“E assim a conversa flui. Solta das amarras das formalidades, da vergonha de pedir e da vaidade de emprestar. O fermentado corre para dessedentar e relaxar disfarçadas tensões. Recordam-se aí histórias de um passado de estabilidade, das chuvas que caíam generosas, comedidas e na altura apropriada; das culturas que se empertigavam verdes e sadias nas machambas, e das colheitas fartas. Esse foi o tempo em que todos eram amigos e bons vizinhos.” - In Aldino Muianga, “A Rosa de Kariacó”, O Domador de Burros e outros Contos (2003), p. 66
“Porque neste assunto complicado do progresso parece haver duas saídas apenas: ou negá-lo e afundarmo-nos em inútil obstinação, ou deixarmo-nos embarcar em veloz aventura, como quem perde o pé em correntes de águas perigosas, e se deixa ir. Tomé Nhaca, conhecido pela sua sageza, resistiu à vaidade da primeira atitude e à ingenuidade da segunda, escolhendo um terceiro caminho, muito próprio”. - In João Paulo Borges Coelho, “Verdadeiros próprios”, Índicos Indícios II. Meridião (2005), pp. 112, 113
“Buzueque tomou posse, logo depois da cerimónia fúnebre de seu avó, que, segundo a sua vontade, foi sepultado junto ao embondeiro. Tornou-se o régulo mais novo de toda a região. Com apenas vinte e um anos, fora incumbido da difícil missão de dirigir os seus semelhantes, reconstruir a aldeia e libertar o espírito de seu avô.” - In Alex Dau, “Reclusos do tempo”, Reclusos do Tempo, (2009), p. 36
“Auscultava o silêncio que celebrava os catorze anos de vida conjugal. Orgulhava-se da mulher que conheceu no Inhambane natal. Tinha ela quinze anos quando o pai dela a coagiu. Tinha de se casar. Como é que uma mulher ousa ficar grávida antes do casamento?! Ruaaa!... – embirrava o pai. Já chefe de família, Zuzé, sonhava, delirava, prometia futuro, martelando a solução: partir!... Não, cidade não – reagia Khudzi, prudente.” - In Clemente Bata, “A promessa”, Retratos do Instante (2010), p. 47
Uma das bandeiras vigorosamente hasteadas pela modernidade prende-se com o triunfo associado da razão e da subjectividade. O pensamento moderno determinaria que, para o conhecimento, a única autoridade a considerar deveria ser a razão, vista como um valor apriorístico do homem, e por isso inata, imutável e universal. Em nome quer da razão quer da afirmação do sujeito, dimensões que a modernidade se encarregou de conciliar, foram superadas, parcial ou globalmente, crenças e convicções que sustentaram, sobretudo no Ocidente, o devir milenar da humanidade.
Expressão da possibilidade de autoconsciência e de auto-superação, a ideia de um sujeito autónomo em si mesmo, tributária do cartesianismo e consolidando-se em Kant e Rousseau, colocaria a autogestão do sujeito no uso pleno da liberdade através da faculdade da razão.
Por outro lado, essa mesma modernidade sustenta que a autonomia moral do sujeito, em contraponto aos constrangimentos do meio envolvente e agindo dentro da razão e da consciência, decorre do exercício pleno da virtude. A lógica moderna faz assim apologia de um sujeito emancipado, livre, superior, correcto e virtuoso. Trata-se, por conseguinte de um sujeito enredado na sua própria identidade e numa racionalidade que guia todas as suas acções quer para controlar o mundo quer para a sua auto-consciência e realização pessoal, uma das maiores aspirações do homem moderno.
Contudo, o século XIX se encarregaria de perturbar esta ordem a vários títulos dominante não só através da névoa de suspeição lançada por alguns espíritos inconformados (Marx, Nietzsche, Freud) em relação ao despotismo da razão, como também por efeito de profundas transformações sociopolíticas (descentramento do mundo com a autonomia de outras nações fora da Europa) e epistemológicas que, no essencial, concorreriam para abalar significativamente o logocentrismo ocidental.
