Morto aos 37 anos em Lourenço Marques, em Junho de 1959, Reinaldo Ferreira deveu à compreensão e zelo de amigos que lhe reconheceram o génio, a edição póstuma do seu livro de Poemas, surgida em 1960, prefaciada e coligida por Eugénio Lisboa.
Bem meritório nos parece o gesto, pela revelação de um extraordinário poeta, cuja mestria verbal e harmonia rítmica se aliam a um pensamento igualmente trabalhado, e uma fina sensibilidade de raiz profundamente europeia.
Reputado o maior poeta moçambicano, julgamos, contudo, pouco dever a Moçambique este Poeta, nascido em Barcelona e só aos 19 anos radicado nesta província onde por mais dezoito permaneceria.
Agrupados os seus Poemas por quatro Livros — «UM VOO CEGO A NADA», «POEMAS INFERNAIS», «POEMAS DO NATAL E DA PAIXÃO DE CRISTO» e «DISPERSOS» — em quase todos se salienta um egocentrismo um pouco mórbido, natural em certos espíritos de eleição, habituados a escalpelizar os seus sentimentos e conflitos resultantes da barreira de incompreensão do mundo convencional que os rodeia.
Quase poderíamos opor aos seus Poemas o título do livro de António Nobre, «SÓ», dado o seu isolamento orgulhosamente «raffiné», mas pleno de angústia:
«Sentimento cruel de quem se afasta,
Por orgulho repele e se desgasta
No esforço de fugir à multidão.
«Mas castigo de quem, por imprudente,
Já não pode deter-se na vertente
Que vai da liberdade à solidão.»
(pág. 84)
Ainda tal como António Nobre ou Sá Carneiro, é neste Poeta extremamente agudo o sentimento da própria existência — «este farrapo que eu sou»:
«Ai de mim!
Que não pedi p'ra nascer
E sou forçado a viver!»
(Linhas Cruzadas, pág, 80)
Da mesma forma o poema «Quero um cavalo de várias cores» lembra a estética simbolista do autor do «SÓ».
Idêntica violência, contida, por exemplo, no soneto de Camões «O dia em que nasci morra e pereça» achamo-la no poema «Agora o céu não é mais das aves» (pág. 167), cuja expressividade de vibração resulta, tal como naquele, igualmente da sonoridade vocabular.
São bem claros neste Poeta os vestígios de Fernando Pessoa, pela intelectualidade de expressão, traduzida por um constante jogo de pensamento. Ê o caso do próprio soneto «A Fernando Pessoa (Ele Mesmo)»
«Cada verso é uma esfinge ter falado.
Mas quanto mais explícito ela o diz,
Mais tudo permanece inexplicado
E menos se apreende o que ele diz.
«Erra um sussurro, tão etéreo e alado
Que nem mesmo silêncio o contradiz.
E o ouvi-lo, ou ávido ou irado
Na busca dum segredo sem raiz,
«Ê como se em pensar — um descampado —
Passasse fugitiva e intensamente
O tempo todo inteiro projectado
«E a sombra ali marcasse, na corrente
Do nada para o nada, inda passado
E já futuro, a ficção do presente.»
O 4.° capítulo de «Um Voo Cego a Nada» é iniciado por um poemeto de três quadras de versos setessílabos, onde nos mostra a decisão de «Volver às rimas suaves / / Aos metros embaladores / Cantar o canto das aves, / / A aurora, a brisa e as flores...» (pág. 55). Quase todos os poemetos deste capítulo nos parecem significativos da influência de Pessoa, não só no seu jogo cerebral de afirmações que se negam («Regresso de parte alguma», «Pois trago coisa nenhuma», «Da noite enorme incriada»} «No mar do nada sem porto»), como no jogo vocabular entre o pensar e o sentir (Cf. Pessoa «0 que em mim sente está pensando»):
«Que estranha a nossa verdade!
Às vezes partida ao meio,
Minha ilusória unidade,
Pensando, sinto, pensei-o.
«Mas quando penso o que penso
Estou-o pensando também.
Na vertigem, não me venço
E recuo e vou além
«Daquilo p'ra que há defesa.
Feliz quem pode parar
Onde a certeza é certeza
E pensar é só pensar!»
(pág. 61)
Também não podemos deixar de anotar analogias com Ricardo Reis no tema da passagem da vida, serenamente, «tão mansos como a poeira do caminho», conquanto nos pareça uma mais completa convicção no Poeta das «ODES», uma alegria mais certa, mais sincera e mais vezes frisada.
Passemos, tu e eu, devagarinho...»
(pág. 181)
Dentro da mesma ideologia se engloba o poema «Eu, Rosie, eu se falasse...» pela constatação de que «A vida égále, idêntica, the same, / Ê sempre um esforço inútil, / / Um voo cego a nada» (pág. 70).
O poema «Menino só» traz-nos à mente «Liberdade», de Pessoa. Comparemos:
(Reinaldo Ferreira)
«...Hei-de fitá-lo (o Menino) e sorrir
Pensando no que podia
Mas não lhe quero ensinar:
Nem a ler,
Nem a contar
Nem que requinte a mentir»
(pág. 141)
(Fernando Pessoa)
«O mais do que isto
É Jesus Cristo
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...»
Ambos exprimem um conceito, já encontrado em Rousseau, de simplicidade e pureza não compatíveis com a cultura.
