Ao Dick, Chambote, Jamal e RD,
A cada dia que passa, cresce o meu apetite pelos distritos, ouvindo estorias de gente da terra e partilhando experiencias quase divinas! Desta feita resolvi passar os 36 anos num distrito! Para dizer a verdade em vários! O facto decisivo para esta escolha foi o facto de ter encontrado casualmente na ATM, do Standard Bank dois professores de Mutarara a levantar dinheiro!
Apercebi-me que eram de Mutarara depois de ter reclamado pela demora! Eles estavam a minha frente na fila da ATM, e estranhei a demora! Quando os interpelei, o Professor Kembo, da Escola Secundaria de Mutara, pacientemente explicou-me a tragédia que viviam!
Porque o ministério da Educação já não paga em numerário, fazendo depósitos dos salários dos professores no Banco Internacional de Moçambique (Mais uma razão para a aprovação da Lei da Concorrência), estes são obrigados a levanta-lo nos balcões ou ATMs deste banco. Acontece porem que em vários distritos, não há simplesmente balcões ou ATMs! Aí os professores são obrigados deslocarem-se a outros distritos e no caso em apreço a outras províncias!
Para os professores de Mutarara há três alternativas: cidade de Tete (a quase 300 quilómetros e estrada batida e sem transporte regular), Caia e Quelimane. Acontece porem, como testemunhei varias vezes, que o balcao e ATM de Caia fica muitas vezes sem rede, e foi o que aconteceu com o agora meu amigo Tembo! Tendo saído de Mutara no intuito de levantar o seu mísero salário em Caia (entre 70 a 100 kms), não pode fazê-lo porque a ATM não tinha 'sistema'! A alternativa era Quelimane a cerca de 200 quilómetros! Tendo ouvido a sádica historia, e movido pela curiosidade em conhecer Mutarara, pus-me a caminho! Salvou-me o porco estufado da Tia Verónica para almoço!
Saí no carro de um amigo da Cidade de Quelimane e sucessivamente escalei os distritos de Nicoadala, Mopeia, Morrumbala para finalmente desembarcar no Distrito de Mutarara! Foi e está sendo uma aventura e quiçá uma experiencia sem igual!
Interessante notar que a estrada Quelimane-Zero encontra-se num estado transitável, para não dizer paradisíaco se compararmos com a maior parte da rede rodoviária na província da Zambézia! Infelizmente o mesmo não se pode dizer do troço Zero-Morrumbala que é uma verdadeira lastima! Me parece que a empresa Dunavant esta a fazer falta, pois pelos vistos a OLAM, a nova dona da concessão algodoeira em Morrumbala, não tem estado a fazer o match das actividades que a multinacional americana fazia, aliás suponho não ser sua tarefa, justificadamente!
Para surpresa minha, a estrada Morrumbala Sede-Rio Chire (podendo-se andar a 80 kms/hora) está em melhores condições que a anterior, isto e a Zero-Morrumbala-sede! A estrada Chire-Mutarara e outra lástima! Um TPC para os manos Meque (FIM) e Vaquina!
Dois pontos marcaram esta viagem! A travessia do Rio Chire e o facto de ter conhecido os pais e parte da família do meu amigo Egídio Vaz Raposo!
Cheguei a travessia do Chire, depois de ter atravessado a velocidade da luz, a Vila onde nasceu o ex-deputado, político e renomado advogado da nossa praça, Máximo Dias, a velocidade da luz, porque na vila de Morrumbala nos advertiram que o batelão fechava pontualmente as 17.00 horas. Dito e feito, as 17.05 quando chegamos a travessia, os homens já se tinham ido! Um pouco de Sena, foi o suficiente para voltar a aldeia e 'recrutar' de volta os exímios funcionários que prontamente se prestaram a dar-nos a 'txova' que precisávamos para não ter que ou pernoitar no local (abarrotado de mosquitos) ou então regressar a vila de Morrumbala ( o que teria deixado o meu amigo Jorge Tinga felicíssimo)! Mas não foi desta!
Enquanto se davam os preparativos para pôr o batelão, puxado manualmente, chegou um Land Rover sul-africano que transportava um casal sul-africano e seus filhos, por sinal também um casal do qual retenho o nome da filha, Jessica). Segundo o casal, o GPS deles dizia-lhes que não havia como atravessar o famoso Chire! Apanharam nossa boleia e trocamos de cartões!
Duas horas depois da travessia estava eu pela primeira vez em Mutarara, terra dos meus amigos João Jamal, Raul Domingos, Raul Chambote, Florentino Dick e outros! Essa terra mágica que produziu nada menos e nada menos o recorde de candidatos presidenciais por distrito (tres)-Casimiro Nhamitambo, Francisco Campira e Raul Domingos! -um fenómeno a ser estudado por politólogos!
