por: Wenke Adam
Ao longo dos últimos meses, os tão falados casos das 40 toneladas de haxixe apreendidas em Maputo em Maio de 1995 (cf. NM 48 e seguintes), e da fábrica clandestina de Mandrax desmantelada no Bairro do Trevo em 7 de Setembro passado (NM 63 e seguintes), tiveram altos e baixos, culminando com a posta em liberdade, aos poucos e poucos, de praticamente todos os detidos, quer por falta de provas sólidas, quer por razoes técnicas ou pela forca de avultadas cauções pagas por alguns dos indiciados. Que nem tudo estava nos conformes nos procedimentos, já se sabia.
Na passada 2a feira 4 de Marco, na primeira página do jornal Noticias aparece em grandes titulares: "SUPREMO SUSPENDE ADVOGADO DE DEFESA DO "CASO" TREVO. Motivo: uso abusivo do "habeas corpus" na libertação dos seus constituintes". Segundo o texto, extraído duma exposição do Tribunal Supremo datada em 28 de Fevereiro, que o Noticias recebeu antes do assunto ter sido comunicado quer à Ordem dos Advogados, quer ao afectado, o Dr. Máximo Dias - porque de ele se tratava) foi condenado a 3 meses de suspensão do exercício da advocacia e ao pagamento de 15 mil meticais (1,20 USD) por ter apresentado um pedido de "habeas corpus" para os nove indianos e um paquistanês do caso Trevo antes de saber da resposta do seu requerimento anterior sobre concessão de liberdade provisória mediante pagamento de caução.
No dia seguinte, 5 de Marco, sempre na primeira pagina mas já com títulos menores, o Noticias informa: "Dr. Luis Muthisse alvo de processo disciplinar. Advogado de defesa dos arguidos, Máximo Dias, diz que aceita humildemente a decisão do Supremo". Desta vez, o texto que acompanhava o titulo tinha sido extraído dum documento da Procuradoria Geral da Republica dirigido ao Presidente do Tribunal Supremo, recebido no dia 4 de Março na redacção do Noticias anonimamente via fax.
O que aconteceu? Muito brevemente, os 10 asiáticos detidos a 7 de Setembro último foram apresentados em tribunal a 18 de Outubro e passados a prisão preventiva. A 19 de Dezembro, o advogado Máximo Dias pede a liberdade provisória mediante caução. O requerimento, dirigido ao Juiz de Instrução Criminal, foi mandado "juntar aos autos" por despacho do Procurador Provincial de Maputo, Dr. Luis Muthisse, que a 20 de Dezembro pede ao Juiz de Instrução a liberdade sob caução dos arguidos, invocando estarem "largamente excedidos os prazos de prisão preventiva". O Juiz de Instrução indeferiu o pedido, prorrogando por mais 45 dias o período de prisão preventiva. Muthisse, não concordando com a decisão, interpôs recurso ao Tribunal Supremo, que aceitou o recurso. Enquanto o despacho do Tribunal estava a ser dactilografado, o Dr. Muthisse ordenou a liberdade dos presos. Quando a Procuradoria Geral soube da noticia pelo semanário Domingo (...), mandou a Policia recapturar os arguidos, mas já era tarde: tinham abandonado o pais.
Entretanto, o Dr. Máximo Dias não foi notificado oficialmente pelo Tribunal Provincial quer sobre a prorrogação da prisão preventiva ditada pelo Juiz de Instrução, quer sobre o recurso apresentado pelo Procurador Provincial, o que segundo o próprio, lhe levou a apresentar o recurso de "habeas corpus" no dia 20 de Dezembro.
O Tribunal Supremo, ao condenar a Máximo Dias, censura também explicitamente o Tribunal Provincial por não ter notificado o advogado defensor. Por sua parte, a Procuradoria Geral da Republica, a 16 de Fevereiro, ordenou processo disciplinar contra o Dr. Luis Muthisse pelo seu "comportamento estranho, pugnando pela restituição à liberdade dos arguidos" e ainda "escondendo informação sobre o resultado do exame toxicológico [do Mandrax] e argumentando não ter disponibilidade de tempo por se encontrar em gozo de ferias disciplinares".