Da estética simbolista de Verlaine, de que Camilo Pessanha foi o nosso mais fiel seguidor, e segundo a qual a poesia, como arte de sugestão, deve ser essencialmente musical, de verso breve, notemos, por exemplo, o poema «Chopinesque»:
«Oh! taciturno
E esquivo
Motivo
Todo nocturno...
Polpas macias
De dedos leves
Cintados por ametistas,
São organistas
Dos meios ditongos
Longos
E breves...»
(pág. 183)
Ainda dentro da estética simbolista se enquadra o poema «Nasci poeta obstruso», bem definidor das suas preferências pelo vocábulo raro, precioso.
Sonetos como «Grandeza» ou «Minha alma é obelisco corroído» (págs. 158-159), sugerem-nos Florbela Espanca, nas ambições de grandeza ou na angústia do sentir, expressos com extremo requinte vocabular e imagístico.
Analogias com Sá Carneiro são igualmente profundas, assim como o realismo descritivo de certos poemas mergulha as suas raízes talvez em Cesário Verde:
«É pela tarde, quando a luz esmorece
E as ruas lembram singulares colmeias,
Que a alegria dos outros me entristece
E aguço o faro para as dores alheias.
«Um que impaciente, para o lar regresse,
As viaturas que se cruzam cheias
Dos que fazem da vida uma quermesse,
São para mim, faminto, odor de ceias.»
(pág. 84)
O magnífico poema «Natal» lembra-nos António Botto, na consciência de um viver menos puro:
«Mas se me perco e Te perco
Quando me afogo no esterco
Do meu destino cumprido...»
(pág. 134)
Também o belíssimo poema «Na tarde morna» da pág. 32, repetido, por lapso, na pág. 156, exprime o conceito eterno da luta íntima entre o Bem e o Mal.
O reconhecimento do homem como ser infinitamente pequeno, mas pela sua razão e inteligência, também infinitamente grande, está estraordinariamente contido na pequena e densa ode «O Ponto»:
«Mínimo Sou
Mas quando ao Nada empresto
A minha elementar realidade
O Nada é só o resto!»
(pág. 125)
Do capítulo 3.° «Epigramas» do Livro «Um Voo Cego a Nada», extraímos o poema «Receita para fazer um herói» admirável de sarcasmo e concisão e pelo seu remate chocante:
«Tome-se um homem
Feito do nada, como nós
E em tamanho natural.
Embeba-se-lhe a carne,
Lentamente,
Duma certeza aguda, irracional,
Intensa como o ódio ou como a fome.
Depois, perto do fim,
Agite-se um pendão
E toque-se um clarim.
Serve-se morto.»
(pág. 50)
Também «O Futuro» é expressivo de uma ironia que nos traz à mente o passeio domingueiro de Roquentin em «La Nausée» de Sartre:
«Aos domingos iremos ao jardim.
Entediados, em grupos familiares,
Aos pares,
Dando-nos ares
De pessoas invulgares,
Aos domingos iremos ao jardim.
Diremos, nos encontros casuais
Com outros clãs iguais,
Banalidades rituais,
Fundamentais (...).
(pág. 51
Não nos parece, aliás, estranho ao espírito do Poeta o conhecimento da filosofia existencialista, não só pela angústia, já apontada, pela consciência do existir e a «certeza do Nada», como pelas frequentes constatações, igualmente citadas, onde o Nada, o Não-Ser constituem elementos específicos.
Não resistimos a transcrever o lindíssimo poema «Que culpa terão as ondas», apontando ao mesmo tempo o contraste, na sua conclusão final, com «L’Albatros» de Baudelaire: O albatroz, «rei do azul», quando voa, em terra é ridículo e desajeitado, tal como o poeta, só verdadeiramente grande quando liberto das cadeias terrenas. Mas para Reinaldo Ferreira, apenas as almas «se erguem da terra naufragam nas tempestades»:
«...Que culpa terão as ondas,
Dos movimentos que façam?
— São os ventos que as impelem
— E sulcos profundos traçam.
...Aos ventos quem lhes ordena
Que rasguem rugas no mar?
— São as nuvens inquietas
Que os não deixam sossegar.
...E as nuvens, almas de névoa,
Porque não param, coitadas?
—É que as asas das gaivotas
As trazem desafiadas.
...Mas as asas das gaivotas
O cansaço há-de detê-las!
—Juraram buscar descanso
Nas pupilas das estrelas.
E como as estrelas estão altas
E não tombam nem se alcançam,
As asas das pobrezinhas
Baldadamente se cansam...
Baldadamente se cansam,
Baldadamente palpitam!...
As nuvens, por fatalismo,
Logo com elas se agitam,
Os impulsos que elas dão
Arrastam as ventanias;
As vagas arfam nos mares
Em macabras fantasias...
...Assim as almas inquietas...
Prisioneiras de ansiedades,
Mal que se erguem da terra
Naufragam nas tempestades!»
(pág. 192)
Falámos em Baudelaire, e não resistimos a transcrever um passo de um seu poema— «Flor de Lapela» — que bem pode mergulhar na ideologia das «Flores do Mal», pela afirmação de que, por maior que seja a grandeza atingida, ela termina para todos da mesma forma:
«Flor ou bicho
Ou criatura
Tudo é lixo
Na sepultura.»
(pág. 179)
O facto de termos feito uma curta análise comparativa quanto aos temas e formas, não destrói, de modo algum, a originalidade deste Poeta, raro como os que o são, pela sua capacidade de traduzir conceitos ou vivências de grande requinte de pensamento numa extrema elegância de forma.
In PROSAS ALEGRES E NÃO, de Berta Henriques Brás (1973) (pág.57 e seg.)