E CÁ estou eu de novo em missão apologética. É de certeza assim que alguns vão ler este texto. Os eventos que abalam o Norte de África, e que já conduziram à queda de dois líderes autocratas, estão a provocar furor no nosso seio. A pergunta que se coloca é a seguinte: será que isto também vai acontecer entre nós? Essa é a pergunta, mas a intenção subjacente é de saber quando isso vai acontecer entre nós.
Tudo isto é acompanhado por perguntas retóricas em relação à postura intelectual dos que hoje saúdam os egípcios e tunisinos pelo que fizeram, mas ontem apelidaram de “vândalos” os moçambicanos que se fizeram à rua na sequência do aumento de preços de produtos de primeira necessidade. É uma situação tipicamente nossa: maldade na leitura e interpretação dos que defendem pontos de vista diferentes e precipitação na análise de fenómenos.
É bom que eu explique isto bem para não sofrer os mesmos tipos de acusação.
A pergunta de base é simples de responder. Será que o que acontece lá pode acontecer cá? Claro que pode! Vai acontecer? Os videntes que passam por analistas sabem isso melhor do que qualquer um de nós. Pode não acontecer hoje, nem amanhã. Mas se um dia acontecer (e eles terem dito já que vai acontecer) eles sempre vão poder gritar bem alto que disseram, não disseram?
Pode parecer enfadonho, e pouco, mas é preciso repetir um reparo: na análise de fenómenos sociais, políticos e mesmo económicos não é a previsão em si que é mais importante, mas os critérios que são convocados para sustentar essa previsão. Igualmente, na análise do que torna protestos possíveis não é apenas a constatação duma correlação (governo mau, logo, medida má, logo protesto popular) que é importante, mas sim a compreensão profunda de todos os factores intervenientes que podem contribuir localmente para determinados resultados. A insistência doentia com que alguns teimam em ignorar estes reparos torna difícil a contextualização do que está a acontecer no Magrebe.
E inviabiliza também a possibilidade de se aprender do que está a acontecer lá.
BRINCAR COM COISAS SÉRIAS
Um amigo egípcio que recentemente deu uma palestra por aqui a falar sobre o papel do humor nos recentes protestos contou-me que circulam agora SMS naquele país com o seguinte teor: “Sr. Presidente, regresse por favor, estávamos a gozar”. Dá para rir à primeira, mas num segundo momento dá para pensar. E bem. Em quase todo o mundo quando se fala destes tumultos associam-se-lhes o desejo de liberdade e democracia como os verdadeiros objectivos das manifestações. Ao mesmo tempo, supõe-se que a ausência de liberdade e de democracia tenham sido as principais razões que levaram aos levantamentos. Tanto na Tunísia quanto no Egipto os manifestantes falaram de facto da liberdade e democracia. Mas mais do que os manifestantes disseram, é o nosso desejo de tornar inteligível o que é difícil de perceber que está na base da convocação da liberdade e da democracia como quadro explicador destes eventos. A atitude é compreensível, mas arriscada.
O grito de liberdade pode tornar inteligível o que pessoas lá longe estão a fazer – e, inclusivamente, garantir a nossa solidariedade como amantes da liberdade e democracia – mas o que leva as pessoas à rua é muito mais local e, possivelmente, impenetrável ao olhar solidário de longe. Na Tunísia e no Egipto marcharam lado a lado integristas islâmicos, académicos liberais, jovens sem esperança, operários frustrados, vândalos e toda uma outra vasta gama de grupos e particulares. As palavras liberdade e democracia ouvidas ao nível abstracto do discurso público na esfera internacional não cobrem o mesmo campo semântico quando chega o momento de decidir que estrutura vão ter depois de Ben Ali e de Mubarak. O verdadeiro teste de compromisso com os valores que estas duas palavras representam será nesse momento. E só depois deste momento é que nós os outros podemos analisar com utilidade à procura de ilações.
