O FALECIDO Presidente Samora Machel soube agregar o conhecimento de todos os quadros, tanto durante a luta de libertação nacional por ele dirigida como depois da independência.
Co-orador da palestra “Samora Machel e a construção do Estado”, promovido pelo comité local do Sindicato Nacional de Jornalistas a nível da Sociedade do Notícias, José Óscar Monteiro afirmou que o malogrado Chefe do Estado, desde logo, interiorizou e assumiu que o Estado devia estar ao serviço do povo. Nesta perspectiva, os servidores do Estado deviam guiar-se pela competência e não pelo nepotismo.
Segundo José Monteiro, o ser titular de um órgão do Estado não significa que se é dono do poder. “Samora tomou o seu nacionalismo, o seu amor pelos outros, a necessidade de construir o Estado que estivesse ao serviço do povo. Mas construir o Estado, construir uma administração pública como vimos e confirmo nem sempre funciona como a gente quer. A questão da competência. Há uma frase de Samora que diz que o incompetente bloqueia o desenvolvimento dos seus colegas. Portanto, nós devemos ter no Estado as pessoas mais competentes”, disse.
José Óscar Monteiro recorreu a uma frase proferida por um dirigente brasileiro, segundo a qual “não se é ministro, mas sim está-se ministro”, em alusão ao mandato que serve no exercício do cargo. Disse que um dos princípios republicanos é a limitação de mandatos, para que o poder não se concentre numa determinada pessoa.
“Os detentores de cargos são antes de mais os servidores da causa pública. Por isso devem-se comportar com humildade. E esta batalha é permanente. Quando nós estamos numa posição de autoridade temos de exercer o poder com confiança. Nós não gostamos de ter dirigentes que hesitam, que duvidam. Os dirigentes têm de nos dar a certeza, mas eles só podem a ter se forem competentes, estudar e, ao mesmo tempo, saber ter o seu momento de humildade”, afirmou.
Um dos grandes momentos de Samora Machel, segundo José Óscar Monteiro, foi quando ele soube pegar no legado de Eduardo Mondlane. Disse que o primeiro Presidente da Frente de Libertação de Moçambique possuía uma capacidade de diálogo fora do comum.
José Óscar Monteiro disse que Samora Machel, Joaquim Chissano e outros da época souberam ir buscar os conhecimentos que não tinham junto de duas fontes, designadamente daqueles que os tinham e dos que aparentemente pouco sabiam.
Afirmou que se o povo moçambicano conseguiu sobreviver é porque possui ciência, possui sabedoria. “No princípio, a gente precisava de fazer certas coisas, mas não sabia como. Sabíamos que era preciso. Então dissemos: vamos falar com o nosso povo, para ouvir dele qual é a opinião. Aqui está a frase de Samora que eu li: a decisão. No conteúdo, a decisão serve as massas. Na forma, foi (a decisão) tomada em conjunto com elas. Iria mais longe. É que desta forma a Frelimo, que era, vamos dizer, de 50 guerrilheiros mais talvez 120, 130, 200 ou 500 quadros, conseguiu tornar-se num exército imenso, porque foi buscar os conhecimentos de todos, catalizar os conhecimentos de todos. E essa capacidade de valorizar, de catalisar, é o que, essencialmente, caracterizou Samora”, disse.
José Óscar Monteiro afirmou que em todas as fases Samora Machel demonstrou preocupação com o funcionamento do Estado. O Estado devia servir o povo. A segunda preocupação era a competência, o rigor e a disciplina no Estado. A terceira preocupação era que todos progredissem no desempenho das suas funções. O país devia crescer, sabendo apreender.
Disse haver estudos e orientações que foram produzidos pelo movimento de libertação sobre vários temas, dentre os quais a produção, educação, saúde, emancipação da mulher e, sobretudo, a organização do poder.
Contou que no Liceu Salazar (hoje Escola Secundária Josina Machel) havia dois negros, nomeadamente Joaquim Chissano e Pascoal Mocumbi. O Liceu Salazar era o único público da colónia portuguesa em Moçambique.
“Quando a gente olha para esta sala e vê milhares ou boas centenas de alunos secundários, veremos quão importante é a escola. E o título da obra de Samora Machel sobre esta matéria chamava-se fazer da escola uma base para o povo tomar o poder”, disse.
Citando os escritos do malogrado Chefe do Estado, afirmou que as escolas deviam ser a frente do combate enérgico e consciente contra o analfabetismo, a ignorância e o obscurantismo. Deviam ser centros para a eliminação da mentalidade colonial capitalistas e dos aspectos negativos da mentalidade tradicional.
Nas escolas deviam ser combatidos a superstição, o individualismo, o egoísmo, o elitismo e a ambição. Nas escolas não devia haver lugar à discriminação social, racial ou na base do sexo. As massas deviam ter acesso ao poder nas escolas, na universidade e na cultura.
“O que é que isso liga a escola com o Estado? Parece que a escola é uma coisa e o Estado, o poder, é outra coisa. O Estado não tem nada a ver com escolas? Tem. E porque é que o Estado tem alguma coisa a ver com escolas? Sem escolas públicas, sem o Estado, seria possível todos vocês frequentarem o ensino secundário?”, questionou aos estudantes presentes no debate.
