O azul do índico Por: Afonso Brandão
(Viagem ao Fundo da Gaveta do Esquecimento)
Nunca admitiu que a mulher morrera. A palavra estava rigorosamente suprimida do seu vocabulário e, por derivação, do vocabulário dos outros. Uma espécie de cerimonial do silêncio, respeitado por todos aqueles que haviam conhecido o casal. Quando a ela se referia, dizia: «Foi indo». e permanecia assim, hirto e rígido, fixando quem o escutava como num desafio.
A casa estava cheia dela, do seu perfume, dos seus retratos: uma cronologia de rostos, de sorrisos, de gestos: o casamento, a viagem a Santiago de Compostela, os três filhos, os oito netos. Fora uma união constituída numa identidade de imperfeições. Ele costumava dizer: «O nosso casamento resistiu a tudo, sobretudo aos estragos e às ruínas do tempo. O único que se manteve , entre os da nossa geração».
Às vezes vagueia pela casa enorme, conversa com a mulher que foi indo, criando diálogos derivados das situações quotidianas. A casa, na Av. 24 de Julho, possuía um corredor enorme e os quartos eram espaçosos e claros. Lembra-se de ter lido, em tempos, «A Sombra dos Dias», do jornalista Guilherme de Melo, então Chefe de Redacção do Jornal NOTÍCIAS, que falavam daqueles sítios da antiga Lourenço Marques (hoje Maputo) com áspera ternura. Os romances, então, ensinavam-nos a olhar as coisas com outras atenções, e até nos treinavam para comentar e criticar a época e os hábitos. Costumava ler poemas em voz alta para a mulher. Os poetas daqueles anos, bem entendido, e gostava, particularmente, do poema «AMOR, EXACTAMENTE UMA CIDADE», um lindo poema de Carlos
Serra (pai), que chegou a conhecer no Restaurante Djambo de outros tempo, onde se reuniam escritores, jornalistas, gente do cinema. Conversara, avulsamente, com nomes como Rui Cartaxana, Barata Feio, Areosa Pena, José Craveirinha, Mota Lopes, Eugénio Lisboa, Calane da Silva, o poeta Reinaldo
Ferreira (o célebre «Repórter X»), Manuel Mota, Roberto Cordeiro, Ângela Caires, Peixe Dias, Sobral de Oliveira, Abel Faife e apreciara o tom arrastado da conversa que mantinha, amiúde, sobretudo com a poetisa Irene Gil, uma sabedoria antiquíssima e uma integridade lisa, limpa e firme.
Tinha lido todos aqueles de quem gostava. Ocasionalmente, passeava por esses lugares, e parecia-lhe ver as sombras fugidias, os sons das conversas, o ruído dos copos. Ainda foi tentado a escrever uns textos breves, sobre aquilo que via. Percebeu, porém, que lhe faltava o sentimento secreto da escrita, o impulso que, por exemplo, levava o Heliodoro Baptista (que conhecera na Beira, em finais dos anos 60) a contar uma história a que toda a gente assistira, mas a que ele dava um toque, uma música muito particular, tornando-a diferente.
A mulher dizia-lhe: «Tenta, tens de insistir». Ele sabia que não dispunha dessa música leve e única que faz com que as palavras pareçam solfejo. Se calhar, as palavras são mesmo solfejo.
Leu-lhe uns casos, inspirados na vida real, mas compreendeu, pelo olhar dela, que os escritos não prestavam para nada.
Desistiu. Contudo, não deixava de pensar, ao ler crónicas, livros e histórias dos outros, que escrever era muito fácil.
Tem saudades da mulher, de sentir o corpo quente dela na cama, dos seus ralhos e, até, dos seus constantes queixumes. À medida que o tempo foi correndo o rosto, os gestos, o modo de andar tornaram-se cada vez mais nítidos e definidos. A voz, o registo da voz, é que se perdera. A voz é a primeira a desaparecer da nossa memória, uns anos depois da saída da pessoa amada.
Parece uma punição insustentável, tanto mais que, de contrário, seria bom conversar com ela, com essa voz.
Ninguém o visitava. Os filhos tinham as suas vidas; no entanto, bem poderia, de vez em quando, ir lá a casa, para ele ver os netos. Era o silêncio em torno de si. O silêncio não o assustava nem atemorizava. Com frequência permanecia na cama até tarde. Gostava de pensar em factos remotos, de rememorar a sua vida sem sentido, cheia de hipóteses incumpridas, de sonhos sem solução.
Também gostava de ir à Baixa, olhar para as mulheres, sentir os seus perfumes, os odores dos corpos. Como eram diferentes os tempos de toda aquela azáfama que se respirava no «Scala» e no «Continental». Agora cansava-se muito; até demasiado e "aquelas" pastelarias já não eram mais os espaços que ele conheceu no tempo muito anterior à Independência de Moçambique... E recordava o seu passo antigo e desenvolto. Mas logo suprimia a imagem por demasiado penosa.
Apreciava futebol, ouvia alguns relatos através da Rádio Clube de Moçambique, aos Domingos à tarde. A Rádio era o sustento do seu tempo.
Sentava-se no sofá, horas e horas a fio, comia uma sandes, uma peça de fruta, e adormecia. Gostava de ler o «Diário» e o «Notícias», apenas uma vez por semana.
Era o tempo dos excelentes jornalistas que ele tão bem conhecia, agora as coisas eram outras, diferentes, e não sabia se melhores. Sabe, isso sim, que a maioria deles escreve mal e que não têm qualquer experiência profissional alicerçada. Aqueles (outros) jornalistas serviam-se de palavras que favoreciam a sua imaginação, como se tivesse visto, directamente, os jogos por eles narrados.
Os de hoje nem falar sabem... (desabafava para dentro de si).
Decidira, naquela manhã, sair um pouco. Talvez caminhar até ao Jardim dos Namorados, sentar-se e atirar umas migalhas de pão aos pardais. Sentiu, de súbito, um imenso cansaço, uma indolência inexplicável, uma desistência do corpo.
Deitou-se, cerrou os olhos e foi indo.
WAMPHULA FAX – 27.01.2011