Por Isadora Ataíde Fotos de Joel Chiziane
25 de Junho de 1975. Estádio da Machava. Discursa Samora Machel. “Moçambicanas, moçambicanos, a nossa república popular é feita do sangue do povo”.
Junho de 2011, Acordos de Lusaka, Machava. Fala Fátima Tete, 70 anos, moradora no bairro desde 1970 e actual secretária da comunidade. “Eu lembro-me bem do dia da independência, porque começava a sentir as dores do parto do meu terceiro filho. Fomos cedo para o estádio, eu e o meu marido. Havia uma multidão de pessoas. Ouvi o discurso do presidente Samora Machel pouco antes da meia-noite, quando a bandeira foi içada e tocou o hino nacional. Nunca imaginei que o país fosse crescer tanto. Onde havia mato estão prédios e fábricas, no lugar das casas de caniço estão habitações de alvenaria. A maioria da população da Machava tem água e electricidade em casa. A vida melhorou muito desde então”.
Rogério Mucaverne tinha 22 anos na altura da independência, cresceu no Infulene e também foi ao Estádio da Machava comemorar e ouvir Machel. Quando constituiu família mudou-se para o centro de Maputo. De vez em quando volta ao bairro da sua juventude, confessa alguma frustração. “Sinto-me frustrado quando volto à Machava. Na altura da independência as ruas estavam asfaltadas, havia um terminal de machimbombos, o lixo não estava espalhado pelas ruas”, critica Rogério.
A cintura verde de Maputo, que alimenta a Província com verduras e legumes, está inchada de fertilidade neste Inverno. A zona serve como divisória natural entre a capital do país e a Machava, que com os postos administrativos de Infulene e Matola Sede, compõem a autarquia da Matola. Isaura Howana, 54 anos, começa a regar as suas alfaces, couves beterrabas e cebolas às cinco e meia da manhã. Dá emprego a quatro pessoas na região e quando as verduras abundam cobra 50 meticais por um canteiro. O problema é a estação seca. “O riacho deixa de correr e não temos uma fonte ou furo próximos para buscar a água, nestas alturas o canteiro pode ficar por 150 meticais”, explica a agricultora. Porém, quando chove, Isaura também tem dificuldades. “O lixo depositado pelos moradores não é recolhido pelos responsáveis. A água da chuva arrasta o lixo para as machambas, contamina o solo e as verduras”, reclama.
Infulene
O tal lixo está depositado em frente ao mercado de Infulene e, segundo os comerciantes locais, está a afastar os clientes. “O lixo não é recolhido do lado de fora e o mercado não é limpo do lado de dentro. Para vender pão pago quatro meticais por dia, mas há dias que não consigo lucrar 50 meticais. Quem vai comprar pão num Mercado cheio de moscas, baratas e ratos?”, pergunta Zilda Mário, 31 anos. A maioria das bancas foi abandonada e as que sobrevivem pagam 120 meticais por semana para negociar. O tecto, de chapa de zinco, está a cair e quando chove os comerciantes são obrigados a fechar. “A situação sanitária do Mercado é muito grave, é preciso reabilitá-lo”, sublinha o comerciante Jerónimo Gonçalves, 30 anos.
Vizinha ao Mercado está há 32 anos a sapataria de Moisés Tembe, 70 anos. Ele recorda-se do tempo em que Infulene tinha o seu próprio terminal de autocarros, em que o lixo estava depositado longe das habitações e em que não era preciso perder o dia para ir ao centro de saúde. “O bairro está parado, não acontece nada. Continuo a trabalhar para sustentar os meus filhos. São adultos, mas não têm um emprego, apenas biscates nas obras. Penso que a vida ficou pior, antigamente tínhamos machimbombos e um Mercado cheio de movimento, não era preciso perder o dia para ser atendido no centro de saúde”, recorda o sapateiro.
São 11 da manhã e no centro de saúde de Infulene, Unidade A, cerca de duzentas pessoas aguardam para ser atendidas. “Em média são 300 pacientes por dia e somos apenas dois agentes de saúde, o que mais nos faz falta é o reforço de pessoal. Sobretudo um médico, que viesse ao menos uma vez por semana. Também temos tido problemas com a falta de antibióticos”, aponta o agente de saúde Francisco Ernesto. A malária e os problemas respiratórios são as doenças mais frequentes na região em acordo com o agente. “Enquanto a lixeira não for fechada as doenças de pele e infecções vão continuar. As crianças são as que mais sofrem”, chama a atenção Francisco.