Paralelamente com estes desenvolvimentos, no dia 1 de Marco aparece no semanário Savana um espaço publicitário duma pagina, assinado pela advogada Ana Pessoa Pinto, sob o titulo "Narcotráfico, legislação penal e Estado de Direito" onde se apresentam as definições legais dos termos "droga" "estupefaciente" "substancias psicotropicas" e outros, com uma descrição dos efeitos extremamente perigosos da mataqualona, componente principal do Mandrax, que, sendo barato, tem um grande mercado na África do Sul entre os jovens e desempregados negros sem muitas posses. A advogada informa no seu comunicado que o Mandrax figura como substância proibida, em sétimo lugar, na tabela II da "Convenção sobre as substancias psicotropicas" aprovada pela ONU em 1971 e ratificada pela Resolução no. 8, de 12 de Setembro de 1990 da Comissão Permanente da então Assembleia Popular.
Para espanto do leitor, a Dra. Ana Pessoa Pinto continua a sua exposição afirmando que a ratificação nunca foi publicada em Boletim da Republica, mas figura nos sumários do BR como tendo sido publicada nas pags. 232 e seguintes no 5o Suplemento do BR no 37 de 12 de Setembro de 1990, que ao que parece nunca existiu! Por este motivo, o trafico de Mandrax não pode ser considerado crime "a pesar de há mais de 5 anos e meio o poder legislativo ter decidido precisamente o contrário!" continua o anuncio, encerrando com a pergunta de "o que é que realmente se está a passar com o Estado de Direito em Moçambique? A droga corrompe, degrada e destrói o ser humano, gera o crime e a violência. Parece-me que não podemos brincar com o fogo."
A propósito de publicidade de pagina inteira, cabe mencionar neste artigo que a Ordem dos Advogados de Moçambique foi constituída formalmente no passado dia 24 de Fevereiro, tendo sido eleito como seu bastonário o Dr. Carlos Alberto Caulo, que tinha como candidato adversário o Dr. Domingos Arouca. O processo fez correr muita tinta (ambos os candidatos apresentaram as suas respectivas plataformas, em anúncios publicitários de pagina inteira nos jornais) e ainda continua, devido ao protesto de cerca de quarenta jovens advogados que, a pesar de estarem a exercer a advocacia há vários anos em regime de excepção, ainda não completaram as respectivas teses de licenciatura, e por este motivo foram impedidos de se registarem na Ordem.
A polémica é forte, porque aparentemente entre os 84 juristas inscritos até agora, menos de metade exerce, de facto, a advocacia. Segundo Domingos Arouca (que já que perdeu as eleições alinha com os jovens) uma Ordem de Advogados só poderia estar composta por juristas que advogam nos púlpitos dos tribunais, não é sinónimo duma associação de licenciados em Direito. Arouca considera que o problema está na rigidez da Faculdade de Direito da UEM, e do Reitor, que em 1990 graduaram muitos estudantes finalistas por métodos administrativos, sem terem acabado a tese, e hoje já não aceitam essa solução. O grupo dos jovens, no entanto, apresentou queixa ao Tribunal Judicial da cidade de Maputo, mediante duas Providências cautelares, que poderão por em causa a tomada de posse do corpo gerente da Ordem recentemente constituída. (Savana, 1/03)
Drogas, legalidades, ilegalidades, presos ou libertados, queixa ou não queixa, o certo eh que no meio de todo este processo, a fraqueza do sistema judicial moçambicano e a falta de pratica no exercício rigoroso da legalidade, são aspectos que saltam à vista. Graças ao 'show' que alguns advogados altamente competentes estão a apresentar ao publico, seguindo mecanismos estritamente legais, mas em toda a sua profundidade e largura, ficamos a conhecer mais como funciona e desfunciona esta parte do sistema.
Esperemos que para além do animado espectáculo, se faça também justiça... (WA)
Notícias de Moçambique – 03.12.1996