Aqui intervém outro factor importante. O quadro explicador que utilizamos sugere-nos níveis de comparabilidade que são mais produto da nossa imaginação do que da realidade no terreno. Utilizando o anseio pela liberdade e democracia podemos, de facto e facilmente, ser cativos da ilusão de semelhança. Afinal, não é só no Magrebe que se anseia pela liberdade e pela democracia. Noutros cantos de África também. Na verdade, e bem vistas as coisas, mesmo na Europa, América Latina e Ásia, podemos vislumbrar esse anseio. Daí a supor as mesmas motivações, os mesmos meios e os mesmos resultados é apenas um passo, ainda que bastante problemático.
O contexto do Médio Oriente (com a segurança de Israel, com os conflitos entre tradições jurídicas islâmicas diferentes, etc.) torna a situação política dos países do Magrebe muito específica. A sonegação da liberdade e democracia naqueles países é vista também no contexto de um conluio de interesses que compromete seriamente a integridade moral que o Ocidente sempre reclama para si. A ministra dos Negócios Estrangeiros francesa ofereceu ao presidente tunisino, dias antes da sua queda, ajuda em equipamento contra sublevações. Este tipo de hipocrisia dá novo significado à liberdade e democracia que não é de certeza o significado que muitos de nós repetimos por aí em debates eruditos sobre estes acontecimentos. E ainda bem que é assim, pois valores têm interpretação local e só nessas condições é que podem ser úteis. Essa interpretação local torna também problemática a suposição de comparabilidade.
COMPARAÇÕES ÚTEIS
Quando perguntamos se o que acontece no Norte de África pode acontecer entre nós estamos, no fundo, a sugerir que o contexto que envolve o anseio pela liberdade e democracia no Magrebe é o mesmo – ou pode ser visto como sendo o mesmo – que envolve o nosso país. Comparações, para serem úteis, precisam de ter algo central em comum. A questão, neste sentido, é de saber se este anseio pela liberdade e democracia constitui esse elemento central. Não creio.
Tendo em conta o funcionamento do nosso sistema político podemos nos sentir tentados a supor que em Moçambique também haja um déficit de liberdade e de democracia. Ninguém é atirado à prisão e torturado por criticar; é verdade que todo aquele que critica o partido no poder fá-lo em plena consciência dos riscos que isso acarreta para a sua progressão profissional dado o controlo que o partido exerce sobre os principais sectores da nossa economia. Isto, num primeiro momento, torna nobre aquele que mesmo assim assume uma atitude crítica ao mesmo que envergonha aquele que gostaria de criticar, mas não o faz por conveniência pessoal. O sistema jurídico devia ser capaz de dar protecção a estes indivíduos. Em princípio, ele pode potencialmente fazer isto e isso é importante, pois revela que apenas a prática está viciada contra os direitos, mas a intenção é outra. Não vivemos, em Moçambique, numa sociedade controlada por serviços de segurança. A fragilidade das nossas instituições jurídicas torna-nos extremamente vulneráveis aos maus agentes da lei e da ordem. Mas o quadro jurídico dentro do qual eles devem operar protege-nos, como questão de princípio, dessa arbitrariedade.
Isto tem consequências para a comparação. Antes de olhar para duas dessas consequências seria importante voltar a chamar a atenção do leitor para um aspecto igualmente importante. Os defeitos do sistema político moçambicano são os defeitos duma democracia (imperfeita como todas as outras democracias) sob controlo dum partido. Não são os defeitos duma ditadura. O nepotismo, a corrupção e a intransparência grassam também em democracias maduras a partir do momento em que elas caem sob a dominação dum único partido. O remédio contra isso não é uma revolta popular contra o sistema político, mas sim a correcção a partir da exploração consequente de todas as possibilidades que o espírito e a letra da Constituição proporcionam. E mais outro reparo: as condições em que devemos praticar a democracia no nosso país (e em muitos outros países africanos) são um verdadeiro desafio aos próprios princípios democráticos. Uma esmagadora maioria dos que têm direito de voto não contribuem, financeiramente, para sustentar o aparelho institucional que a democracia requer. Recebemos dinheiro de fora para nos governarmos a nós próprios, no mínimo uma contradição. Uma parte significativa do eleitorado vive na pobreza. O que isso significa nestes anos de alta de preços de produtos alimentares a nível mundial é que paira sobre o sistema político uma espada de Dámocles. Nos países mais desenvolvidos as despesas alimentares dos agregados familiares representam cerca de 5 porcento do orçamento familiar. No Norte de África rondam os 15 porcento. Entre nós cada um pode fazer as contas, mas menos de 50 porcento (para os que estão bem) não vai ser. E é neste contexto internacional explosivo que o nosso sistema político tem que funcionar. Não pode adiar a solução dos problemas do povo, pois isso simplesmente comprometeria o próprio sistema (e não os governantes).
