Depoimento do Coronel Comando Ribeiro da Fonseca.
In: Manuel Amaro Bernardo. “Combater em Moçambique; Guerra e Descolonização; 1964-1975”. Pp 367/371. Lisboa, Ed. Prefácio, 2003.
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Atritos com civis e autoridade religiosa
Quando estacionei em Vila Cabral conheci várias pessoas. O Eng.º Madureira, o senhor Brás da Costa, pai de um camarada nosso que, depois do 25 de Abril, foi adido militar em Lourenço Marques, e D. Eurico Dias Nogueira, Bispo da Diocese.
Nas várias operações apanhámos, por três vezes, documentos interessantes. As normas em vigor impunham que os entregasse no Comando de Sector. Procedi dessa maneira nas duas primeiras vezes mas, à terceira, antes de o fazer, tirei fotocópias e entreguei-as ao Inspector Gonçalves Dias, da PIDE local. Eram cartas dirigidas pela FRELIMO ao Bispo de Vila Cabral, ao Eng.º Madureira e ao “machambeiro” Brás da Costa (possuía uma machamba a 5 kms da cidade). Os endereços utilizados eram: para o Bispo – Exm.º Senhor BX; para o Brás da Costa – Senhor X; e para a sua mulher, a “querida mãezinha da luta revolucionária”. Quanto ao Eng.º Madureira, pelo que se constava, teria havido problemas com ele na Índia, de onde viera “meio deportado”. (6)
Encontrava-se igualmente, em Vila Cabral, um indivíduo chamado Mouta e que seria um agente técnico da Junta Autónoma da Estradas, com quem eu me relacionava muito bem. Assim, ao fim da terceira vez ter apreendido documentos, que comprometiam as referidas pessoas com elementos da FRELIMO e pelo facto de, quando ia e vinha do mato encontrar normalmente, na pousada local, o sr. Brás da Costa, mato esse onde arriscava a vida dos homens que comandava, entendi haver ali algo que não jogava bem. Um dia, na pousada, estava a comentar esta situação quando se aproximou o Brás da Costa, com um sorriso na cara. Então virei-me para ele e disse-lhe: “Olhe, vá-se rindo e pode continuar a rir-se até ao dia em que você tenha o azar de eu entrar em Vila Cabral, com um soldado meu, às costas, morto. Pois pode ter a certeza de que enterro o meu soldado, mas enterro também a si, no mesmo sítio. Espeto-lhe um tiro e limpo-o”. Houve um desaguisado e a conversa ficou por ali.
Aquele Mouta, que noutra comissão vim encontrar em Bissau, era um grande brincalhão e em determinado dia foi almoçar comigo, tendo feito o convite para jantar com ele na pousada. Quando lá cheguei, qual não foi o meu espanto ao ver o Eng.º Madureira, que estava sentado na sua mesa, dar um salto da cadeira e fugir pela porta da cozinha, ficando o Mouta a rir-se a “bandeiras despregadas”. Sem perceber o que se passava, quanto mais lhe perguntava mais ele se ria. Finalmente, descreveu o sucedido. Na altura em que entrei, estava a contar ao engenheiro, na brincadeira, que almoçara comigo. “Porquê ?”, perguntava o engenheiro. “Porque o alferes vinha para aqui à tua procura, pois queria matar-te e ia enterrar a ti e mais o Bispo no mesmo buraco”.
Soube depois que o Eng.º Madureira fugiu aterrorizado para casa do Bispo, e foi contar, a D. Eurico, haver um alferes que o queria matar e que, de seguida, o mataria igualmente a ele (Bispo) para os enterrar no mesmo buraco. Só que eu não tinha nada a ver com aquela história, pois foi uma pura invenção do Mouta que, como grande brincalhão, resolveu dizer aquela patranha.
O Bispo ficou também receoso, indo de seguida fazer queixa ao Brigadeiro Leitão, Comandante de Sector, dizendo haver um alferes que os queria matar. Levanta-se um grande burburinho na cidade, sendo chamado ao Sector. Segundo o que me disseram já no barco, quando regressava à metrópole, terá havido uma grande movimentação de militares, desde o Comandante de Macaloge até ao meu grupo de combate, que foi para o quartel armar-se e ficar em stand-buy, para ver o que me sucedia.
