Leia aqui as páginas inicias de “A CAUDA DO ESCORPIÃO” – O Adeus a Moçambique, de Giancarlo Coccia
CAPÍTULO 1
Abril de 1974. Recebo uma «dica» sobre o golpe em Portugal aprazado para 25 de Abril — Saímos de Pretória com destino a Nampula -— Uma operação militar contra a grande «Base Beira» da Frelimo, perto de Nangade e da fronteira com a Tanzânia — O objectivo é ter a possibilidade de verificar o efeito do «golpe» de Estado nos veteranos militares presentes — Jornalistas da África do Sul chegam ao Quartel-General — Emilio e eu somos «expulsos» do Norte, imediatamente depois do 25 de Abril, pelas novas autoridades — Nampula — Frelimo ou pseudo Frelimo? O factor rodesiano — Encontros «estranhos» em Lourenço Marques
* * *
Quando tomei conhecimento do assunto eram 21h20 de quinta-feira, 18 de Abril de 1974. Subi ao meu quarto no Hotel Moçambique, na Beira, e fiquei a pensar... Que fazer agora? Estava confirmado. «Antes das manifestações do 1.° de Maio, o Governo cai», tinha-me dito o Costa Gomes. As forças policiais já estavam a actuar. Era impossível parar a manifestação.
Levei mais do que uma hora para me resolver a telefonar. Eu sabia que os telefones estavam sob escuta. E então agora, depois os incidentes de Janeiro em Manica, Vila Pery e Beira...
Finalmente decidi telefonar para um amigo especial em Pretória.
Luiz Correia, 18.04.19 74
* * *
À noite, Pretória é uma cidade pacata, quase morta. Como quase todos os outros residentes de Waterkloof, dormia há várias horas quando o terrível som do telefone me acordou.
Mas, mesmo com a minha natural reacção de acordar estremunhado, e depois de maldizer todas as invenções humanas, sabia que não haveria paz até o aparelho ser atendido. Finalmente, levantei o auscultador.
O operador, uma mulher (a esta hora da noite podia fazer outras coisas, pensei malignamente) nem disse «boa noite», nem tentou pedir desculpa por me ter acordado. A sua límpida, calma e controlada voz de boeremesie, rapariga bóer, gaguejou qualquer coisa acerca de uma chamada da Beira, Mozambiek, especificou, acrescentando wag 'n bietjie, menhee aguarde um momento por favor. E deixou-me «pendurado» a espera.
Beira? Quem me estaria a ligar da Beira? Caramba já passava das onze da noite! Fiquei imenso tempo feito estúpido a olhar para o telefone. Pareceram-me horas.
Num frenético esforço, tentei coordenar os meus pensamentos. Passei em revista a minha lista de contactos em Moçambique. Como jornalista tinha estado neste país muitas vezes e em cada ocasião tinha adquirido amigos bem informados, quer no sector civil, quer no militar. Mas Beira?
Procurando desesperadamente no meu cérebro por um rosto que não me ocorreu, lembrei-me que o meu visto para entrar em Moçambique estava ainda válido. Recordei-me também que a minha sala de estar estava atravancada de caixas cheias de cigarros, medicamentos, escovas de dentes, lâminas de barba e bolachas que tinha comprado (uma prenda pessoal de cerca de 500 dólares americanos) para enviar para o Hospital Militar de Nampula, no Norte do território.
Lentamente, muito lentamente, o meu cérebro começava a focar a situação. Lembrei-me, finalmente, que estava preocupado com estas encomendas porque o CITMO (Centro de Informação e Turismo de Moçambique) em Lourenço Marques ainda não tinha respondido ao meu pedido escrito para que facilitasse a entrega das mesmas aos destinatários: os soldados feridos do hospital militar da «Capital do Norte».
Houve um sinal na linha telefónica e uma voz masculina disse em português:
— Alô... É o Giancarlo?
— Sim, daqui é Giancarlo... Com quem estou a falar?
— Luiz, Luiz Correia...
Fiquei surpreendido. Luiz Correia era um bom amigo. Ele representava o CITMO em Nampula, era delegado do CPEF (Conselho Provincial de Educação Física) e Desportos e instrutor-chefe no Centro Hípico de Nampula. Mas, mais importante, Luiz era o elemento de ligação do Governo Civil com o Comando-Chefe das Forças Armadas Portuguesas em Moçambique. Tinha-o conhecido aquando das minhas anteriores deslocações às frentes de combate da «província do ultramar», junto ao Oceano Índico. Já durante estas visitas tinha constatado que ele era um excelente contacto para obtenção de apoios e facilidades por parte das autoridades militares na Zona Operacional. Neste momento, não podia ainda imaginar todas as aventuras que viveria com o Luiz!
