O MALOGRADO Presidente Samora Moisés Machel amava este país, de tal sorte que inculcou nos moçambicanos a mentalidade popular consubstanciada no socialismo, doutrina político-filosófica que, fundamentalmente, defende o princípio da igualdade entre os homens.
Alberto Joaquim Chipande foi orador duma palestra sobre a vida e obra de Samora Machel havida terça-feira no Centro Internacional de Conferências Joaquim Chissano. Veterano da luta armada de libertação nacional, o homem que disparou o primeiro tiro contra as tropas portuguesas ao serviço do regime colonial no posto de Chai, na província de Cabo Delgado, a 25 de Setembro de 1964, Alberto Chipande proferiu aquela palestra a convite da Escola do Partido Frelimo na Cidade de Maputo, no âmbito das comemorações do Ano Samora Machel.
O orador começou a sua intervenção afirmando que não era fácil falar da vida e obra dum homem da estatura e dimensão de Samora Machel. Segundo Alberto Chipande, tal como muitos moçambicanos no período da dominação colonial, Samora Machel nasceu num território que não era pátria e explicou:
“O território onde vivemos não era Moçambique, mas sim Portugal. Nós não éramos moçambicanos, mas sim portugueses”, disse, acrescentando que Samora Machel lutou para ter pátria, uma acção que se notabilizou desde os tempos em que, na então cidade de Lourenço Marques (hoje Maputo) e após ter tirado o curso de enfermagem, começou a conviver, já no exercício da profissão, com gente de diferentes culturas.
O sentimento de Samora Machel de que era necessário lutar para conquistar a liberdade ante um regime opressor foi ainda alimentado com os acontecimentos que ocorriam no mundo, sobretudo com o fim da Segunda Guerra Mundial, onde muitos países começaram a conquistar as suas independências, incluindo alguns africanos.
Muitos países do continente africano na altura sob dominação colonial começaram a alcançar as suas independências, a exemplo da Tanzânia, e noutros desenvolveram-se movimentos de libertação ou formaram-se partidos políticos. Moçambique não podia ser uma ilha, mas as autoridades portuguesas de então teimavam em afirmar que o país, na altura colónia, era indissociável de Portugal.
Na esteira dessa teimosia, Portugal atribuiu a Moçambique o estatuto de província ultramarina e mais tarde foi transformado em Estado. Alberto Chipande disse que em 1960, Samora Machel encontrou-se com Eduardo Mondlane, que estava de visita a Moçambique proveniente dos Estados Unidos da América, com quem trocou impressões sobre a situação que se vivia internamente.
Com a fundação da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), em 1962 na Tanzânia, muitos jovens nacionalistas decidiram abandonar Moçambique para se juntar ao movimento e lutar contra o regime colonial. Foi assim que Samora Machel tomou a decisão de deixar a enfermagem e rumar para a Tanzânia para se juntar à Frente, em 1963. Samora Machel atravessou a Catembe para a Suazilândia, donde seguiu para o Botswana. Do Botswana tomou avião para a Tanzânia.
Quando chegou em Dar-es-Salam, Samora Machel foi recebido por Alberto Chipande e outros nacionalistas que já se encontravam na Tanzânia para se juntarem à FRELIMO. Foram dirigidos para um campo. Eduardo Mondlane já havia regressado aos Estados Unidos na altura.
Os jovens nacionalistas ficaram à espera que Mondlane regressasse das Nações Unidas onde trabalhava. Quando Eduardo Mondlane chegou a Dar-es-Salam, de regresso dos Estados Unidos, convocou uma reunião com todos os jovens que haviam aderido ao movimento e, segundo Alberto Chipande, perguntou um a um qual era o seu objectivo. Conta o veterano que muitos disseram que queriam estudar, outros lutar para a conquista da independência do país.
Samora Machel terá se posicionado do lado daqueles jovens que queriam lutar. Eduardo Mondlane terá tentado convencer a Samora Machel para continuar os estudos na sua área de formação, mas este respondeu simplesmente que queria libertar o país lutando. Na altura, a Frente de Libertação de Moçambique havia conseguido formar um acordo com Argélia para o envio de jovens para treinos militares. O primeiro grupo que partiu para Argélia era dirigido por Filipe Samuel Magaia e integrava Feliciano Gundana, Samora Machel, Milagre Mabote, entre outros, num total de cerca de 55 jovens. Mais tarde juntaram-se outros jovens, totalizando 77 e Samora chefiou um dos dois grupos que se haviam formado.
“Um dia, no quartel, eu e Samora fomos escalados para cozinha para descascar batata. Começamos a discutir, entre nós, sobre as razoes por que Eduardo Mondlane nos havia enviado para uma terra de brancos. Samora disse que não se tratava duma questão de brancos. Discutimos sobre se quando regressássemos devíamos ou não matar brancos em Moçambique. Para muitos nós, era uma questão de matar brancos que nos oprimiam, mas Samora mandou parar com a conversa.”, disse, acrescentando que os jovens instruendos saíram divididos do grupo.
Foi então, segundo Alberto Chipande, que alguns integrantes do grupo escreveram para Eduardo Mondlane em Dar-es-Salam dizendo que devia se acautelar porque Samora Machel havia de o golpear. O veterano afirmou que as intrigas na Frelimo não são de hoje.
De regresso a Tanzânia, em 64 (nos princípios?), segundo Alberto Chipande, a ala contrária a Samora Machel não quis ir ao quartel, preferiu descansar. O grupo de Machel foi então direccionado ao centro de Kóngwa. Não havia nada em Kóngwa, e o grupo só contava com catanas, tendas e panelas.
