- Numa atitude de arrogância e despotismo o executivo de Gaza antecipou-se aos tribunais e mandou executar uma acção que aguarda decisão do TS e TA
Por Raul Senda (texto) e Naíta Ussene (fotos)
O Governo da província de Gaza acaba de “pontapear” o preceito constitucional que define o princípio de separação de poderes, e ordenou a execução da ordem de encerramento de uma estância turística na praia de Bilene onde é protagonista Belmiro Malate, o actual embaixador moçambicano no Japão, mesmo antes da decisão judicial das instâncias onde o litígio está a ser dirimido.
Trata-se de uma sociedade denominada “À Pérola Lda” que na última sexta-feira, 15 de Julho, viu os seus acessos barrados, portas trancadas e todos os trabalhadores escorraçados para fora do complexo. Os actos foram protagonizados por técnicos das direcções provinciais de Agricultura e de Turismo acompanhados por um forte contingente policial constituído por agentes da Força de Intervenção Rápida e da polícia de protecção.
A ordem do encerramento do complexo “La Perla” verifica-se numa altura em que o litígio envolvendo o governo de Gaza e os sócios de “À Pérola Lda” está a correr os seus trâmites legais no Tribunal Supremo (TS), bem como no Tribunal Administrativo (TA). Nessa senda, o governo de Gaza preferiu antecipar-se às instâncias competentes para a resolução daquele tipo de litígios e mandou os sócios do complexo La Perla abandonarem o empreendimento, desperdiçando um investimento de cerca de cinco milhões de randes, ou seja, 20 milhões de meticais e atirando mais de três dezenas de moçambicanos para o desemprego.
Génese do imbróglio
O “filme”, cujo desenvolvimento está a ser dramático nos últimos dias, começa em Abril de 1997 quando uma sociedade denominada Invesco Lda, representada por Belmiro Malate (Actual embaixador de Moçambique no Japão) requereu junto ao governo de Gaza, a concessão de uma parcela de terra para o desenvolvimento de actividades turísticas no posto Administrativo da Praia de Bilene.
Soube o SAVANA que o pedido teve parecer favorável e o governo de Gaza concedeu dois hectares à sociedade Invesco Lda para fins acima citados.
Em 2004, a Invesco volta a requerer ao governador da província a mudança do registo do Direito de Uso e Aproveitamento de Terra (DUAT) a favor da Sociedade À Pérola Lda. Mais uma vez, o pedido teve resposta positiva e os Serviços Provinciais de Geografia e Cadastro procederam a mudança do DUAT.
Consta-nos que o plano de exploração submetido ao governo de Gaza bem como ao Ministério de Comércio e Turismo (MICTUR), na altura, previa a demarcação e preparação do terreno sem pôr em causa a natureza, construção de 51 casas entre outras benfeitorias em prol da indústria turística.
Em Julho de 2005, o Estado moçambicano, personificado pela direcção Provincial de Agricultura de Gaza (DPAG), ordenou uma vistoria à zona e constatou que, desde 1997 até aquele momento (2005), os promotores da iniciativa ainda não tinham cumprido com as suas obrigações mormente, a demarcação do terreno, tinham erguido apenas 10 casas, faltando 41 e o projecto inicial tinha sido totalmente alterado.
Dessa forma, a vistoria concluiu que o plano de exploração não tinha sido cumprido (violação do número 1 do artigo 18 da lei de Terras) bem como o incumprimento de prazos de demarcação, facto que violava grosseiramente o artigo 30 do Regulamento da lei de Terras.
Lembre-se que a Invesco Lda de Belmiro Malate ficou com o DUAT durante sete anos (1997 - 2004) sem fazer nenhum investimento devido a dificuldades financeiras. Para salvar-se optou por constituir nova sociedade com um cidadão sul-africano de nome Abraham Bruwer. Foi dessa operação que surgiu a sociedade À Pérola Lda.
As 10 casas que a vistoria da direcção provincial de Agricultura foi encontrar em 2005 resultaram do investimento da sociedade À Pérola Lda.
Revogação do DUAT
Face aos dados constatados na visita ao terreno concedido À Pérola Lda, os técnicos de Geografia e Cadastro de Gaza propuseram às entidades competentes a revogação do DUAT por motivos acima referidos para além de dar o tratamento devido aos bens inamovíveis erguidos na parcela em causa.
Perante estes factos e de acordo com o relatório dos técnicos, o então director provincial de Agricultura, Mahomed Valá carimbou a recomendação da sua equipa e aconselhou o governador a seguir os mesmos termos.
Assim, por despacho de 25 de Novembro de 2005, o Governador de Gaza, Djalma Lourenço assinou o despacho com o seguinte teor: “revogo o DUAT em nome de À Pérola Lda, ao abrigo do artigo 18 da lei de Terras, conjugado com o artigo 30 do regulamento da mesma lei.”