Por sua vez, a primeira metade do século XX reforçaria o questionamento da universalidade da razão e do sujeito quer do ponto de vista filosófico (o existencialismo heideggeriano e sartriano), político (as duas grandes guerras e os seus efeitos), estético (os movimentos da vanguarda modernista), científico (a lei de relatividade de Einstein e as teorias probabilísticas), etc.
Finalmente, enquanto se agudizava, no Ocidente, o conflito entre o indivíduo e sociedade, outras racionalidades iam gradualmente adquirindo visibilidade e legitimidade. Isto, por impulso, entre outros, das interpelações etnográficas de Levi-Strauss, negando a centralidade da civilização e da cultura ocidental, e do arremedo desconstrucionista de Jacques Derrida, com a apologia da interpretação dada a contingência do ser e da linguagem, bem como das realizações do imaginário que iam fluindo do Oriente, da América Latina e do continente africano. E, aqui, destaque especial deve ser dado à literatura africana que, enquanto expressão de outras racionalidades e de reinvenção do sujeito, amplia e aprofunda o próprio sentido da humanidade.
Literaturas africanas: espaço de outras racionalidades ou a racionalidade do Outro
Enquanto fenómeno de escrita e por terem nascido do contexto de dominação colonial, as literaturas africanas encerram, em si, um dilema estruturante, isto é, colocam em questionamento os fundamentos que concorreram para a sua própria constituição. Referimo-nos tanto à integridade da língua em que se manifestam, como aos valores originais ou residuais que ela veicula enquanto emanação de um imaginário logocêntrico e hegemónico, bem como de toda uma tradição estética profundamente incrustada nos referidos valores e imaginário.
De forma mais ou menos intensa, mais ou menos dramática, reconhecem-se, no âmbito global dessas mesmas literaturas, ambivalências estruturais que, dependendo das circunstâncias históricas e espaciais, apresentam configurações particulares.
Desde às origens até aos nossos dias, o impulso de superação do dilema, isto é de validação da sua condição de ser outro, diferente, vai-se colocando de forma mais ou menos manifesta, mais ou menos premente. Isto é, procurando abdicar de componentes estruturantes do lugar de apropriação, a afirmação de alteridade, perante aquelas que eram as referências e os valores dominantes, irá traduzir-se em múltiplas e variadas estratégias textuais: apelo a referências locais, deliberadas transgressões linguísticas, colagens marcadas em relação à realidade, amplificação do manancial dos recursos estilísticos, projecção de novos mitos, etc.
Daí que para o sul-africano Michael Chapman (2003: 6), as literaturas africanas sem nunca ficarem diminuídas enquanto actos culturais, actos artísticos, são também actos políticos. Os textos literários, na sua diversidade e heterogeneidade, mantêm, metonímica e metaforicamente, um diálogo fundamental com o contexto que, entretanto, apresenta vicissitudes determinadas durante e depois da presença colonial em África.
Será, porém, nas confrontações entre um sentido individual e um sentido colectivo de existência onde o dilema, ou as tentativas de o superar ou contornar nas suas múltiplas expressões, adquire contornos profundamente marcantes e desafiadores.
É assim que, por um lado, a nível da enunciação, o sujeito se debate, voluntária ou involuntariamente, entre projectar a sua subjectividade, ou perseguir o sentido de pertença a uma comunidade, real ou imaginária. Por outro lado, no espaço de representação, sobretudo a nível da narrativa, as personagens e tudo que as envolve traduzem as irresoluções relativas à coabitação, dentro e fora delas, de dois mundos e de duas ordens que oram coabitam, ora se entrechocam. Isto é, o primado do subjectivo ou do colectivo prefigura sempre uma específica visão do mundo.
É, pois, nesta conformidade, que vemos, muitas vezes, a memória, histórica ou intemporal, emergir como garante da superação do impasse entre ordens simbólicas e existenciais desencontradas, entre mundos distintos e entre dimensões temporais disjuntivas. E aí, desenha-se, enquanto espaço de possibilidades indeterminadas, toda uma racionalidade que, na sua plenitude, é atinente com uma territorialização estética e identitária.
