EDITORIAL
Na Manhiça, a menos de cem quilómetros de Maputo onde está a sede do Governo, o Fórum de Mulheres Rurais denunciou este mês que o próprio governo usurpa terras de camponeses e usa a Força de Intervenção Rápida (FIR) para reprimir os camponeses que exigem suas terras de volta. Concretamente foi acusado o Fundo de Fomento de Habitação (FFH) de ter usurpado terras aos camponeses de um povoado, próximo da Açucareira da Maragra, no distrito da Manhiça, a cerca de 80 quilómetros a norte da capital do país. Foi acusado o governo de estar a patrocinar maus-tratos a camponeses a quem as terras estão a ser retiradas. E também a organizações da sociedade civil que têm aparecido a defender os prejudicados e indignados.
Os próprios prejudicados acusam o governo de ter usado um contingente policial, constituído pela Força de Intervenção Rápida (FIR), Polícia de Protecção (PRM) e agentes do Serviço de Informação e Segurança do Estado (SISE), para abortar uma manifestação pacífica. Dizem que espancaram camponeses que exigiam a tomada de medidas imediatas para travar acções de pessoas e empresas com interesse no lucro e na riqueza.
Os camponeses reafirmam não ter armas para se defender e dizem que neste momento o que querem é que o Governo distrital lhes atribua, sem muita burocracia, os Direitos de Uso e Aproveitamento da Terra, DUATs.
Este episódio repete-se em várias partes do País. Constitucionalmente a terra pertence ao Estado para alegadamente se proteger os direitos adquiridos, mas, mesmo assim, estas coisas sucedem.
Começa a haver necessidade de se questionar se de facto o Estado ainda pode ser visto como a entidade protectora dos direitos dos cidadãos.
Num país onde o Estado é para servir os cidadãos, em que aos cidadãos são reconhecidos direitos iguais nos termos dessa mesma Constituição, como é que os cidadãos podem defender-se da usurpação de terras?
Num País onde a terra pertence ao Estado e o Estado atribui o Direito de Uso e Aproveitamento da Terra (DUAT), o que é que o Estado já fez para que todos os seus cidadãos tenham os seus direitos reconhecidos e protegidos quando estas coisas continuam a suceder sem apelo?
O Cadastro nacional de terra continua a não estar acessível ao público de forma transparente. Apenas continua disponível a um certo tipo de cidadãos, que usa as suas prorrogativas nesse mesmo Estado para se irem servindo a eles próprios.
O facto da terra ser constitucionalmente propriedade do Estado enquanto se assiste a usurpações, não sendo o cadastro nacional de terras público, impede que se veja onde está de facto a razão quando há conflito de terras.
Assaltar o poder para se ter depois acesso a grandes porções de terra continua a ser um projecto interessante enquanto a terra for do Estado.
O acesso a concessões de terra é uma das muitas razões que faz com que o poder seja assaltado. Quem está no Poder quer não quer o poder para servir mas para ser servido. É o que se está a ver!...
O poder político e o aparelho administrativo do Estado têm estado a ser usados por variadas figuras investidas de autoridade do Estado para se irem enchendo de concessões de terra em nome pessoal e de seus parentes e empresas associadas, passando isso muitas vezes pela usurpação a seus utentes, actuais ou consuetudinários.
Na “Reunião de Quadros” que o partido Frelimo promoveu recentemente na Matola voltou-se a defender a continuidade da terra como propriedade do Estado. O secretário da Frelimo para a Mobilização e Propaganda, Edson Macuácua, já veio a público anunciar que a Frelimo quer manter a terra como propriedade do Estado no processo de revisão da constituição em curso.
Quando se ouvem vozes da sociedade civil apelar para que o Estado não permita o assalto a quem adquiriu direitos por ocupação de boa fé, os representantes do Estado, entretanto, ou se mantêm mudos ou se atiram sobre os prejudicados com forças policiais fortemente armadas e usando força desproporcional.