No mesmo despacho, Djalma Lourenço dizia que o governo provincial sob proposta da Comissão Provincial de avaliação e Alienação de Bens de Estado, decidiria sobre o destino a dar às benfeitorias revertidas a favor do Estado, sem no entanto, se pôr em causa os direitos dos possíveis proprietários das casas já construídas.
Batalha Judicial
Depois da comunicação do acto da revogação do DUAT, as duas entidades em litígio iniciaram um conjunto de diligências junto às entidades judiciais a fim de ver os seus direitos salvaguardados.
Representado pelo Ministério Público, o Estado moçambicano, através da DPAG, intentou uma acção junto ao Tribunal Judicial da Província de Gaza (TJPG) no sentido desta entidade dar luz verde ao Estado para proceder o registo de imóveis implantados na parcela anteriormente pertencente à sociedade À Pérola Lda, a favor do Estado.
Por sua vez, a sociedade À Pérola Lda interpôs um recurso contencioso junto ao Tribunal Administrativo solicitando a suspensão do acto de revogação do DUAT assinado pelo governador provincial alegando que o fundamento governamental não era convincente e que violava gravemente a lei.
Porém, na sentença proferida no dia 06 de Junho de 2011, a Primeira Secção Cível do TJPG chumbou o pedido do executivo de registar os imóveis em nome do Estado tendo para tal apelidado de nulo o processo e por via disso absolvia a ré À Pérola Lda.
Inconformado com a decisão do juiz de Gaza, o Ministério Público recorreu da sentença e interpôs um recurso junto ao Tribunal Supremo. Neste momento o processo de registo de imóveis a favor do Estado moçambicano está a correr os seus trâmites no Supremo.
O requerimento da sociedade À Pérola Lda, pedindo a suspensão do acto do governador, também está a correr junto ao Plenário do Tribunal Administrativo.
“Assalto” ao complexo turístico
La Perla é o nome do complexo turístico da sociedade À Pérola Lda. A estância viveu momentos conturbados entre sexta e sábado passados.
O episódio começou na tarde da segunda-feira, 11 de Julho, quando uma equipa conjunta das direcções provinciais de Agricultura e Turismo se fez ao local para intimar os gestores do complexo no sentido destes abandonarem as instalações num prazo de cinco dias, contados a partir daquela data.
Equivocados com a situação, os gestores do complexo tentaram contactar, sem sucesso, o governo de Gaza, para que este explicasse as motivações daquela decisão, sobretudo numa altura em que o processo está a seguir os seus trâmites legais junto aos Tribunais Supremo e Administrativo.
Na sua argumentação, as nossas fontes disseram que, os gestores de La Perla tentaram convencer as autoridades governamentais de Gaza de que ao praticar aqueles actos estavam a entrar em ilegalidades, factos condenados num regime de Estado de Direito. Ademais, dizem as nossas fontes que as ordens de execução do acto do governador deveriam vir do Tribunal, que é a instância competente para dirimir o litígio, e não do Governo por ser a parte interessada e por este ter também um processo a correr no Tribunal Supremo pelo facto do TJPG ter chumbado o seu pedido.
Contudo, contra todas as expectativas na manhã da sexta-feira, 15 de Julho, o complexo La Perla foi invadido por um contingente policial fortemente armado. Ao que apurámos, a acção das autoridades governamentais ficou a dever-se a investigação que o SAVANA estava a desenvolver sobre esta intricada matéria.
Compostos por forças de Intervenção Rápida (FIR) e da polícia da protecção, os homens da lei e ordem acompanhavam os técnicos da Agricultura e Turismo que se fizeram ao local com ordens de despejar todas as pessoas que se encontravam no recinto, trocar fechaduras das casas lá existentes e barrar o acesso às instalações.
Para tal, as autoridades governamentais deram um prazo de 24 horas aos trabalhadores do complexo para que retirassem das 13 casas todos os bens lá existentes e que depois disso, mais ninguém podia aceder as instalações. O complexo ficou a guarda da força conjunta da FIR e de protecção movimentada a partir da cidade de Xai-Xai.
Até às primeiras horas da manhã do sábado, os trabalhadores do complexo estavam engajados na retirada de bens. Disseram-nos que estavam naquela operação a mais de 24 horas, sem descanso e muito menos uma refeição.
Aliás, os agentes policiais escalados para a operação também se queixavam das condições em que se encontravam.
Disseram-nos que estavam nos seus postos de trabalho como é habitual quando foram surpreendidos com a informação superior de que deviam se deslocar ao distrito de Bilene para uma operação. Na altura em que o SAVANA escalou o referido complexo, os agentes estavam há mais de 24 horas desprovidos de meios de higiene pessoal, roupas alternativas entre outros bens essenciais. Consta-nos ainda que para se alimentar, em alguns momentos tiveram que recorrer aos bens alimentícios dos proprietários das casas que estavam a ser encerradas.