Tanto o Dick, como o Jamal, Chambote contaram-me estorias deste lugar que me criou o desejo de conhecer! E ao entrar no vilarejo, sentia-me já em casa pois ia reconhecendo os lugares mágicos do lugarejo! Era como se estivesse a regressar à minha terra!
Atravessar o rio Chire ( testando a famosa navegabilidade) foi um momento magico e indescritível!
Outro momento inesquecível foi o meu primeiro encontro com um intelectual de craveira internacional, de nome Guilherme Vaz Raposo, por sinal pai do meu amigo Egídio Vaz!
Montado numa cinquentinha, com a inseparável esposa, o velho-jovem bibliotecário na escola local, apresenta uma jovialidade fora do normal e uma pujança intelectual rara! N
Na minha biblioteca faltam apenas sete livros: os relatórios do I, II, III, IV, V, VI, VII, VII Congressos! Por mais que não se concorde com o seu conteúdo, são instrumentos incontornáveis para quem queira entender a história de Moçambique - rematou Vaz Raposo.
Depois de cinco minutos de conversa exclamei - pai agora percebo porque o Egídio fez o curso de Licenciatura em historia'! O velho professor reformado, foi formado em 1964 pela missionária Escola de Boroma que considera ter sido 'o berço da nacionalidade, do nacionalismo e intelectualidade moçambicana'. Para sustentar afirma que Eduardo Mondlane visitou a missão em 1961/2, e que a missão de Boroma foi o 8 de Março dos anos Sessenta!
Para Vaz Raposo e importante que as jovens gerações bebam das fontes ainda vivas para que saibam de onde vem e desta forma possam sustentar com orgulho a nossa herança, e a nossa auto-estima. 'A vida não tem sentido se não conhecermos a origem das coisas'!
- 'Meu filho, sabes porque Quelimane e Quelimane?" E Mocuba? Gurue? Como te podes orgulhar de ser negro africano se não conheces as tuas origens?
A pouco e pouco o velho ia exibindo seu manancial de conhecimentos acumulados ao longo dos anos, provando-me por A mais B, que eu não passava de um curioso cretino! A eloquência do velho Guilherme (Nkutche) e simplesmente fabulosa! O seu conhecimento da história portuguesa, desde os tempos do Condado portucalense, do Lavrador Dom Dinis ate aos nossos dias espanta a qualquer candidato a intelectual!
Não é por acaso que o velho afirma, com orgulho, que 'foi formado para leccionar, não só em Moçambique, como em todo 'Império Salazarense'- Desde Goa, Diu, Damão, até a Angola, São Tome, Cabo Verde, etc!
Quando lhe perguntei se já escrevera a sua biografia, respondeu-me peremptoriamente e sem pestanejar: 'O Egídio, meu filho, saberá onde localizar os rabiscos que fiz!' Vendo caras de desaprovação pela descriminação em termos de género que acabava de fazer, perspicaz, o velho rectificou dizendo " ... ou as minhas filhas..." Era tarde demais, o testemunho fora passado ao herdeiro varão!
Ficou no ar, e disso não perdoarei a mãe Ana, o cheque-mate: o que faz de Mutarara uma barril eterno de revolta contestatária e descontentamento eterno? Será o facto de já ter feito parte de Sofala, Zambézia e hoje Tete? ou e a localização geográfica estratégica encravada entre as três províncias e o Malawi? Será o facto de Mutarara ser geologicamente falando o fim, ou principio do fabulosamente rico em minerais Rift Valley?
Muito ficou por contar e descrever as lindas horas que passei ao lado da família Vaz Raposo! Mas para não violar a privacidade deles, pois não tenho autorização para contar, quedo-me por aqui, na certeza de que temos 'miliares e miliares' de bibliotecas intelectuais ainda vivas e que devem, ser exploradas atempadamente para preservar a nossa herança histórica e quiçá a nossa 'auto-estima'!
O dia passou sem me ter apercebido e, quando já passava da meia-noite, a mãe Ana, encheu-se de coragem e disse, em tom irrevogável (no jeito peculiar das poderosas Donas do poder matrilinear do Vale do Zambeze - 'amanhã é Domingo, e temos obrigações religiosas! Foi o suficiente para nos encolhermos e quebrar a envolvente amizade e cumplicidade que fará de Nkutche Guilherme Vaz Raposo, não só o pai do Egídio, como também meu, mesmo que o 'ciumento' do Egídio não o queira! Afinal de contas, quem quereria dividir um pai destes?
Manuel de Araújo
www.manueldearaujo.blogspot.com