— Ah, sim, Luiz... Mas o que é que tu estás a fazer na Beira? Pensei que...
Estava a pensar nas justificações. Mas antes de poder acabar o que ia
dizer, ele cortou-me as palavras. Na sua voz havia mais que uma ponta de excitação!
— Escuta Giancarlo — quase gritou —, estou no Hotel Moçambique, na
Beira. Se não queres perder o desenrolar de uma grande reportagem, vem
para cá o mais depressa possível. Deves saber interpretar o que te estou a
dizer... Tenta lembrar-te... Nós discutimos isto em Nampula há menos de
um mês... Entendes?
Agora estávamos os dois excitados.
— Sim, compreendo perfeitamente, mas quando vai acontecer?
— Irá passar-se no mesmo dia em que no teu país se celebra a Libertação pelos Aliados, na Segunda Guerra... Então, vamos ver-nos em Nampula... Adeus Giancarlo!
Clic, fim da ligação!
Esta não era uma brincadeira qualquer! O Luiz nunca se enganava nos seus julgamentos ou nas suas profecias.
Mas isto era tão extraordinário quanto incrível!
Naquele momento eu era o único jornalista da África Austral, e provavelmente do resto do globo, que sabia que os rumores estavam finalmente a tornar-se realidade e que sim, na verdade, ia haver um golpe em Portugal.
* * *
Alguns dias depois, em Nampula, Luiz contou-me que tinha sido o general Costa Gomes que algumas semanas antes lhe tinha dito: «O Governo, tal como está, não chega ao próximo 1.° de Maio».
Luiz achou que a notícia era «muito importante e extremamente preocupante». Lembrou-me da conversa que tivemos em Nampula no mês de Março sobre o que lhe tinham dito o capitão de Cavalaria Mário António Tomé, «delegado oficial» do Movimento das Forças Armadas (MFA), e outros oficiais dentro do Quartel-General (QG) de Nampula. «Não havia qualquer dúvida que os ânimos estavam crispados e que o diálogo já não levava a nada», disse-me o Luiz, para quem estava em jogo «a vida de milhares de africanos». Quem iria segurar as rédeas deste cavalo à solta? Seria possível detê-lo?
«Foi na Beira, no Hotel Moçambique», contar-me-ia mais tarde, «que fiz os meus cálculos... Se era para ser antes do 1.° de Maio, com a nova informação recebida e as palavras oferecidas por Costa Gomes, estava na altura de te ligar. Como a tua ideia era escrever um livro sobre o final da guerra portuguesa em Moçambique, seria bom começar uns dias antes do fim deste Governo. Já sabia como te ia dizer Giancarlo... Tive necessidade... Usei a data da Libertação da Itália... Assim vieste a tempo!», concluiu, satisfeito consigo próprio, o meu amigo Luiz.
* * *
A situação era tão confusa quanto incrível. Os fãs do general António Spínola tinham razão. O seu livro Portugal e o Futuro tinha acendido o rastilho do paiol revolucionário! Iria este prestigiado militar liquidar o já vacilante Governo de Marcello Caetano? Estava tudo preparado para o dia 25 de Abril? Iria Spínola fazer a diferença, tentando subir militarmente a parada em Angola, Moçambique e Guiné, antes de iniciar acções políticas e diplomáticas para acabar de maneira digna a guerra e a presença lusitana em África?
Já estava completamente desperto. Só não sabia exactamente o que fazer.
Sabia que, como jornalista, tinha uma só responsabilidade: telefonar ao órgão da imprensa do qual era correspondente e transmitir o scoop. Luiz sabia disto embora esperasse que eu ficasse com a notícia só para mim. Se
… … …
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NOTA:
Será concebível que Marcelo Caetano não o soubesse? Se tudo orquestrado de Moscovo (como parece), não admira a data, pois logo a seguir o 1ª de Maio seria oportunidade para juntar o POVO à volta da ideia de uma “democracia” que estaria ao seu alcance, em oposição a uma ditadura de mais de 40 anos.
Fernando Gil
MACUA DE MOÇAMBIQUE