Vale a pena insistir sobre este ponto, pois costuma ser descurado nas discussões públicas. Um dos argumentos que aparece com frequência nos debates públicos assume contornos demagógicos. Moçambique é rico em recursos agrícolas, grita-se, como é que não consegue alimentar o seu povo? Temos tanta riqueza mineral, por que não conseguimos viver disso? E coisas do género. Não disponho do conhecimento técnico que me permita avaliar a qualidade das políticas adoptadas pelo Governo a respeito de todas estas coisas. Disponho apenas do bom senso que consiste na ideia de que existe um grande fosso que separa uma ideia brilhante da sua realização. Nesse fosso não estão apenas maus governantes. Estão também outros factores internos (o brio profissional de cada um de nós, o sentido de responsabilidade, iniciativa, etc.) e externos. Estes últimos, sei que poucos gostam de ouvir isto, não podem ser minimizados. A prosperidade da China, Índia e do Brasil não é necessariamente boa notícia para nós, se colocarmos de lado a possibilidade de investimentos vindos desses países. Num primeiro momento aumentaram as classes médias nesses países que estão a consumir mais e, portanto, a contribuir para a alta de preços de produtos alimentares a nível mundial. Não há política agrária interna suficientemente robusta para suster tais golpes a curto e médio prazos. Se na Europa não há os chamados protestos de pão é porque eles têm, com a União Europeia e sua política agrária, um mecanismo robusto de longa data. Não foi construído em poucos anos.
A primeira consequência que a fragilidade do nosso sistema político tem para a comparação é que enquanto na Tunísia e no Egipto se derrubam regimes autocráticos (mais na Tunísia do que no Egipto, pelo menos do ponto de vista formal), em Moçambique, a ocorrer algo semelhante, estaríamos a derrubar um sistema democrático (imperfeito). Pior ainda, estaríamos a revelar falta de confiança na democracia optando pelo grito gasto (e que já nos criou imensos problemas no passado) da vontade das massas.
A segunda consequência é que devido a todo um conjunto de circunstâncias sociais e económicas que se criaram nas sociedades do Magrebe aglutinadores de interesses colectivos (sindicatos e confrarias, por exemplo) existe lá um potencial de enquadramento da insatisfação popular que no nosso país não é evidente. Se calhar isto explica, parcialmente, o civilismo que caracterizou os protestos nesses países ao contrário dos nossos que, até aqui, se caracterizaram mais pelo vandalismo do que pelo protesto no sentido democrático do termo.
Com efeito, o mais deprimente nos tumultos de Setembro passado foi precisamente a ausência destes aglutinadores. Nem os sindicatos, muito menos os partidos políticos de oposição, estiveram presentes. Estes últimos brilharam pela negativa batendo palmas para acções que punham em causa a sua própria existência e legitimidade. Confrangedor foi ler análises de gente que se apresenta como democrata e que não viu nenhum problema na subversão do sistema político que garante, em princípio, a sua própria liberdade. Triste foi procurar em vão uma palavra de consolo para os proprietários de estabelecimentos, viaturas, etc., sacrificados no altar oportunista de quem não percebe o que está em jogo quando se trata de articular insatisfação.
