QUEM circula pelas rodovias da zona de cimento da cidade do Maputo desconhece, certamente, o submundo existente por detrás da maioria dos edifícios altos da nossa capital. Trata-se de um mundo caracterizado por uma vida pouco conhecida e, aparentemente, longe da atenção das autoridades. Na verdade, a parte traseira da maioria dos edifícios da zona de cimento da cidade do Maputo é uma verdadeira terra de ninguém. São zonas que, pela sua localização, não podem ser visitadas normalmente por pessoas que circulam pelas avenidas da capital.
Mas, além das partes partilhadas, existem infra-estruturas independentes dos prédios e sob jurisdição das autoridades responsáveis pelas edificações. Porém, nota dominante em todos esses locais é o abandono a que estão sujeitos. Assim, no lugar de espaços limpos e típicos de uma cidade-capital, temos lixo e ruínas que, nalguns casos, albergam pessoas de conduta duvidosa.
Das infra-estruturas aproveitadas encontramos, regra geral, estabelecimentos comerciais, cuja exploração é feita à luz de acordos duvidosos.
E foram as ruínas entre as avenidas 25 de Setembro e Samora Machel que chamaram a nossa atenção para iniciar a presente Reportagem. Eram cerca das 10.00 horas da manhã. Embora tomados pelo medo, entrámos pelos escombros do edifício Marta da Cruz e Tavares. O cheiro é nauseabundo, sinal de muito lixo, fezes, urina e material diverso em decomposição.
Entre as ruínas, três rapazes dialogam sentados nas pedras. E foi com eles que a conversa iniciou. Aproximámo-nos, ao mesmo tempo que vigiávamos a nossa retaguarda e os lados, pois a qualquer momento podíamos ser assaltados. Tudo porque na zona só entram, maioritariamente, marginais e lá se escondem, quando perseguidos pela Polícia ou por qualquer cidadão.
“Eu chamo-me Ito Elias Rodrigues. Tenho 14 anos e estou aqui desde semana passada. Abandonei a casa porque a minha madrasta me maltratava”, conta o rapaz. História semelhante contou-nos Alfredo Armando, 13 anos de idade, que há muito não vive com os seus pai, segundo contou.
De acordo com as palavras dos adolescentes, a vida ali tem sido dura. Porém, na sua opinião, o sofrimento é menor relativamente ao que passavam nas suas próprias famílias.
“Mal eu comia. Ninguém me defendia. Em casa levava bofetadas sem motivos plausíveis. Sentia-me forçado e violado”, palavras de Ito, uma criança que certamente precisa de orientação dos mais velhos.
Aliás, no seu rosto vêem-se hematomas e feridas. O mesmo se diga dos outros meninos. Rostos pesados, sem brio, sem esperança. São sequelas da vida duvidosa que os rapazes levam na rua e podem carregar pelo resto da vida. Como que a sustentar esta constatação, durante a conversa estavam sempre cabisbaixos. Enquanto a conversa decorria apareceu do interior das ruínas um jovem com cerca de 18 anos de idade.
“Bom dia, nós somos jornalistas, só queremos conhecer este local e conversar convosco”, assim nos dirigimos ao jovem, em jeito de autodefesa, pois nada garantia a nossa segurança ali.
Quando se aproximou, qual foi o nosso espanto: é um dos jovens que habitualmente se encontra no Mercado Central a apoiar no carregamento de produtos aos que ali fazem compras.
“Sim, eu vivo aqui há cerca de um mês. Somos muitos aqui e cada um tem o seu local”, disse o jovem, que se escusou a revelar o seu nome.
Mas a surpresa ainda estava por vir: Mais para o interior deparámo-nos com uma jovem, por sinal namorada do adolescente. No meio daquele cheiro nauseabundo lá estava ela a cozinhar. “Temos um filho juntos. A vida é dura por isso estamos aqui”, palavras da rapariga, quando convidada a explicar a razão da sua presença naquelas ruínas.
Na zona da Malhangalene, a maioria das infra-estruturas que se localizam por detrás dos prédios é constituída por casotas que acolhem gente de várias origens e condutas. Muitos destes espaços estão longe dos olhos da sociedade. À calada da noite, parte destes espaços acolhem sessões de autênticas orgias com bebedeira à mistura promovidas por jovens, na sua maioria adolescentes que consomem drogas.

(A. Marrengula)
Associação de condomínios sente-se lesada e ignorada
A Associação dos Condóminos, na voz da respectiva presidente, Carolina Menezes, tudo fez para que os espaços comuns não fossem abandonados ou alienados a privados em prejuízo da maioria dos moradores dos prédios.
