A 15 de Setembro de 1974, fui admitido na Borôr Comercial, para a sua delegação de Quelimane, capital da actual província da Zambézia, em Moçambique.
Esta firma representava o ramo comercial do grupo Borôr, nascida da Companhia do Borôr, sua empresa-mãe.
De capitais suíços e administrada no seu topo por pessoas de mesma nacionalidade, era por todos conhecida como modelo de organização e eficiência, tendo como bandeira orgulhosamente desfraldada o ser detentora dos maiores palmares do mundo, que se estendiam por centenas e centenas de quilómetros. Companhia dedicada essencialmente à agricultura e pecuária, focava o principal da sua actividade no plantio de coqueiros, de que exportava a copra, obtida da secagem da polpa do coco, em estufas.
Uma vez que o cargo que ia ocupar era o de gerente, fui convidado pelo inspector-geral da Companhia do Bôror a uma viagem de visita e conhecimento de toda a organização. Assim o fiz, deslocando-me a Macuse, vila que distava cerca de 130 quilómetros de Quelimane.
Este mostrou-me o porto de mar privativo junto à foz do rio Licungo, as plantações de novos coqueiros, resultado do cruzamento de palmeiras anãs com as existentes, daí resultando plantas de baixa estatura e maior produção, empreendimento orientado e assistido periodicamente por cientistas das Nações Unidas; a vila de Macuse, nascida da implantação da sede da Companhia naquele lugar; uma exploração de pecuária, pequena amostra das centenas de milhares de cabeças de gado bovino existentes, sendo-me explicada a técnica de cruzamentos com reprodutores da raça Zebu; as oficinas e o parque de máquinas de tractores, alfaias agrícolas e viaturas, e, por fim, o edifício-sede.
A forma era sempre a mesma: cumprimentava o chefe do sector que me era apresentado, que por sua vez me explicava o seu funcionamento e me apresentava a seguir os funcionários que com ele trabalhava. Ia tomando as minhas notas, úteis para o meu futuro trabalho e seguia em frente.
Uma das últimas salas do edifício-sede a que me abriram a porta foi a das telecomunicações. Toda ela pintada de branco, como todas as outras, estava preenchida com a central telefónica, telex, rádio e uma profusão de cabos e fios a dirigirem-se quase todos para fora do edifício.
O chefe desse departamento foi-me apresentado e tive um sobressalto por me encontrar na presença de um jovem negro, que teria, pelas minhas contas, não mais de vinte anos. Depois do aperto de mão da praxe, explicou-me a serventia de todas as máquinas e deu-me uma lista com todos os números de telefone e as respectivas extensões dos departamentos e plantações. Enquanto percorria a sala, os meus olhos fixaram-se num póster de grande formato, por cima da cadeira onde se sentava, e que dizia: "O Céu e a Terra passarão, mas as minhas palavras não passarão". E, por baixo, "Mat. 24-35".
Não contava com aquilo e a surpresa levou-me a olhar novamente a pessoa que achara importante fixar bem alto, no seu lugar de trabalho, uma referência da fé que professava. Os nossos olhos cruzaram-se e demorei-me um pouco neles. O leve sorriso que esboçava no seu rosto coadunava-se perfeitamente com a poeira das estrelas e das galáxias do universo, que brilhavam nos seus olhos.
Não descansei enquanto não indaguei da forma como tinham encontrado aquele funcionário, ao que me foi respondido que na Missão Católica local e que estavam muito satisfeitos com o seu desempenho profissional.
Assim, a minha alegria, orgulho e esperança que advinha do bom emprego que acabava de obter encontrava-se agora com o mesmo estado de espírito noutra pessoa, mas por um outro motivo bem diferente.
O certo é que, na bruma do tempo já passado, no esbatido da aguarela do quadro que guardo na memória, daquele momento da minha vida ficou só a nitidez daquela mensagem de Jesus Cristo, e de alguém que a transmitia sem vergonha.
Gondomar, 2002/01/07
In OS PÁSSAROS TAMBÉM FALAM, de João Maria Neves Pinto