Augusto Mula, gerente do complexo, foi uma das pessoas que conversou com o SAVANA a cerca do “filme” que estava a ser exibido pelos agentes da Polícia da República de Moçambique. Mula disse-nos que não via a razão do governo de Gaza movimentar aquele contingente, a partir de Xai-Xai (dista a 94 quilómetros) na medida em que não havia nada que pudesse pôr em causa a integridade dos funcionários.
A preocupação de Mula na altura prendia-se com o facto das autoridades terem ordenado a retirada de bens das casas para o relento sabendo-se que parte das coisas são sensíveis e o risco de furtos era enorme.
“Se bem que eles queriam nos retirar deste local tudo bem. Eles tem todo o poder porque têm força. Mas deviam deixar as coisas que estão dentro das casas mesmo que as mantenha trancadas e dar tempo aos respectivos donos para vir remover os seus bens com calma”, disse acrescentando que todas as casas que se encontravam, dentro do complexo não eram da pertença da sociedade em virtude desta as ter vendido a particulares. Ou seja, os donos das casas arcaram com as consequências por tabela, mas não são parte do litígio.
Arrogância das autoridades
No passado dia 14 de Julho a reportagem do SAVANA deslocou-se à cidade de Xai-Xai mais concretamente nas direcções provinciais de Turismo e de Agricultura de Gaza. Na direcção do Turismo o nosso jornal foi informado que o director, Roque Silva, tinha se deslocado ao distrito de Chibuto no quadro dos preparativos da recepção da Primeira dama, Maria da Luz Guebuza que esta semana visita a província.
Já na direcção da Agricultura, o secretário do director disse que este andava ocupado mas que podia nos receber mais tarde. Ficámos até a hora combinada mas o director, Ernesto Paulino, nunca mais teve tempo para nos receber. O secretário agendou o encontro para dia seguinte mas, para a nossa infelicidade o director estava também ocupado.
Na manhã do Sábado voltámos à província e na estância em alusão encontrámo-nos com os dois titulares (Agricultura e Turismo). Tentámos junto destas figuras obter os contornos do processo que culminou com o despejo do La Perla. Entretanto, nenhum dos dois dirigentes aceitou explicar as reais circunstâncias da acção de despejo. Mesmo com várias insistências feitas pela nossa reportagem, os dois dirigentes apenas disseram que não tinham nada a comentar sobre o assunto.
Atitudes estranhas
A atitude arrogante do governo de Gaza, bem como o desprezo às instancias judiciais são entendidos por algumas correntes do meio forense e político gazense como sendo estranhas.
Aliás, o facto da parcela em causa se localizar numa zona nobre e privilegiada da praia de Bilene tem despertado muita cobiça da parte de vários meios influentes na política moçambicana. Basta dizer que o complexo La Perla localiza-se a menos de 100 metros da luxuosa mansão do presidente da República, Armando Guebuza e ao lado do complexo Humula II, um grupo hoteleiro com fortes ligações à família do então presidente da República, Joaquim Chissano.
Nesta guerra, as pessoas próximas do assunto questionam também o silêncio de Belmiro Malate, já que este faz parte da sociedade com 50% das acções. Dizem que não se percebe que seja Abraham Bruwer sozinho a “lutar” com as autoridades à busca da razão e o outro sócio se manter calado.
“Estou fora da sociedade”, Belmiro Malate
Na tarde desta quarta-feira, o SAVANA contactou a partir de Maputo, o embaixador de Moçambique no Japão, Belmiro Malate tendo este nos dito que está desligado do seu sócio há mais de sete anos.
De acordo com Malate, a cisão entre ele e o seu sócio, na sociedade À Pérola Lda, começa a desenhar-se na altura em que saiu de Moçambique. Malate precisou que o seu companheiro no negócio, apercebendo-se da sua ausência do país, protagonizou um conjunto de actos que violam a legislação moçambicana.
A partir do estrangeiro onde se encontrava em missão de serviço, Malate diz que tentou persuadir o seu sócio no sentido deste respeitar a legislação moçambicana mas este ignorou-o.
“Para não ser confundido com os actos do meu sócio optei por me desligar do projecto. Ainda não formalizei a cisão porque o meu sócio nunca quis colaborar”, disse acrescentando que sempre que está em Moçambique de férias este desaparece de circulação e nunca cria condições para se encontrarem.
Sobre a revogação do DUAT o nosso interlocutor referiu que soube de terceiros porém, nada podia fazer por não ser o seu carácter compactuar com questões que chocam com a lei.
SAVANA – 22.07.2011