Conforme explicou, parte dos espaços comuns dos condomínios foi privatizada, o que bloqueou a intervenção da sua agremiação. “As infra-estruturas que se encontram por detrás dos prédios são comuns para os moradores, embora não todos. Por causa disso não deviam ser privatizadas. Aliás, nós lutamos para evitar as privatizações mas, como devem imaginar, a nossa intervenção é limitada”, disse ela.
Todavia, Carolina Menezes entende que parte dos desmandos podem ser evitados caso entre em vigor a lei que obrigue aos moradores dos prédios a contribuírem para a manutenção dos edifícios, no que for comum. É que, presentemente, as pessoas pagam quando assim entendem, o que não devia ser.
“Desde sempre defendemos a criação de um regulamento sobre o pagamento dos espaços comuns pelos moradores dos prédios, mas isso não está a acontecer”, lamentou a fonte.
Aliás, porque as autoridades não têm sabido ouvir e implementar o que a associação recomenda, muitas comissões de moradores estão desfeitas na cidade do Maputo. “Muitos moradores já não consideram o que temos dito, pois são promessas atrás de promessas. A falta de cumprimento é resultado da pouca resposta que nós temos recebido das autoridades. Este cenário deve mudar”, apelou Carolina Menezes.
Legislação desactualizada
O negócio das infra-estruturas que se encontram na parte traseira dos imóveis da cidade do Maputo tem sido feito à margem das normas vigentes. A maioria dos edifícios está em regime de propriedade horizontal. Assim sendo, as obras e a alienação das partes autónomas e comuns não devem ser feitas ao gosto dos cidadãos.
As obras de reparação nas fracções autónomas devem ser feitas mediante uma aprovação, em assembleia, por pelo menos 2/3 dos votos da assembleia de condóminos, sem prejuízo da autorização pelo município. A assembleia de condomínios, de igual modo, é chamada à colaboração nas obras em fracções comuns. Porém, em muitos casos não temos assembleias de condóminos nos edifícios em causa. De igual modo, a autorização junto do Conselho Municipal não tem sido respeitada, conforme preconiza o Regulamento do Regime Jurídico do Condomínio, aprovado pelo Decreto nº 53/99, de 8 de Setembro.
O Código do Notariado, aprovado pelo Decreto-lei nº 4/2006, de 23 de Agosto, determina, no seu artigo 85, que se “devem celebrar por escritura pública, além de outros especialmente previstos na lei: a) Os actos que importem reconhecimento, constituição, aquisição, modificação, divisão ou extinção dos direitos de propriedade, usufruto, isso e habitação, enfiteuse, superfície ou de servidão sobre coisas imóveis”. Este comando legal tem sido ignorado, o que em parte resulta do facto de estar desactualizado.

(A. Marrengula)
Município está atento
A situação dos espaços em causa tem merecido a atenção do Conselho Municipal da Cidade do Maputo. De acordo com José Nichols, vereador e director da área de Infra-estruturas na edilidade, há sensivelmente sete anos chegou-se a desenhar uma política para manter a ordem nas referidas infra-estruturas e de outra natureza. Todavia, o mesmo foi abandonado, pois um outro instrumento similar estava a ser elaborado a nível do Ministério das Obras Públicas e Habitação (MOPH).
“Sabemos que o documento em questão chegou a ser aprovado pelo Conselho de Ministros e encaminhado à Assembleia da República. Contudo, neste último órgão foi reprovado”, disse Nichols.
No caso das ruínas formadas por obras inacabadas ou abandonadas de carácter particular, Nichols explicou que, à luz da legislação sobre licença de obras particulares e inacabadas pouco pode ser feito porque esta norma não apresenta prazos para a conclusão das obras iniciadas.
Na esfera da mesma problemática, está em revisão o Regulamento do Regime Jurídico do Condomínio. Espera-se que o novo texto jurídico traga uma obrigatoriedade sobre o cumprimento dos prazos de conclusão das obras particulares e outras questões que abrem espaço para irregularidades.
Relativamente aos espaços comuns, a fonte revelou que o seu sector tem sido chamado para dirimir conflitos resultantes de alienação deste tipo de infra-estruturas. Significa que, de facto, têm sido feitos negócios clandestinos na área.
No que tange ao prédio Marta da Cruz e Tavares, o vereador disse que o proprietário submeteu um documento solicitando a sua reabilitação. O pedido foi aceite, o que significa que os marginais não mais terão espaço naquele local.
Presentemente, a cidade do Maputo conta com mais de 3500 imóveis. dos quais cerca de 1000 têm mais de cinco andares. Destes prédios, apenas 212 estão organizados em regime de condomínio.
- Arsénio Manhice