A narrativa moçambicana: o individual e o comunitário
Os quatro excertos que apresentamos, no início desta comunicação, permitem-nos vislumbrar algumas tendências da literatura moçambicana concomitantes com os elementos temáticos que servem de mote à reflexão que aqui desenvolvemos. Isto é, o modo como, por um lado, são representados os percursos individuais das personagens diante de uma ordem global a que denominamos “comunidade” e, por outro, os movimentos conflituantes e conciliatórios que entre eles se estabelecem.
É assim que, enquanto em “Verdadeiros propósitos” de Borges Coelho se destaca a opção individual por parte de Tomé Nhaca sobre a ordem instituída e as expectativas colectivas que lhe estão subjacentes, no conto de Alex Dau, “Reclusos do tempo”, o protagonista, Buzueque, anula a sua individualidade diante do que se impõe como prioritário para a comunidade, ao assumir a missão de “dirigir os seus semelhantes, reconstruir a aldeia e libertar o espírito do seu avô” (p. 35).
Em relação ao último caso, onde o enfoque claramente se situa na valorização de uma cultura de matriz tradicional, o passado é respeitado e os símbolos são valorizados por conterem e perpetuarem a experiência de gerações. Segundo Anthony Giddens (1995: 30), a tradição é um modo de integrar o controlo reflexivo da acção na organização espácio-temporal da comunidade.
É, por conseguinte, um meio de lidar com o tempo e o espaço, que insere cada actividade ou experiência particulares na continuidade do passado, presente e futuro, sendo estes, por sua vez, estruturados por práticas sociais recorrentes. Neste caso, as práticas são verdadeiros exercícios ritualísticos, onde a preservação dos valores da comunidade transcende ou desencoraja decisões individuais.
É, entretanto, na tensão entre o individual e o comunitário que se adensam os enredos desenhados, por exemplo, por Clemente Bata, no conto “A promessa”. Neste, encontramos como que um duplo rompimento com a dimensão comunitária. O primeiro acontece quando Zuzé decide levar Khudzi, com quem acabara de casar-se, para viver na cidade contrapondo-se à vontade da mulher, que queria permanecer no Inhambane natal, espaço vivencial claramente imerso numa lógica comunitária e na garantia do conforto e da segurança que essa mesma lógica assegurava.
O segundo rompimento verifica-se quando Khudzi, já na cidade, decide arranjar emprego, contra a vontade do “chefe de família”. Enquanto referencial de estabilidade e enquanto núcleo comunitário, por excelência, a família recém-constituída de Zuzé entra num processo irreversível de desagregação que atinge, no final, dimensões trágicas pelas intensas sugestões deixadas pelo narrador, de Khudzi estar a prostituir-se para salvar essa mesma família.
De uma ferocidade irónica, “A promessa” parece explorar, por um lado, a incomunicabilidade entre duas ordens, a rural e urbana, ou, se quisermos, entre a tradição e a modernidade, como que fazendo eco da constatação de Alain Touraine (1998: 13) de que quanto mais moderna é uma sociedade, quanto mais apela à razão, menos suporta o peso da tradição. Isto é, são ordens que apesar de estarem lado a lado parecem manter uma incompatibilidade muitas vezes intransponível.
Por outro lado, o desfecho dramático da narrativa abre-se a uma alegórica possibilidade de a aspiração individual estar voltada ao fracasso. Como explica Zygmunt Bauman (1998: 234), os indivíduos modernos estão “sentenciados” a uma existência de escolha, e a escolha recria, pensamos nós, inevitavelmente o mito de Prometeu: entre o sabor voluptuoso da liberdade e o ónus excruciante da responsabilização individual.
* Comunicação apresentada no IV Encontro de Professores de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, realizado entre 8 e 11 de Novembro de 2010, em Ouro Preto, Brasil.- Francisco Noa