CORRESPONDÊNCI@
Por: António Botelho de Melo, Lisboa
Nota do Editor: Por lapso, na edição de ontem não referenciamos que o presente artigo a sua conclusão seria na edição seguinte, pelo que apelamos a melhor compreensão dos estimados leitores e sinceras desculpas especialmente dirigidas ao autor do mesmo. Sendo assim, a parte conclusiva do artigo é a que se segue
Logo a seguir veio a linha de caminho de ferro. Pelo meio, um dúbio experimento desenvolvimentalisteiro muito na moda na época, a companhia majestática. Foi um desastre controlado e Salazar acabou com aquilo eventualmente.
Para lá migraram alguns portugueses (de referir o enigmático Jorge Jardim, uma espécie de quinta coluna de Salazar) e uma curiosa mistura de gentes vindas de todo o mundo, entre elas o pai da actual Duquesa de Kent, um senhor barão alemão fugido dos Nazis ou dos Aliados (nunca percebi mas muitos britânicos juram a pés juntos ele que era um ex-Nazi) que acampou numa herdade que comprou, a meio caminho entre a Beira e a fronteira britânica a Oeste, onde viveu calmamente até 1976, quando se fartou da Grande Revolução e deixou a então nascente nação.
A Beira cresceu vigorosamente, especialmente entre 1960 e 1974, pois a economia moçambicana então estava em fase de pré-takeoff e a Rodésia (mais tarde dominada por Ian Smith) ainda mais. O porto e o caminho de ferro eram a sua espinha dorsal e, sendo a única cidade digna desse nome na região, era o centro administrativo, político e económico do centro de Moçambique. Generosamente, os CFM ali mandaram fazer uma estação de comboios que é um verdadeiro monumento ao espírito da época. Quando refizeram o aeroporto nos fim dos anos 60, era maior que o da capital ao Sul.
Aspecto de Salisbúria, capital da Rodésia, anos 60. Em 1980, as toponímias foram alvo de upgrade
Em meados 1975, Samora Machel, para quem a Luta de Libertação afinal só começara, mandou bloquear o acesso rodesiano ao mar. Formalmente, estava apenas a cumprir com estipulações de entre outros, as Nações Unidas e a Grã-Bretanha. Claro que na realidade a intenção era “libertar” o país vizinho do jugo do regime racialmente afectado dos rodesianos e instalar lá o seu homem: o então discreto e culto Robert Mugabe.
Nesse dia, para todos os efeitos, um pouco como acontecera com o Grande Hotel anos antes, a Beira inteira fechou para obras.
Após a inauguração do mandato de Robert Mugabe em 1980 (que após 31 anos ainda perdura) a coisa melhorou, e era suposto melhorar muito, não fosse o facto de que então a Renamo já estava no terreno a causar todo o tipo de desacatos.
Em 1994, a coisa desanuviou em Moçambique com os acordos de paz assinados em Roma. Lentamente, começou novamente a falar-se em fazer alguma coisa na então já martirizada cidade e região circundante. Podia fazer-se negócio novamente com o (agora) Zimbabué.
Só que foi sol de pouca dura, por duas razões.
A primeira é que – e não pretendo entender de políticas locais – curiosamente, a Beira, se calhar um pouco como nos tempos da outra senhora, em que persistia um ambiente de amigável rivalidade com Lourenço Marques (em resposta a um lema da Beira que era “Beira, Cidade do Futuro”, os de LM maliciosamente complementavam a frase com “… a Aldeia do Presente”) e em aparente total falta de sintonia com praticamente todo o país, vota a Renamo para presidir à municipalidade, situação que dura até agora. Assim, politicamente, aquilo hoje é um pouco como aquela aldeia de gauleses dos livros do Astérix, rodeada do inimigo romano por todos os lados, neste caso a Frelimo fazendo o lugar dos romanos. Com as previsíveis consequências de, certamente por pura coincidência, ou não, ali digamos parecer menos urgente mostrar serviço. Na última eleição presidencial, o boss da Beira, um Sr. Simango, até formou um partido e concorreu a presidente da república.
A segunda razão para os azares da Beira foi que, por causa de uma trica tipicamente africana no Zimbabué (os brancos locais tiveram a lata de se atreverem a apoiar em bloco a oposição ao partido do Sr. Mugabe numa eleição) este decidiu puxar-lhes o tapete por debaixo dos pés, com aquele discurso, sempre tão popular em África, do colonialismo, dos brancos usurpadores, da necessidade de corrigir os males do passado, que África é para os pretos, etc e tal. No espaço de semanas, os brancos estavam a levar pontapés na cara e a economia do Zimbabué deu um dos estoiros mais épicos de que há memória naquele país. Como dizia a personagem (um rodesiano) interpretada pelo actor Leonardo Dicaprio no filme Diamantes de Sangue, que foi em parte rodado em Maputo, “TIA”: This Is Africa.
Só que, por tabela, adivinhe o exmo. Leitor quem foi entre os primeiros a sofrer com as consequências.
A cidade da Beira, claro.
Assim, até ver, o Zimbabué está mais ou menos de pantanas.
Mas há esperança para a Beira. Em breve o porto vai voltar à vida, se se tiver em conta a reactivação da linha ferroviária para Tete, que vai finalmente começar a trazer as montanhas de carvão que lá estão debaixo do chão.
E o Senhor Mugabe por estas alturas tem para aí uns 87 anos de idade. É seguro estimar-se que ele não vai durar para sempre.
Em breve, então, a Beira está condenada a voltar à vida.
E isso ditará o que vai acontecer à ruína que resta do Grande Hotel da Beira.
Nessa altura, aposto dez dólares que a sequência de eventos será mais ou menos esta: 1) alguém de Maputo cujo nome ninguém conhece, através de uma empresa criada para o efeito, com os habituais vinte por cento de uma grata figura da Nomenclatura, obterá a concessão do terreno onde está situado o que resta do Grande Hotel; 2) um misterioso e bem oleado consórcio se formará do nada, cheio de dinheiro de proveniência mística (preferencialmente, do Dubai) e anunciará a construção de um mega-complexo qualquer; 3) as pessoas que ainda lá estão, discretamente levam um pontapé para um subúrbio qualquer; e 4) a ruína é demolida.
E a vida continuará, desta vez, espera-se, sem a dialéctica mística, escorregadia e esdrúxula do outrora malfadado hotel da Ponta Gêa, retratada em filmes como o de cima.
O AUTARCA – 24.02.2011