CORRESPONDÊNCI@
Por: António Botelho de Melo, Lisboa
Confesso que não entendo de todo o fascínio com o tópico do Grande Hotel da Beira, antes e agora, e muito menos a pretensão de dialética tépida que meia volta alguém se lembra de dizer existir em relação àquilo. Um filme recente, decalcado na apresentação em cima, é um desses exemplos, talvez elevado a um novo nível, em que intercala o passado e o presente com o fim de…não entendo.
O Grande Hotel da Beira foi aquilo que os americanos chamam (transliterando) um Elefante Branco do tempo da administração portuguesa.
Um tal Sr. Brandão (“um tal” é eufemismo meu: ele era o Número Um da Companhia de Moçambique, que na altura era ainda um potentado na Beira) lembrou-se de fazer um mastodonte grande demais, caro demais, na altura errada e no sítio errado. Pensava-se que o hotel serviria para as zonas adjacentes, incluindo o magnífico Parque Nacional da Gorongosa, uma das maravilhas de Moçambique e do mundo, ali ao lado.
Só que nada aconteceu, a não ser o governo rodesiano ter apresentado uma queixa formal em Lisboa contra o funcionamento do hotel.
Ou melhor, na verdade a história é outra: hoje provavelmente poucos se lembram que o nome formal do hotel era “Grande Hotel Casino da Beira”. O Grande Hotel era para ter um casino, que seria a chave crucial para o seu sucesso, sem a qual nada daquilo faria sentido. Só que a Rodésia já (ou também) tinha um hotel com um casino em Victoria Falls. Pressionado, o governo português (inacreditavelmente) retira a licença de jogo ao Grande Hotel, prenunciando a sua morte prematura. Brandão ficou fora de si.
Para cúmulo, a seguir o dono do casino de Victoria Falls, o Senhor Simon Arch, vem à Beira e tenta comprar o complexo a Brandão. Mas Brandão não vende e manda fechar as instalações. Furioso, desinteressa-se pelo projecto. O grande Adelino Serras Pires, que viveu e acompanhou de perto o processo, referiu:
“Na altura viajei ao lado do Brandão no percurso Johanesburg-Paris, tudo organizado por mim e pelo Simon Arch, proprietário do casino de Victoria Falls e dono de várias joalherias em Salisbury, Lusaka, etc. O Brandão, furioso porque em Lisboa tinham cancelado a licença do casino, recusou vender o hotel ao Arch e declarou se marimbava para o hotel. Em França, estive uma semana em casa do Simon, que ficava em Nice. Ele era um Judeu, um homem brilhante.”
Porque no que concerne o resto, os rodesianos que vinham a Moçambique acampavam nas praias e os milionários americanos e europeus que iam ao Parque da Gorongosa de facto gostavam de pernoitar nas suas parcas instalações ao estilo de John Wayne no filme Hatari.
E assim como qualquer negócio em qualquer parte em que não havia procura para o seu produto, aquilo cedo faliu e fechou. E permaneceu mais ou menos fechado mas mantido por quem de direito, até 1975. Para mim, é mais ou menos fim de história quanto a esse capítulo.
Comentário a algo que é dito no filme e que é uma vergonha: Brandão era tudo menos louco.
Não me parece à partida que este percurso dê para se tirarem grandes ilações ou se tecerem extrapolações sobre o que quer que seja.
Após a Independência, não sei bem para que é que o imóvel foi usado, para além de ser sobejamente conhecido que as suas caves foram usadas em finais de 1975 para enjaular, em condições precárias, centenas de pessoas quando o poder instituído (na pessoa do então recentemente empossado ministro do Interior, Armando Emílio Guebuza) se lembrou de inventar uma rusga maciça nas principais cidades do país (noite de 30 de Outubro até a manhã do dia seguinte) em que, mais ou menos à toa, foram pura e simplesmente presas, na melhor das hipóteses, na base do “diz que disse”. Provavelmente o regime sentia que não controlava as cidades e buscou algum consolo e uma maior sensação de segurança neste acto de puro terror, agora estatal e dirigido às zonas urbanas. No caso da Beira, conforme refere João Cabrita na página 93 do seu livro Mozambique: the tortuous road to Democracy, Raposo Pereira, o advogado tornado chefe da nova Pide moçambicana, nomeara nada menos que o Zéca Russo para gerir a operação local, com os resultados previsíveis.
Mas eu não estava lá e não sei qual foi a desculpa formal que foi usada, para além de vagas referências à criminalidade e imoralidade que, alegadamente, por ali grassavam.
Andamos quinze anos para a frente e o país inteiro estava a ferro e fogo, a Frelimo a segurar precariamente as principais zonas urbanas, mas não o mato. Era esse o caso com a Beira. Como aconteceu noutros locais, uma parte da população que vivia no mato, simplesmente mudou-se para a cidade. Uma parte mudou-se para o que já então restava do Grande Hotel, e que não era mais do que uma carcaça, uma espécie de bairro de lata no meio da cidade, em regime de propriedade horizontal.
E como não há dinheiro para fazer nada com aquilo (o negócio imobiliário na Beira por enquanto não tem nada a ver com o que se passa em Maputo), nem as pessoas parece que têm alternativas para onde estão alojadas, aquilo vai ficando como está, uma mórbida, algo grotesca atracção turística da cidade.
Mas também não vejo qual é a grande história em relação a isto, que é relativamente comum. Pelo menos até 2008, no coração de Luanda, na Praça do Kinaxixi, onde agora há uma estátua em homenagem à Rainha Ginga (não sei qual é o anterior nome) à direita de quem sobe da baixa, há uma carcaça de um prédio com mais que vinte andares, inacabado na altura da independência daquele país, mais ou menos nas mesmas circunstâncias. Até agora, ainda não vi ninguém a filosofar sobre o assunto.
Sobre a Beira
A história da Beira, em que o Grande Hotel é apenas um pequeno episódio, é muito mais simples de contar do que a de Maputo, que por comparação parece uma longa ópera italiana.
Após a efectiva anexação pelos Srs Cecil Rhodes e Leander Jameson do que os antigos portugueses consideravam seu – e que hoje constituem o Zimbabué, o Malawi e a Zâmbia – e como se não bastasse, os britânicos encostaram os portugueses à parede e exigiram a construção de um porto e o livre acesso desde o mar até à sua nova colónia.
Sem dinheiro, sem gente e como de costume, os portugueses permitiram a criação de uma empresa de capitais maioritariamente britânicos, com poderes majestáticos (ou seja, de Estado) a Companhia da Beira, que tomou conta daquilo.
Do mar para a então Rodésia, no sítio onde hoje está a Beira, e que era uma praia nojenta ao pé de um pântano nojento na foz de um rio nojento, lá se fizeram umas paliçadazitas e se edificou um cais de madeira e os primeiros pavilhões. Por um puro acto de charme político, chamou-se àquele miserável e insalubre canto “Beira”, o título do Príncipe Real Luis Filipe de Bragança, primogénito de D. Carlos, o então monarca português, que nascera naquela altura.
Dezassete anos mais tarde e escassos meses antes de ser assassinado, o Príncipe da Beira visitou brevemente a já então cidade.
O AUTARCA – 23.02.2011