No pátio da Escola Completa da Machava ‘A’ as crianças correm para a sala de aula quando ouvem o sinal. São 2300 crianças e 53 professores na unidade de ensino. A directora pedagógica Ana Manjate, na escola desde 1982, diz que a unidade desenvolveu-se nos últimos anos, sobretudo com a chegada das carteiras. Os desafios, porém, continuam. “Faltam-nos casas de banho e uma sala para os professores trabalharem. Há educadores a tirar curso superior, mas sem bolsa de estudos, eles deveriam ter prioridade”, comenta a professora.
Flávia Augusto Gocas, 26 anos, concluiu os estudos secundários, mas há cinco anos não encontra um emprego. Chefe de família, responsável pela mãe e por dois irmãos menores, a solução foi tornar-se empreendedora. “Eu crio galinhas, levam 30 dias para ficar prontas para o abate. O custo médio é de 50 meticais por animal, vendo-as por 125 meticais aos clientes. Falta iluminação no bairro, há postes mas estão sem candieiros. É um problema quando chegamos tarde, com a escuridão vêm os assaltos, a população sente-se insegura”, conta a moradora.
O secretário do bairro de Infulene, Francisco José Magaia, concorda com a moradora. “Falta iluminação, é mais um dos problemas que temos de resolver. Calçamento, lixo, pessoal no centro de saúde, a reabilitação do mercado… estas são dificuldades comuns aos bairros da Matola e de Maputo. Mas é inegável que a vida melhorou nos últimos anos. Por exemplo, o município vai investir sete milhões de meticais em pequenos negócios para minimizar o problema do desemprego. A nossa zona já não possui espaço físico para crescer, mas empresas ligadas ao processamento de alimentos são bem vindas para ajudar a desenvolver a região”, convida Magaia. O secretário afirma que a lixeira será vedada em breve, mas reconhece que se trata de uma solução temporária. “É preciso que os municípios de Maputo e da Matola estabeleçam uma parceria e construam um aterro sanitário distante das residências, é esta a recomendação da Assembléia Municipal”, conclui.
Acordos de Lusaka
Diamantina Armando, 42 anos, nasceu em Gaza e vive no bairro Acordos de Lusaka desde 1983. Pensa que a vida melhorou nos últimos anos, em especial “porque aumentou o número de escolas”. O que lhe aflige é ainda não ter água canalizada em casa. “É preciso ir à fonte, que fica longe, todos os dias buscar água, é muito complicado para uma família. E o lixo, que continua a acumular-se pelo bairro”, reclama a dona-de-casa.
A bomba da Águas de Moçambique fica ligada no bairro Acordos de Lusaka entre às quatro e as onze horas da manhã. São os privados que complementam o abastecimento na região. Salvador Ricardo é o responsável do empreendimento GALWATT, que possui quatro reservatórios de mil litros e mantém a bomba a funcionar entre às cinco e às 20 horas. “A rede pública não é suficiente, por isso operamos aqui. No último ano ligamos mais de 100 famílias, o custo é de 2500 meticais por ligação e um metical por bidão de 20 litros”, explica Salvador.
O secretário do bairro Acordos de Lusaka reconhece as dificuldades enfrentadas pelos moradores. “Há famílias que não conseguem reunir os 2500 meticais para ligar a água ou mesmo os 850 para ter energia eléctrica. Problema grave são as ruas, que alagam quando chove, ficam intransitáveis. Outra reivindicação da comunidade, penso que a principal, é o regresso do centro de saúde. Temos 13 mil moradores, não podemos depender do centro de Infulene”, sublinha Fátima.
Acordos de Lusaka, Infulene, São Dâmaso e T3. Bairros vizinhos que sofrem de um problema comum: chapas. “A quantidade de chapas é pequena, estamos sempre amontoados. Depois, não há ligações entre os bairros, e se há são de carrinha aberta. Outra questão são os trajectos, sempre reduzidos para pagarmos duas vezes”, resume Paulo Tivane, 24 anos, que mora em São Dâmaso e trabalha numa bomba em Malhangualene, apanha dois chapas para ir e outros dois para voltar.