Aquele oficial perguntou-me o que se passava. Respondi: ”Já por três vezes apreendemos documentos que comprometem o Eng.º Madureira, o Brás da Costa e o Bispo de Vila Cabral, em ligações com os “turras” e eu pergunto ao meu brigadeiro como é. Se nós andamos no mato a arriscar a vida dos nossos homens e quando chego a Vila Cabral ainda sou obrigado a fazer-lhe uma continência?”. Comentário dele, bastante incomodado: “Vou pôr cobro a isto”. Mandou-me, depois, embora. Fiz-lhe a continência e saí. A mim nunca mais ninguém me aborreceu.
Soube-se que o General Augusto dos Santos, Comandante da Região Militar, se deslocou a Vila Cabral, talvez para levar por diante a minha prisão. Só que a maior parte dos chefes militares locais, como o Ten- -Coronel Palma, do Batalhão de Vila Cabral, o Brigadeiro Leitão, o então Coronel Melo Egídio, Governador do Distrito, e o Inspector da PIDE, Gonçalves Dias, saíram todos em minha defesa.
Devem ter chegado à conclusão de que já era tempo de pôr cobro a tais entendimentos com a FRELIMO. O Bispo terá ido passar um mês de férias à Beira, enquanto o Eng.º Madureira foi transferido.
Entretanto, em Dezembro, mandaram-me para a fronteira fazer uma espera aos “turras”, que vinham batidos pela polícia malawiana. Tal actuação, na minha opinião, devia ser feita pela tropa de quadrícula. Enquanto isso, tinham sido recolhidas notícias credíveis sobre a base existente a norte de Vila Cabral, com um “turra” capturado e indicado pela PIDE, com um objectivo concreto, com os nomes dos elementos da FRELIMO e os números das armas, etc. Nós queríamos lá ir e não o permitiram.
Então resolvi acabar com aquela guerra. Como já tinham chegado várias mensagens da minha companhia a mandar-me regressar, fiz as malas e segui para o Nairoto, em Cabo Delgado, onde ela se encontrava.
Em fins de 1968, antes do regresso à metrópole, ainda fui para o Destacamento do Muirite, junto ao Rio Messalo, na estrada de Nairoto para Mueda. Tinham implantado destacamentos de pelotão ao longo do rio. Atacaram todos os postos à excepção do de Muirite. A FRELIMO foi rebentando com os destacamentos, um a seguir a outro.
Tenho uma colecção de fotografias, tiradas à entrada e à saída 54 dias depois, onde se nota bem a diferença das instalações.
Recordo ainda uma história verídica ocorrida alguns anos antes com o “famoso” Capitão Gaspar, de Artilharia, que julgo estivesse na Mutamba dos Macondes, com a sua companhia. Iam mandando avançar com os seus pelotões para os destacamentos. Quando lhe deram ordem para avançar o 4.º pelotão e, na perspectiva de ficar sem tropa, no comando, remeteu uma mensagem para o Quartel General nestes termos:” Solicito a VEXA que envie com urgência 40 guardas-nocturnos, a fim de manter a segurança do aquartelamento. Siga a Marinha. Beijinhos do Gaspar.”
Contam-se imensas histórias sobre este Capitão Gaspar (já falecido). (7)
No rescaldo dos incidentes de Vila Cabral
Depois desta comissão cheguei à metrópole talvez em Junho de 1969. Julgo que antes de ser chamado ao Tribunal de Mafra, recebi um telefonema do João Alarcão (Carvalho Branco), que fora alferes miliciano de Administração Militar, em Vila Cabral, mas acompanhava (clandestinamente), por vezes, com a sua máquina de filmar, as nossas operações no mato. Ele deverá ter acabado a comissão seis meses depois de mim. Quando chegou à metrópole, um dia telefonou-me e disse: “Olha, puseram uma bomba ao Brás da Costa e ele ficou sem as mãos”.
