Lázaro Mabunda
Querido camarada Samora! Sou estranho para ti. Com razão. Quando morreste, eu ainda estava nas matas do posto administrativo de Nalaze, distrito de Guijá. Tinha apenas 10 anos e poucos meses. Mas isso não interessa. O que interessa é o que te quero confidenciar. Ora, o que te quero transmitir é que, anteontem, festejámos efusivamente a tua morte. São 25 anos. Cantámos, dançámos, comemos e bebemos. Tínhamos convidados de luxo: Keneth Kaunda, Seretse Iam Khama, Robert Mugabe, Dilma Rousseff, Jacob Zuma, entre outros. As principais cadeias televisivas transmitiram a mega-festa da tua morte em directo. E mais: no passado dia 29 de Setembro, organizámos uma grande festa do teu aniversário. Eram 78 anos de vida que completavas. Festas do teu aniversário e da tua morte são coisas ímpares. Os teus camaradas demonstram o quão te amam. Não é fácil celebrar aniversário dum morto. Daqui a dois anos, prepararemos uma mega-cerimónia, quando completares 80 anos.
O que me entristece é que, anualmente, as festas da tua morte são celebradas com os mesmos discursos: “os que mataram Samora serão encontrados” ou “devemos viver dos ideais de Samora”. Acontece que os que deviam explicar a tua morte estão a morrer um por um, sem deixar as pistas que nos possam levar a seguir os tais criminosos. Os arquivos da tua morte estão a ser queimados pelo tempo, estão a expirar o prazo. Dentro de duas décadas, ficaremos sem nenhuma pista. Isto leva-me a crer que a tua morte foi organizada interna e externamente.
Quando são questionados sobre as circunstâncias da tua morte, respondem que a tua morte é um enigma. É igual a de Kennedy, de Olof Palm e a de outras grandes figuras. Por seres uma grande figura, não se pode esclarecer as circunstâncias da tua morte nem revelar os que te mataram. É o que pude subentender.
Ficámos a saber, agora, que, no dia da tua morte, os aviões caças, que te deviam receber à entrada do país, não levantaram voo. Ninguém consegue explicar porquê. Dizem que deve ter havido negligência de pilotos, mas o que sabemos é que os pilotos obedecem a um comando. Não levantam o voo sem uma voz que os ordene. Ficámos a saber que houve um problema que não se consegue explicar com o homem da torre de controlo do Aeroporto de Maputo. Essa pessoa existe, porém, não se diz onde ela mora. Está algures. E nunca ouvimos que foi ouvido pela Comissão de Inquérito. Passam 25 anos. Igualmente, nunca ouvimos que os pilotos de caças foram ouvidos para explicar por que razão não levantaram o voo e quem os terá ordenado para que não o fizesse. Sabemos também que o teu governo não estava na tua delegação. Baldou. Pura coincidência.
Excelência, os teus camaradas imortalizaram-te em estátuas e dizem que devemos viver dos teus ideais. No entanto, eles não dão exemplo. Aqueles teus conselhos - "queremos chamar atenção ainda sobre um aspecto fundamental: a necessidade de os dirigentes viverem de acordo com a política da Frelimo, a exigência de, no seu comportamento, representarem os sacrifícios consentidos pelas massas” e “o poder, as facilidades que rodeiam os governantes podem corromper o homem mais firme” - caíram em saco roto. Por isso, não querem viver modestamente com o povo, fazem da tarefa recebida um privilégio e um meio de acumular bens ou distribuir favores. O sistema de vida que estavas a destruir – corrupção material, moral e ideológica, o suborno, a busca do conforto, as cunhas, o nepotismo, isto é, os favores na base de amizade e, em particular, dar preferência nos empregos aos seus familiares, amigos ou a gente da sua região – foi reconstruído.
Os teus camaradas ex-socialistas, além dos salários chorudos por serem dirigentes, são proprietários de quase todas as empresas, são administradores, PCA das empresas públicas e simultaneamente deputados, têm direito a um carro protocolar, um carro de afectação e um carro para levar a família (filhos para escola e mulher para o mercado). São capitalistas puros.
O teu lema segundo o qual “os dirigentes devem ser os primeiros no sacrifício e os últimos no benefício” foi invertido. Agora é: “Os dirigentes devem ser os primeiros nos benefícios e os últimos no sacrifício”.
Tem razão a tua filha quando diz que, se ressuscitasses, morrias no minuto seguinte. É que Moçambique é como uma casa com apenas a base – fundação – e o tecto, sem paredes e vigas para suportar a estrutura toda. Quer dizer, está constituído por um grupinho de ricos, no topo (tecto) e de uma maioria pobre (na base). Não temos uma classe média que possa servir de elo e de intermediação nos conflitos entre o topo e a base – ricos e pobres. As tais paredes e vigas. Podemos falar de estabilidade?
Até Setembro e Outubro do próximo ano, quando festejarmos mais um ano da tua vida e da tua morte, respectivamente.
O PAÍS – 21.10.2011