SR. DIRECTOR!
Voltamos a afirmar e confirmar a nossa condenação de sermos estrangeiros na terra que nos viu nascer. Um governante que não estuda a conhecer o povo que governa nunca pode ser bom governante, por mais inteligente e fiel intérprete da legislação do governo que representa. Um governante tem de saber e conhecer a melhor forma de comunicar com o governado. A forma correcta de interpretar a lei é utilizar a linguagem de comunicação ao alcance do governado. A comunicabilidade entre o detentor da autoridade e o cidadão comum não é só essencial, mas é sobretudo imprescindível para a governação.
Os médicos estrangeiros das igrejas evangélicas (protestantes) não tinham problemas de comunicação, porque faziam consultas médicas em ronga, changana e xitswa, respectivamente em Maputo, Chicumbane, Maússe, Chicuque e Cambine.
As mulheres grávidas africanas na era colonial preferiam caminhar longas distâncias de casa para ir dar parto numa maternidade de uma igreja protestante porque o médico de Chicumbane e de Chicuque dava consulta na língua materna da mulher grávida africana. O médico português precisava de um enfermeiro auxiliar para consultar e dialogar com uma mulher grávida ou parturiente. A situação se tornava séria e grave quando uma mulher africana precisasse de uma consulta de um médico ginecologista, em que a doente devia tirar a roupa (despir-se) para o médico ginecologista poder ver os órgãos genitais da doente.
Se o caso fosse só entre o médico e a doente não haveria o problema. O médico português tinha que ter um enfermeiro auxiliar para servir de intérprete e podia acontecer o caso de o enfermeiro auxiliar ser vizinho, familiar ou mesmo sobrinho da mulher no consultório do médico ginecologista. Como é que a mulher africana havia de ficar nua em frente de um jovem enfermeiro auxiliar e ela senhora da idade da mãe do enfermeiro intérprete?
Os hospitais e maternidades de Chicumbane e de Chicuque foram sempre procurados e preferidos, devido à qualidade e carinho dos serviços prestados pelo pessoal médico no seu tratamento e facilidade de comunicação.
O semanário “Domingo”, na sua edição de 19 de Agosto corrente, na última página, dá-nos a conhecer um acontecimento ocorrido num tribunal distrital em que o réu não sabia falar a língua de Camões e os únicos dados que a instância de justiça pôde obter do réu foram as perguntas sobre a sua identidade, lugar de nascimento, filiação e mais nada. Como o réu não compreendesse o português e a meritíssima juíza não autorizar a tradução, o julgamento prosseguiu sem depoimentos e sem mais delongas já que o critério da meritíssima juíza foi de que se o réu não sabia falar português ela não era culpada. Fazer um julgamento sem o réu pode falar constituiu um julgamento só no entender da meritíssima juíza.
A juíza não tem culpa. A culpa é do legislador, do Governo e da instituição da formação em Direito que não contam com aqueles cidadãos (maioria) que não falam e nem entendem a língua de Camões. Nada está previsto na lei uma situação em que se lida com um cidadão analfabeto em português.
Infelizmente, o nosso sistema de educação e formação de quadros não prevê a situação em que um analfabeto camponês que só se comunica na sua língua materna. Quem não sabe falar a língua de Camões, que se lixe. Fica sujeito a Deus dará. Se ele não estudou não é culpa de ninguém. Não é culpa do professor, do polícia, do administrador, do governador, do ministro e não é culpa do fazedor das leis, o deputado.
Nós formamos e lançamos no mercado do emprego homens e mulheres sem nenhuma noção e sensibilidade de um Moçambique real. O Moçambique verdadeiro e real é um país de pobres e analfabetos, a maioria dos quais não falam, não escrevem nem entendem a língua de Camões e governar e dirigir Moçambique sem levar em linha de conta esta realidade moçambicana é governar às apalpadelas. Quando a juíza não autoriza a tradução do changana ou ronga para português e vice-versa não leva em linha de conta a situação concreta de um Moçambique real, cujo índice do analfabetismo situava-se em 97 porcento em 1975. A juíza está a pretender viver e trabalhar num país em que todos os cidadãos se comunicam em português, como é o caso de Portugal Continental.
Não imagino o cenário num Tribunal de Menores em que aparece uma senhora africana divorciada ou viúva a querer defender a posse do seu filho num processo-litígio em que ela é ré ou queixosa, numa situação em que ela não entende a língua de Camões. Os juízes da nova geração não sabem falar nenhuma língua nacional moçambicana e o tribunal não possui um intérprete oficial, como é o caso do tribunal distrital que o semanário “Domingo” relatou na sua edição de dia 19 deste Agosto.
No decurso das primeiras eleições gerais e legislativas de 1994, eu vivi uma experiência que jamais passará da memória. Nessa altura, eu vivia na Rua António José de Almeida 253, em Maputo, perto do Clube dos Professores e o meu local de voto era a Escola Primária da Coop. Quando chegou a minha vez de votar recebi das mãos dos oficiais um boletim de voto e as respectivas instruções do processo de votação e fui votar.
Na saída, deparei-me com duas senhoras de uma idade avançada em frente dos oficiais responsáveis pelo processo de votação. As velhas não sabiam falar a língua do processo de votação (português) e nenhum dos jovens oficiais pretendia saber falar a língua das velhas votantes (changana ou ronga). Não havia nenhuma língua que pudesse servir de instrumento de comunicação entre as velhas e os oficiais. A solução encontrada foi a violação do código do processo de votação quando um dos jovens oficiais depois de consultar os colegas, solicitou-me que servisse de intérprete não só nas instruções do processo, como também que eu fosse acompanhar as velhas (uma de cada vez) até à boca da urna e que eu lhes perguntasse o nome do candidato e do partido a que pretendiam votar para lhes indicar as urnas. Uma autêntica violação das regras e do procedimento do processo eleitoral por falta de língua comum de comunicação e por não estarem previstas as situações desta natureza na legislação do Parlamento da República e no STAE.
Um só país, uma só língua e quem não domina a língua de Camões não tem hipótese alguma de conhecer as leis do país em que ele é cidadão de pleno direito.
O Chefe do Estado, nas suas deslocações no âmbito da presidência aberta, trabalha e permite uma tradução quando se dirige às populações. Uma juíza distrital, na sua esfera da jurisdição, não autoriza uma tradução.
Quem me dera conhecer essa meritíssima senhora doutora juíza.
Lançamos quadros no mercado do emprego no Aparelho do Estado sem uma formação adequada para enfrentar e resolver os problemas e situações de um Moçambique real.
- Gabriel Simbine