Foi então que Samora Machel começou a estruturar o grupo. Alberto Chipande disse que uma comitiva do ex-comité de libertação de África visitou o centro e ficou bastante satisfeito com o que viu. Machel recebe da direcção da Frelimo em Dar-es-Salam a missão de organizar os jovens combatentes para a luta armada no interior de Moçambique. O centro recebeu muitos outros jovens que haviam sido treinados noutros países como a China, Cuba, entre outros.
Quando Samora Machel estruturou o grupo, Alberto Chipande ficou encarregue de chefiar o sector da disciplina. “A minha missão era disciplinar o grupo”, disse.
Chipande e outros jovens foram levados, um dia, para Dar-es-Salam, sem saber de que se tratava. Um certo dia, à noite, em Dar-es-Salam, conta Alberto Chipande, Samora Machel apareceu com Mondlane no local onde estava albergado o grupo de jovens de ele fazia parte e falaram da situação que não era boa em Moçambique e disseram que era intolerável. O inimigo era a estrutura portuguesa e não o branco. Mondlane e Samora disseram ao grupo de Chipande que não queriam massacre de civis em Moçambique.
De Dar-es-Salam, o grupo de Alberto Chipande foi transportado de navio e um dia depois já estava em M´Twara, na fronteira com Moçambique. Foi nos meses de Junho e Julho. O grupo era desprovido armas. Mais tarde, foram enviados outros jovens moçambicanos ao local onde estava acampando. Os integrantes do grupo terão suspirado de alívio, quando a polícia tanzaniana apareceu ao local para anunciar que já estavam disponíveis armas para aqueles jovens iniciarem a guerra no interior de Moçambique.
A 1 de Agosto de 1964, já subdivididos em quatro grupos, o primeiro grupo entrou em Cabo Delgado. Alberto Chipande fazia parte desse grupo. Entrou em emboscada mas conseguiu escapar. O rumo era Porto Amélia (hoje Pemba). Tiveram de pedir à direcção da Frente em Dar-es-Salam nova data para o início da luta, dadas as circunstâncias enfrentadas. Foi então dito que a luta de libertação nacional devia começar a 25 de Setembro de 1964.
Foi quando, não tendo conseguido chegar a Porto Amélia, o grupo de Alberto Chipande decidiu atacar o posto de Chai. O general conta que foi ele que deu o primeiro tiro, mas afirma que outros grupos de guerrilheiros que haviam sido espalhados para outros pontos também iniciaram com a luta naquele dia.

LUTA DE LIBERTAÇÃO
Alberto Chipande afirmou que a guerra não foi pacífica. Os dissidentes dos movimentos nacionalistas MANU, UDENAMO e UNAMI protagonizaram uma série de acções visando inviabilizar a Frente de Libertação de Moçambique. Uma dessas acções consistia em arrancar armas aos guerrilheiros da Frente.
No seio da Frente surgiram contradições. Foi então que foi realizado o II Congresso em 1968, onde se descobriram os traidores. “Fizemos purificação na Frelimo. Hoje há purificação?”, questionou, acrescentando que hoje a purificação deve passar pela legalidade.
A guerra já estava a ganhar cada vez mais forma e espaço. Samora preocupou-se em implantar estruturas democráticas da FRELIMO nas bases. Intensificou a formação militar de mais jovens nas zonas libertadas, onde também se apostou na produção. Nas zonas libertadas havia escolas secundárias e hospitais.
Alberto Chipande disse que a aposta na produção é uma necessidade que vem das zonas libertadas. Hoje, os moçambicanos têm que produzir. A cesta básica não será suficiente enquanto não se produzir.
Com o avanço da luta armada no interior, os portugueses concentraram as suas atenções em Cabo Delgado, resultando na ofensiva Nó Górdio, operação dirigida pelo general Kaúlza de Arriaga visando acabar com a Frelimo em seis meses. A Frente resistiu aos bombardeamentos. Foram enviados espiões, cimentado o boato, incluindo tentativas de assassinato de dirigentes, mas debalde. Alberto Chipande citou a célebre expressão de Samora Machel “impermeabilizemo-nos contra as manobras do inimigo”.
“Samora Machel resistiu à ofensiva Nó Górdio, porque soube organizar. Todo o mundo falava da FRELIMO”, disse.
Falhados os propósitos da ofensiva, os portugueses procuraram negociar com a FRELIMO. Para os dirigentes da Frente, as negociações deviam visar a soberania e não qualquer outro tipo de manobra. A propósito da soberania, Alberto Chipande afirmou:
“Amigos, quando vão negociar projectos grandes devem primeiro preocupar-se com a soberania. Foi o que nós propusemos para negociar”, disse.
Num veemente ataque ao tribalismo, nepotismo ou compadrio nas instituições, Alberto Chipande afirmou que na Tanzânia, Samora Machel ensinou aos guerrilheiros que quando se luta para um determinado objectivo, não se olha para o lugar de origem.
“Numa secção, havia gente de vária origem”, disse, acrescentando que hoje nos ministérios e nas empresas do Estado, os funcionários ou os trabalhadores são empregues por critérios que têm a ver com a família.
“Isso não é pensamento de Samora”, rematou.
Alberto Chipande contou, na ocasião, muitos factos tristes e comoventes por que passaram os guerrilheiros da FRELIMO, sobretudo alguns dos seus dirigentes, nos momentos da assinatura dos Acordos de Lusaka, em 1974, chegada a Maputo no âmbito do Governo de Transição, entre outras histórias.