PROFECIAS AUTO-SUFICIENTES
Nada disto quer dizer que o que está a acontecer no Magrebe não possa acontecer entre nós. As pessoas não fazem (nem primeiro vão ler) análises sociológicas da situação antes de agirem. Dada até a fragilidade das nossas instituições constitui um milagre que o nosso país ainda não tenha sido abalado por este tipo de coisas, ou que eles não sejam mais frequentes ainda. Mas aqueles que perguntam retoricamente se isto pode acontecer no nosso país deviam, ao mesmo tempo que esfregam as mãos de antecipação, perguntar-se a si próprios até onde vai o seu próprio compromisso com a democracia.
Na verdade, só quem tem pouca confiança na democracia é que pode ver com esperança o levantamento popular como um recurso legítimo na luta pela melhoria nas condições de vida. Infelizmente, alguns dos nossos melhores analistas em jornais da praça servem-se ainda de terminologia marxista para analisar os fenómenos da realidade social. Essa terminologia, porém, é enformada por uma visão do mundo profundamente anti-democrática de tal maneira que não tem dificuldade em confundir os termos da sua análise com o que seria melhor para o país.
A forte dominação do nosso sistema político pelo partido Frelimo pode levar alguns militantes de partidos de oposição a pensarem que a sua salvação esteja numa revolta popular. Se essa revolta for por eles organizada e canalizada ainda podem alimentar a esperança de vir a controlar o que virá depois. Se não for, então eles precisam de se precaver, pois quando a revolta acontecer eles também serão arrastados. Neste sentido, mais do que perguntar retoricamente se isto pode acontecer no nosso país, todo o democrata convicto do nosso país – sobretudo aqueles que estão na oposição – devia ver o momento como sendo auspicioso para reflectir – e envolver o governo do dia nessa reflexão – sobre o que o país precisa para tornar o seu sistema político ainda mais robusto. Se calhar agora, mais do que nunca na jovem história da nossa experiência democrática, estão reunidas as condições para que os actores políticos invistam ainda mais num sistema político inclusivo que não se mine a si próprio.
O partido no poder tem agora uma oportunidade ímpar de rever a sua interpretação do sentido de liberdade e democracia. Precisa de se interrogar a si próprio até que ponto essa interpretação é consistente com a reprodução dum sistema político democrático. O poder absoluto tem um grande inconveniente. Esse inconveniente não é a possibilidade de se corromper absolutamente (que isso até não precisa de ser mau do ponto de vista de quem beneficia...). É, sim, o perigo sempre presente de ter de assumir responsabilidade absoluta pelo que anda mal. Quando o Governo apela para maior sentido de responsabilidade individual esse apelo só vai ter frutos se na sua interpretação do sentido de liberdade e democracia se apega menos ao poder de modo a criar espaços propícios. Este é o momento de políticos corajosos. Deviam se levantar para serem contados.
Embriagados que estamos pela alegria das celebrações de liberdade e democracia no Norte de África esquecemos que o anseio por estes valores não é novo em África. Teve manifestações diferentes em diferentes momentos da trajectória política do nosso continente e o resultado não foi sempre a liberdade e a democracia. O nosso país constitui exemplo (triste) disto. A luta que se travou pela independência foi também em nome da liberdade e (um certo entendimento de) democracia. Deu no que deu e ainda reclamou mais sacrifício humano durante 16 longos anos. No Zimbabwe a interpretação local de liberdade e democracia está a dar o que está a dar. Na Costa do Marfim, na Libéria, na Serra Leoa, no Ruanda, no Congo, enfim, um pouco por todo o lado. No Egipto e na Tunísia ainda não sabemos para onde é que as coisas caminham. Aqui também os analistas da praxe confundem aspirações pessoais com realidade.
De tal maneira que a verdadeira lição que podemos aprender do que está a acontecer no Magrebe é dolorosamente simples: vamos acordar um dia e constatarmos que estamos a ser governados por Mullahs ou vândalos irados de “Xikhelene”? Não vejo absolutamente nenhuma razão para supor que o único desfecho da luta pela liberdade e democracia seja a liberdade e democracia. E de tanto querermos que a história se repita ela pode se repetir. Afinal, não é com base em análises sociológicas que as pessoas agem.
- ELISIO MACAMO (colaboração)