência, pautados pelo fervor revolucionário. Isso não o apartaria da sua terra de nome santo, mas talvez o país se tivesse esquecido dele, como, de alguma forma, sucedeu.
Cada vez mais africanizada, a sociedade são-tomense vem-se distanciando das visões traçadas por Francisco Tenreiro. E aqui, sim, poderia haver razão para cepticismos sobre a sua caracterização de São Tomé e Príncipe. Mas, da sua obra científica, não se retirará nada nem para o conhecimento do arquipélago nem para as artes da política?
Permita-se-me dizê-lo, tenho crescentes dúvidas em relação ao papel do conhecimento histórico (e, em geral, do saber social) na modelação das sociedades, menos pela valia do saber do que pela voragem da vida corrida ao ritmo das novidades. Em todo o caso, estou convicto de que a profusão e a hegemonia de um pensamento acrítico, auto-referenciado e volátil podem redundar numa barbárie moderna, por exemplo, a mais rematada indiferença perante o sofrimento humano. Neste particular, estou em crer que, independentemente das suas opções políticas e por paradoxal que pareça ao voluntarismo do viés nacionalista são-tomense, a postura de Tenreiro era de militância contra a indiferença face à marginalidade e ao consequente sofrimento dos seus conterrâneos.
Se, para além das evocações rituais e da proclamada identificação afectiva, sobrar tempo e razão para ler e reler Tenreiro, quais as ilacções que podemos tirar da sua produção científica, mormente no arquipélago, onde, ao longo de sucessivos regimes políticos, o conhecimento histórico e o saber social foram mobilizados para a legitimação de sucessivas arquitecturas políticas? Que lições podemos aprender com ele hoje, num tempo em que a recorrente remissão para os “nossos (são-tomenses) valores” parece denotar alguma incapacidade em colocar o arquipélago em compasso com as mudanças no mundo?
Cumpre-nos realçar a actualidade da sua atitude científica. Francisco Tenreiro conseguiu subtrair a sua obra científica aos ditames dos políticos (num certo sentido, menos constrangedores no seu tempo do que em certos períodos do pós-independência). Alardeando um saber e uma entrega incansável ao objecto da sua paixão, a sua obra denota abertura para o cotejo e para a utilização conjugada de diferentes perspectivas de análise. Para além de notável, A ilha de São Tomé é um manual de bem construir saber social.
A alguns – mormente aos que nunca escreverão nada datado! –, a sua obra parecerá ultrapassada. Nalguma medida, tal decorre de uma evolução da sociedade são-tomense que ele (e, em tempos mais recentes, também outros são-tomenses) terá julgado impensável. Desta perspectiva, a sua obra vai-se efectivamente tornando datada, o que não significa que perca valor para a interpretação da história e, sobretudo, da sociedade são-tomense de meados de Novecentos. E, assim sendo, para qualquer obra sobre a história do arquipélago.
Há, pois, uma primeira lição a retirar. Ela diz respeito à necessária inquietação política e moral, assim como à capacidade de auto-interpelação em termos individuais e sociais. Tal atitude vale para a construção do saber, mas vale igualmente para a prática política, pois a capacidade de expor dúvidas e manifestar abertura para o diálogo é uma premissa de práticas políticas fiáveis e promotoras de confiança e de coesão, que não da marginalidade dos segmentos desfavorecidos.
Há uma segunda implicação, decorrente não apenas da sua metodologia compósita, mas também do significado da valorização da miscigenação e da religiosidade (na circunstância, a católica). Muitos interpretarão tal valorização como a aplicação passadista de esquemas interpretativos serôdios porque estafadamente manipulados pelo poder colonial. Por mim, prefiro entrever nesse leque de factores constitutivos do homem são-tomense, tal qual o concebia Tenreiro, a valorização da humanidade dos seus conterrâneos, tão universal quanto qualquer outra. Essa não é menos precisa nos dias de hoje.
Actualmente, o que decorre dos seus pressupostos políticos e (extrapolando) morais é a pertinência da procura de consensos e de uma ética cosmopolitista como plasmas da acção política. Tal não seria uma questão do seu tempo, mas, da sua narrativa histórica e social, assim como da sua vida, algo parece apontar nesse sentido. Seja como for, tais metas são um horizonte para o nosso tempo, horizonte actualizado pela crescente importância das diásporas e das vidas transnacionais, condição, de certo modo, partilhada por Tenreiro. Independentemente dos modismos ou das raízes identitárias – da são-tomensidade, da africanização e de outros procurados veios culturais –, talvez valha a pena cultivar uma ética cosmopolita para aí firmar a trajectória do arquipélago, que, independentemente das voltas e reviravoltas da história, também foi de Francisco Tenreiro. Assim como o é dos são-tomenses que vivem fora, parte deles igualmente com o coração na sua África.