A certos utentes da terra não são, entretanto, concedidos DUAT’s (Direito de Uso e Aproveitamento de Terra) por eles alegadamente desconhecerem os procedimentos para sua obtenção, como está a ser o caso reportado da Manhiça.
Ficam por isso vulneráveis aos “abutres”…
Entretanto, a Banca queixa-se de não financiar a agricultura por falta de garantias reais. Têm passado a mensagem de que se a terra servisse como garantia, o cenário poder-se-ia alterar. Ganharia a agricultura. Mas aí os camponeses e muitos outros milhões de moçambicanos deixariam de precisar dos “papás” para cuidarem das suas terras “para que não as vendam”, “para que não alienem a nossa soberania”, como se tem ouvido os altos dignitários do Estado dizer.
No fim de contas os que com a verdade nos enganam, como o provam os factos e as denúncias que se vão ouvindo um pouco por todo o País, tal como a da Manhiça. Com camponeses e com tantos outros cidadãos…
Os senhores no poder de Estado servem-se de amplas áreas de terra para si próprios, seus familiares e amigos, e continuam com as grandes negociatas com essas mesmas terras. Ficariam com o negócio estragado se a terra pudesse ser livremente vendida e comprada pelo mais simples cidadão por quem dizem agir em defesa da soberania.
O Estado com a terra livre para ser transaccionada, nunca deixaria de a poder nacionalizar, em caso de interesse público, mas sendo a terra do Estado, o negócio de alguns está mais à mão, e é isso que se começa a perceber.
Com o poder nas suas mãos quem o tem usa e abusa dele para fins pessoais.
Percebe-se melhor de onde lhes vem o “patriotismo” quando se ouvem as denúncias dos que vivem da terra, como se ouviu na Manhiça.
Com a conversa de que “os camponeses na sua ignorância” (…) “alienariam a nossa soberania”, vão eles, os senhores eternos à frente da governação e das instituições públicas, alienando a terra. É mais fácil alienar a terra usando o poder do Estado, do que estar no Estado apenas para o gerir cabendo aos cidadãos livremente cuidarem dos seus negócios de terra, tal como dos outros.
Os serviços de geografia e cadastro, entretanto, mantêm fechado o cadastro de terras. Só alguns têm o direito de saber onde há terra disponível para empreender.
O direito que o Estado reserva a todos os cidadãos acaba por estar nas mãos de uns quantos senhores que controlam inclusivamente o ministério público e os tribunais, o suficiente para que todo o tipo de falcatruas encontre sempre a devida protecção.
Tanta confidencialidade apenas permite que os detentores do poder político, a coberto da autoridade que o Estado tem, sendo a terra propriedade do Estado, e sendo eles gestores do Estado, reservem a si próprios o direito pessoal de atribuírem a terra a eles próprios e a quem um bom negócio lhes proporcione.
Corrupção é que está a dar, ou não será!?...
O poder de Estado permite-lhes manipularem o acesso à terra a seu bel-prazer…
Não admira que as ditas elites continuem a defender que a terra deve continuar a ser propriedade do Estado enquanto o Estado continuar a ser como que propriedade privada de um grupinho de pessoas que se julgam com direitos históricos por terem sobrevivido à luta de libertação nacional.
Aqueles que ao mesmo tempo defendem que a terra continue a ser propriedade do Estado encontraríamos facilmente como os grandes latifundiários do país, se e quando o cadastro fosse público.
O que estará a impedir que o que é do Estado e está atribuído a alguém para uso e aproveitamento não possa ser conhecido por quem desejar conhecê-lo?
Encontraríamos desde presidentes a magistrados como grande latifundiários: “é ou não é?”...
Quando se fala em transparência governativa, não se deve falar do cadastro de terras? Porquê? Receiam que nos mostre quantos “patos escondidos com rabo de fora” existem?
Receiam que nos permita ver até onde chega a hipocrisia dos novos latifundiários que continuam a defender a terra como propriedade do Estado enquanto eles próprios a vendem usando o poder de Estado?
Canal de Moçambique – 26.10.2011