Para José Óscar Monteiro, a educação do país é uma responsabilidade pública. Nenhum país avança, se só uma minoria tiver acesso à escola. A luta pela libertação nacional, a conquista do poder do Estado foi um instrumento para que este pudesse providenciar o ensino a todos.
“A declaração universal dos direitos do homem e do cidadão diz que os homens nascem livres e iguais em direitos. Eu creio que não. Eu creio que os homens nascem profundamente desiguais. Porque herdam as desigualdades que vêm do passado. Agora, a declaração tem um grande valor. Diz que os homens devem ser todos iguais e a escola é o instrumento que permite o cidadão ter acesso à igualdade de oportunidades na sociedade”, disse, realçando que o Estado é uma entidade extremamente importante na vida dos cidadãos, porque é o redutor das desigualdades.
É por isso que, segundo José Óscar Monteiro, a tomada do poder é uma questão fundamental na vida dos cidadãos e na experiência de Samora Machel.
Afirmou que Samora Machel e Eduardo Mondlane representaram a geração que disse que era preciso tomar conta do poder, derrubar o regime português.
“Samora dizia que não podemos fundar um Estado popular, com as suas leis, com a sua máquina administrativa a partir de um Estado cujas leis e a máquina administrativa foram inteiramente concebidas pelos exploradores para os servir. Não é governando com o Estado concebido para oprimir as massas que se pode servir as massas. As nossas decisões devem ser sempre democráticas no conteúdo e na forma”, anotou.
José Óscar Monteiro afirmou que quando foi adoptado o sistema multipartidário em 1990 não se fez qualquer coisa que estivesse fora da visão de Samora Machel sobre a evolução do Estado.
O auditório da Matola esteve cheio
Samora fixava tudo
O antigo Chefe do Estado moçambicano, Joaquim Chissano, que se encarregou das notas introdutórias do tema, enalteceu as qualidades e a personalidade de Samora Machel, bem como a sua obra, afirmando que descobriu a necessidade de libertar Moçambique, depois de ter constatado o sofrimento dos moçambicanos e também a situação que se vivia noutros países africanos.
“Decidiu juntar-se à luta de libertação nacional, que era dirigida pelo Presidente Eduardo Mondlane. Quando Samora Machel chegou a Dar-es-Salaam (Tanzania) foi-lhe dada a escolha entre continuar os estudos e ir para os treinos militares. Ele escolheu ir para a formação militar, para depois se juntar à frente de combate. Ele dirigiu a frente durante muito tempo, até à morte do Presidente Mondlane em 1969. Em 1970 foi escolhido presidente da Frente de Libertação de Moçambique. Conduziu a luta até à independência nacional. Constituiu o primeiro Estado moçambicano. Dirigiu a elaboração da primeira Constituição moçambicana e lançou as bases para a reconstrução e o próprio desenvolvimento do país com sucesso”, disse.
Joaquim Chissano afirmou que, devido a vários factores, incluindo as dificuldades que existiam a nível mundial e a guerra de desestabilização, a economia moçambicana começou a abrandar. Mudanças na correlação de forças ditaram a necessidade de revisão das estratégias de gestão do país e Samora Machel foi decisivo no processo, sobretudo nos anos 80 até à sua morte.
“Adaptações da nossa maneira de fazer as coisas estavam a ser conduzidas por Samora Machel”, disse.
Joaquim Chissano contou que teve a oportunidade de conhecer pessoalmente Samora Machel quando este era praticante de enfermagem no actual Hospital Central do Maputo. Disse que o malogrado Presidente da República era uma pessoa de conversa, de gargalhada, sorriso rasgado. Gostava de jogar dama. Era dotado de raciocínio rápido e gostava de praticar boxe.
“Eu conheci Samora Machel que tinha capacidade de fixar tudo o que lhe dissessem. Era um bom aluno de enfermagem”, disse, acrescentando que, no bairro da Mafalala onde vivia, andava de camisa branca e estojo que continha equipamento de trabalho.
“Eu conheci Samora Machel a passear pela Mafalala. Ele passava pela minha casa”, disse.
Segundo Joaquim Chissano, já naquela altura, Samora Machel tinha desenvolvido o espírito anti-racista.
Em Dar-es-Salaam, depois da morte de Eduardo Mondlane, Samora Machel chegou a recusar assumir a liderança da Frente.
“Samora não tinha ambição de ser presidente. Foi-nos incumbida a missão de convencê-lo para ser presidente. Falámos com ele e ele chorou. Não queria ser presidente”, contou Joaquim Chissano.
Entretanto, o secretário do comité local do Sindicato Nacional de Jornalistas na Sociedade do Notícias, Salomão António, afirmou que a palestra sobre Samora Machel marcava o início de uma série de actividades que serão levadas a cabo durante o exercício do seu mandato.
Por seu turno, o administrador delegado da Sociedade do Notícias, Augusto Matine, destacou a importância do debate no ano dedicado a Samora Machel. O debate teve lugar no Auditório do Município da Matola e contou com a presença da Governadora provincial do Maputo, Maria Jonas, do Presidente do Conselho Municipal da Cidade da Matola, Arão Nhancale, do Presidente da Assembleia Provincial, Osório Soto, entre outras destacadas figuras.