OS autores do livro que passo contra-apresentar decidiram começar, logo na sua introdução, pela imagem da capa do livro – imagem do simbolismo patriótico e africanista do cidadão que salvou a árvore de um iminente abate e venda. Os autores entendem que neste acto de cidadania está implícito um Pensamento Engajado.
É isto mesmo a filosofia: uma viandante permanente, que não se esquece, porém, de registar o caos que ela arrasta consigo no momento de se afastar do supérfluo. Era a mudança para as actuais instalações no Campus de Lhanguene. A partir deste entulho, despertam, do fundo da gaveta do esquecimento, recordações de uma série de metamorfoses de um Pensamento Engajado que, sem ser conservadorista, procura salvar, pelo menos em imagem, o que já deu de si.
Estes papéis ao chão são, muitos deles, manuscritos ainda da altura em que não tinhamos computadores e outros dispositivos, como os temos hoje, para registar e conservar as nossas produções, as nossas ideias e, usando a terminologia dos autores do livro, o nosso Pensamento Engajado pela filosofia e pela Educação em Moçambique. A propósito: Severino Ngoenha, co-autor do livro, escreve, a dado passo, que o esforço que empreendeu nas suas primeiras obras para trazer a filosofia ao debate moçambicano alcançou inesperadamente dimensões extraordinárias em 1995 quando lhe foi dada a oportunidade de “conceber um curriculum da filosofia para a Universidade Pedagógica e acompanhar a formação de professores que se encarregariam, num segundo momento, de introduzir a filosofia em todas as escolas secundárias do país”. Diga-se também que este foi o corolário de um engajamento pela (re)introdução da filosofia em Moçambique a partir da Universidade Pedagógica, e sem pôr de lado as contribuições das sessões semestrais do Clube dos Amigos de Filosofia, organizadas pelo Departamento de Filosofia e abertas a todos os interessados pelo debate filosófico. Todo este esforço está testemunhado nos papéis ao chão, na contra-capa, mas que já se transformaram em programa e em manual de filosofia para o ensino secundário e em curricula de Filosofia na UP, em Moçambique.
O livro agora em apreço tem por título Pensamento Engajado. O termo “engajado”, aqui, como título da obra, pode parecer suspeito: engajado por que causa? Por alguma ideologia, ou seja, revestido de alguma roupagem política? Um pensamento que está sempre de acordo com as injustiças e violações dos direitos, ou, então, com o oposto? Efectivamente, se pelo menos há um ponto sobre o qual, à primeira vista, os filósofos estão sempre de acordo, é o de que não estão sempre de acordo, mesmo entre eles. Mas há um ponto central em que os nossos autores estão de comum acordo entre eles: é que o engajamento de que escrevem é “por preocupações patrióticas”, e mais precisamente, “do engajamento numa reflexão sobre a condição humana, neste caso concreto, sobre a condição humana dos moçambicanos e dos africanos na história”. Mais explícitos ainda são eles quando falam da LIBERDADE como o sonho dos sonhos, como o motivo dos motivos, como o fim dos fins desse engajamento. E, assim, chegam eles ao âmago da questão das suas abordagens.
Se tivermos em conta que toda a teoria consiste na procura de uma resposta a um determinado problema ou complexo de problemas, então, existem, com efeito, tantas teorias quantos problemas existem para lhes dar resposta. Mas essas teorias têm como pano de fundo duas variantes de interesse intelectual que caracterizam a postura do pesquisador, seja ele cientista e/ou filósofo. Penso que é isto que deve ser lido e apreendido por as entre linhas deste livro. Quer dizer, cada uma destas variantes está orientada ou mais para a teoria ou mais para a praxis, conforme esteja mais interessado pelo conhecimento (o saber) ou mais interessado pelo agir (a prática), respectivamente. Resumidamente: que postura é mais adequada para os pesquisadores de respostas dos problemas com que se deparam? A neutralidade ou o engajamento com relação ao que pesquisam? Esta, presumo, é a questão eminentemente ética que os autores pretendem partilhar conosco.