Mais tarde, em determinado dia, encontrando-me na EPI, com o posto de tenente, recebi um postal do Tribunal para ir prestar declarações. Quando lá cheguei e interrogando sobre qual era o assunto, disse-me um funcionário: “Isto é uma coisa muito grave!”. Eu que não tinha feito mal a ninguém, perguntei:”Grave, porquê?”. Resposta dele: ”É por causa de uma bomba!”
Relacionei então com o telefonema anterior. O homem lá pôs o papel na máquina de escrever e, de vez em quando, perguntava-me: “O senhor quer mesmo que eu escreva isto?”
E lá relatei a minha versão com os respectivos nomes, incluindo o de D. Eurico. Mas fiquei um tanto furioso com aquela situação, pois sabia que apenas existia um grupo a levar por diante tal atentado, já que não estava a ver qualquer militar metido naquilo.
Então saí rapidamente do Tribunal e dirigi-me ao gabinete do comandante, a quem relatei sucintamente o sucedido. Disse-lhe que queria ir à PIDE, sendo de imediato autorizado para o efeito.
Cheguei à porta do edifício sede da PIDE, na Rua António Maria Cardoso, onde nunca entrara, e fui recebido por um indivíduo à civil. Quando lhe disse querer falar com um inspector, por causa de uma bomba em Vila Cabral, abriu logo a porta e disse: “Faz favor”.
Apareceu então um inspector, cujo nome não recordo, a quem me identifiquei e perguntei se me conhecia. Resposta dele: “Conheço-o muito bem, pois sou eu que recebo toda a correspondência de Moçambique.”
Disse-lhe: “Então ainda bem. É da maneira que o senhor sabe perfeitamente que não tenho nada a ver com a bomba e não estar bem disposto por ter acabado de vir do Tribunal de Mafra, acusado de ser bombista”.
Entrei para um gabinete, onde estivemos a conversar e às tantas afirmou: ”Você não se importe com isso. Como ninguém prova coisa nenhuma, no fim ainda pode levantar um processo por difamação e recebe uma indemnização”.
Resposta: “Eu não quero indemnização nenhuma, mas vocês sabem perfeitamente que não fui o autor de tal atentado e até sei quem foi”.
“Então quem foi?” perguntou ele. Respondi: ”Foram vocês. Eu é que não fui”. E ficou assim a conversa... O que tinha acontecido? Puseram uma armadilha no rolo de uma revista e mandaram-na pelo correio a partir da Rodésia, via Beira, com destino a Vila Cabral.
Curiosamente, mais tarde, encontrando-me em Lamego a formar a Companhia de Comandos, para avançar para a comissão da Guiné, encontrei o dono da pousada, o sr. Oliveira, todo marcado na cara com os estilhaços da bomba. Ele veio-me falar e perguntei o que sucedera, não relacionando tal com o incidente em causa. Perguntou: ”Então o senhor tenente não se lembra?”. Disse: “Eu não”. Acrescentou ele: “Foi por causa da bomba do Brás da Costa”. Replico: “Mas olhe que não fui eu!”.
Ele finalizou:”Eu também sei que não foi”. E referiu-me os pormenores do sucedido. No entanto, soube que o Brás da Costa, nas suas declarações, disse desconfiar de um tal Alferes Fonseca da 4.ª C. Cmds...
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Notas:
(1) Depoimento retirado de entrevista em 3-12-2002, em Lisboa. Este oficial, que fora meu instruendo no CISMI, em Tavira, fez mais uma comissão na Guiné, no comando da 35.ª C. Cmds, e entre outras condecorações, foi-lhe atribuída a Torre Espada do Valor, Lealdade e Mérito.
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(6) Em Lourenço Marques, perante os amigos, gaba-se de ser simpatizante do PCP.
(7) Salgueiro Maia considerou este oficial como figura central do seu livro Capitão de Abril – Histórias da Guerra do Ultramar e do 25 de Abril. Lisboa, Editorial Notícias, 1997.
Veja http://macua.blogs.com/moambique_para_todos/2011/09/manuel-braz-da-costa.html