Patrice Lumumba
Carlota Matola, 41 anos, comerciante e moradora no Patrice Lumumba reforça a queixa. “A loja que vende CREDELEC foi assaltada e fechou. Para comprarmos o crédito temos de ir ao T3, aqui do lado, mas é preciso apanhar dois chapas para chegar lá. É verdade que a vida mudou para melhor no Patrice Lumumba, temos um banco e uma bomba de gasolina, a zona é beneficiada pelo seu forte comércio, que abastece os bairros da região. Mas, já agora, o problema do corte de luz tem de ser resolvido, porque há crianças a estudar no turno da noite e não podem andar pela escuridão”, aponta Carlota.
A “agitação” nas ruas de Patrice Lumumba é confirmada por Cristino Guambe, 25 anos, sacristão na Comunidade Imaculada Conceição. “O bairro é grande, o comércio atrai muita gente. Os jovens estão sempre na rua, desocupados. O problema é o desemprego que se junta à gravidez precoce e resulta em famílias sem futuro. Precisávamos de um centro para acolher os jovens, promover formação profissional, falar sobre as dificuldades da juventude”, sugere Cristino.
O livreiro António João, 25 anos, tem a sua banca no mercado de Patrice. Não se queixa da vida. “Ganho em média três mil meticais por mês, para sustentar a mulher e a menina. Voltei a estudar, gostava de ser geógrafo. A vida está normal, depende do esforço de cada um. Hoje já não se pode ter muitos sonhos, mas trabalho para que a minha filha me ultrapasse”.
A comunidade de Patrice Lumumba ultrapassa os 17 mil moradores. Um centro de saúde, uma esquadra e a drenagem são as prioridades para Inocência Zandamé, 49 anos, que trabalha no Tribunal do bairro. “A zona está superpovoada e o mercado, por exemplo, com as instalações esgotadas. Crescemos muito nos últimos anos, há vias de acesso e escolas, mas também o problema do transporte para os que trabalham longe. O desemprego carrega grande parte dos males, chama o álcool e as brigas, provoca divisões nas famílias. Os nossos problemas não são diferentes dos outros bairros. A luta continua”, garante Inocência.
Repensar as cidades a partir dos moradores
Conhecer os problemas “reais” das zonas urbanas, envolver os moradores na construção de soluções e canalizar recursos financeiros para a reabilitação das zonas residenciais são as tarefas necessárias para atender aos desafios das cidades moçambicanas na perspectiva do sociólogo Eugénio Braz. “Instalar equipamentos não resolve o problema das comunidades. É preciso conhecer de modo aprofundado as dificuldades enfrentadas pelos habitantes das zonas urbanas. Há aspectos culturais que precisam ser levados em conta, os equipamentos que são considerados adequados na Europa, por exemplo, podem não responder as necessidades locais. A população precisa ser ouvida e incluída nas soluções”, aponta Braz, especialista em urbanismo.
Uma política de Estado voltada para o campo e os elevados gastos com a guerra são algumas das explicações do sociólogo para os problemas enfrentados pela população de Maputo e da Matola. “Os documentos oficiais apontam que a nossa prioridade nos últimos 36 anos foi o campo. A guerra colocou os recursos financeiros ao serviço da segurança nacional. Ou seja, os equipamentos nas cidades ficaram gastos e ultrapassados. O que também explica as dificuldades dos bairros é o crescimento da população e a sua transferência para as cidades. Mas não é só isso. Durante o estado colonial o espaço da cidade foi negado à maioria da população, a cultura urbana é recente e precisamos desenvolver um modelo próprio”, analisa Braz.
A tendência para se rotular a origem dos males urbanos deve ser evitada segundo o académico. “Improdutividade, ignorância, pobreza... não se deve rotular as causas dos problemas, mas sim compreendê-los. Quando vemos as fraquezas também enxergamos o potencial. É preciso redireccionar as políticas e canalizar recursos financeiros para desenvolver e reabilitar as cidades, mas isso deve ser feito com a participação dos moradores e das organizações da sociedade civil”, conclui Braz.
Savana – 17.06.2011