Na verdade, o cientista e/ou o filósofo tem, como qualquer outro, o direito e o dever de se engajar moral e/ou eticamente na busca de respostas para as suas inquietações, assumindo, portanto, uma posição crítica, a partir mesmo do seu próprio engajamento, com relação ao fim ou ideal que tem em vista. O cientista e/ou o filósofo moçambicano deveria ser, em primeira linha, é o que entendi da leitura, um teórico cujo engajamento de pensamento pudesse provocar reflexões éticas, portanto críticas, quanto às implicações humanas e ecológicas de suas pesquisas, mostrando de forma argumentativamente fundamentada e, por conseguinte, racionalmente convincente, de que a moralidade é uma qualidade incondicional do agir humano. Para mim, este é o interesse cimeiro do livro. Ele não está para dar instruções, mas para contribuir suscitando o debate a todos os níveis.
O Pensamento Engajado, enquanto pensamento sempre atento às mudanças e às transformações do País, do Continente e do Mundo, mas também enquanto procura integrar na construção da intersubjectivação os pensadores e/ou filósofos não-profissionais, os chamados por “sábios”, é um pensamento crítico-participativo. Daqui a pergunta para todos nós: como envolver a sociedade e as instituições afins no delineamento conjunto das possibilidade da integração destes aspectos nos próximos curricula de filosofia, tanto no ensino secundário, como no superior para que eles não resultem como iniciativas esporadicamente individuais? Já não basta produzir ideias ou conhecimentos teóricos, mas, interessam sim, essencialmente acções.
O interesse pela liberdade pode ser, como já afirmei mais acima, mais de natureza teórica ou mais de natureza prática, conforme se queira saber o que se entende por liberdade ou se esteja interessado em saber como é que ela se concretiza, seja no plano do pensamento seja no da acção. Porém, os aspectos teórico e prático do conceito de liberdade só se separam um do outro abstractivamente, uma vez que a liberdade é um princípio fundamentador da acção, mas que também deve ser desenvolvido no pensamento. O que a liberdade é, na verdade, sabe não só quem pode analisar o conceito de liberdade, mas quem pode também incorporar o seu saber teórico sobre a liberdade na sua praxis de vida, agindo em conformidade com ele. Liberdade de pensamento e liberdade de acção são duas faces de uma mesma moeda.
Tomemos de Annemarie Pieper (2007) um exemplo ilustrativo:
Um senhor de escravos discute com um escravo esclarecido sobre os direitos humanos. No decurso do debate ambos chegam à conclusão de que um homem só existe verdadeiramente como tal, se se dispõe livremente de si mesmo, juntamente com os outros homens, aos quais é igualmente concedida, segundo o princípio da igualdade, o direito de livre realização autónoma. No fim da conversa, o senhor manda, satisfeito com os esclarecimentos, o escravo de volta ao seu trabalho habitual.
Nesta diálogo fictício, o senhor de escravos compreendeu em um certo sentido (o teórico) o que a liberdade é, mas, na verdade, ele não entendeu a essência da liberdade, senão o seu conhecimento o teria levado a consequências práticas: teria concedido liberdade ao escravo.
Com o que acabo de expor, e valendo-me nos autores do Pensamento Engajado, pretendo defender que se a questão da liberdade é, em primeira linha, e, por isso, na sua essência, uma questão ética, ela encontra na política um espaço predominante. Efectivamente, como diz o filósofo espanhol Fernando Savater, a ética tem a ver com o que cada um faz com a sua liberdade, cabendo à política coordenar de maneira mais benéfica para a comunidade ou a sociedade aquilo que todos fazem com as suas liberdades. Entre a ética e a política não deve (não deveria) haver contradição, mas a ética deve (deveria) tomar a dianteira, pois não deve (não deveria) ficar a espera para denunciar abusos, ditaduras e totalitarismos.
NR - "Pensamento Engajado" é o título de uma obra com ensaios sobre filosofia africana, educação e cultura política da autoria de Severino Ngoenha e José Castiano, lançada ontem em Maputo
- Mário Alberto Viegas