Barnabé Lucas Ncomo
Seria bom – julgamos nós – que as emoções de alguns não resvalem em insultos à inteligência de outros moçambicanos. Isso obrigaria a que se chame para a tribuna pública outras testemunhas, de entre os quais também alguns mortos, combatentes da primeira hora na luta de libertação nacional a partir de Tanzania, tais como o Francisco Cufa, o Lino Abraão, o Lourenço Mutaca e muitos outros que, por sinal, eram também zambezianos de gema como o próprio Bonifácio Gruveta, que caíram na desgraça por consequência da brutalidade e da cobardia de homens como Bonifácio Gruveta e de outros que, hoje, graças a exclusão a que os novos tempos os sujeitam na distribuição do bolo na “manada humana” a que sempre pertenceram por vontade própria, despertam para a realidade amarga e crua em que se mergulharam.
Lamento ter que escrever isto num momento em que o sangue nas veias de Gruveta ainda não secou, exactamente num momento em que o seu corpo acaba de descer à terra. É o preço da imprudência de alguns que fazem da comunicação social televisiva, da imprensa escrita, do Facebook e de alguns sites da Internet locais de orgias de insultos. Não estaria aqui.
Importa imiscuirmo-nos nas emoções que a morte do major-general Bonifacio Gruveta Massamba levantou no seio de algumas pessoas neste país. Não o faríamos se tais emoções se situassem apenas do lado dos históricos camaradas do finado, e da sua família em particular.
Outras vozes se fizeram presentes no exaltar da “compaixão” que caracterizou o finado em vida. Entre soluços e lamentações se recorreu até à figura do malogrado Dr. David Alone para testificar “a bondade” e “a humanidade” heróica do morto.
Julgamos que é preciso respeitar os mortos, sim senhor, mesmo que em vida tenham sido torcionários! Mas endeusá-los pode chocar suas vítimas, estejam estas vivas ou mortas. Há pessoas a quem, simplesmente, se deve inclinar a cabeça perante os seus cadáveres, e pedir que descansem em paz. O ir para além disso pode conduzir a grosserias do tamanho do mundo e a insultos à inteligência de muitos.
Que alguns dos ilustres que proclamaram a independência de Moçambique tenham tido alguma compaixão para com quem tenha tido o azar de cair-lhes nas mãos, a ponto de livrar este ou aqueloutro da forca durante a época em que tais ilustres assassinavam a seu bel-prazer, não se nega. Mas isso não os transforma em homens bondosos, e nem os exime da responsabilidade sobre as vidas tiradas aos que não tinham quem por eles intercedesse nos tempos da dança macabra imposta por esses ilustres.
Neste momento de dor pela morte física de quem se permitiu, por opção, de forma voluntária e em consciência, pactuar com o pior das maldades humanas, é preciso virarmo-nos para o nosso interior e reflectir. A morte não se trata de brincadeira nenhuma. É dura, embora para alguns seja dura apenas quando lhes invade o tecto. Alguns dirão: “outros é que mandavam matar, Gruveta não concordava, até salvou do Dr. David Alone!”.
Que seja! Mas, e os outros, a quem ele permitiu seu fuzilamento, liderando até tal acção em praça pública, eram menos pessoas do que o Dr. Alone, ou simplesmente fê-lo porque aqueles não tinham diplomas que lhes conferisse o estatuto de gente? Mesmo que admita que tais assassinados em público haviam cometido algum crime de sangue, ficou sempre por desvendar os tribunais que os julgaram e as condições de defesa que se lhes foram proporcionadas.
Nenhumas, que saiba!...
Há um facto que importa compartilhar com outros cidadãos deste país: Em algumas circunstâncias, existe alguma semelhança de objectivos entre os “assassinos em nome dum Estado” e os “assassinos vulgares” quando estes dão de bandeja o que outros não têm. Tal objectivo repousa sempre nos benefícios que advêm como contrapartida da sua aparente benevolência para com outros seres humanos.
Os assassinos de que estamos aqui a falar são pessoas que acidentalmente fazem bem a alguns na esperança de angariarem aliados.
Moldam as consciências das pessoas para que os ajudem a varrer para debaixo do tapete o sangue de suas vítimas. Tais pessoas, por eles beneficiadas, estão proibidas de cuspir-lhes na memória, mesmo que estes estejam a par das atrocidades praticadas pelo benevolente. O custo benefício é sempre a formatação mental dos beneficiados, que devem saber relevar as acções criminosas protagonizadas “acidentalmente” pelo benevolente no decurso da luta pelo bem-estar na vida, elevando para o patamar de heroísmo apenas as acções de beneficência que o assassino benevolente lhes proporcionou. O contrário seria uma ingratidão imperdoável.
Dado que as mortes dos inocentes assassinados transformam-se sempre no quinhão que permite aos beneficiados saírem da desgraça em que estão mergulhados, estes, nada mais de bom têm a fazer senão fechar os olhos aos crimes de sangue que o seu benevolente comete. Testemunhar, em praça pública, sobre os benefícios adquiridos na hora da sentença fúnebre daquele, é a marca que caracteriza o espectáculo da relação entre o benfeitor morto e as suas vítimas de esmola. Os beneficiados de circunstância, transformam então suas vozes, de órfãos desmamados, num todo o país; numa toda a Zambézia: “Ele era boa pessoa; “Preocupava-se com o desenvolvimento da Zambézia; “Dava apoio a toda a gente; etc., etc”. Como se o favor a si proporcionado pelo torcionário de ontem tivesse resolvido o problema de todos outros moçambicanos à sua volta!?...
De seguida, os beneficiados não tardam a exigir que se erga na sua cidade uma estátua, bem enorme, do seu herói, para que todos passem então a venerá-lo.
Tivemos também o privilégio de conhecer o Dr. David Alone, a tal figura que se exuma, e se destaca, para fundamentar a “humanidade” manifesta de quem em contrapartida permitiu a morte de milhares de outros fora dos tribunais.
Com ele (David Alone), também privámos, tendo-nos posto ao corrente das suas peripécias da vida e da mágoa que transportava na alma. Não é verdade que morria de amores pelo finado de hoje a ponto de conjecturar homenageá-lo em obra escrita. Alone conhecia a pele de lobo que o seu salvador de circunstância vestia.
Mas o problema não se reduz a isso: Invocar-se o nome duma ilustre figura como o Dr. Alone para testemunhar em defesa de quem “se vinha de gozo” pela dor de outrem sem ter em conta que aquele Doutor teve apenas a sorte de encontrá-lo num momento em que alguma lucidez lhe invadia o cérebro, pode conduzir a situações extremas de análise, o que não se pretende neste momento em que as atenções de muitos estão viradas para a consolidação e desenvolvimento da instituição democrática no país.
Seria bom – julgamos nós – que as emoções de alguns não resvalem em insultos a inteligência de outros moçambicanos. Isso obrigaria a que se chame para a tribuna pública outras testemunhas, de entre os quais também alguns mortos, combatentes da primeira hora na luta de libertação nacional a partir de Tanzânia, tais como o Francisco Cufa, o Lino Abraão, o Lourenço Mutaca e muitos outros que, por sinal, eram também zambezianos de gema como o próprio Bonifácio Gruveta, que caíram na desgraça por consequência da brutalidade e da cobardia de homens como Bonifácio Gruveta e de outros que, hoje, graças a exclusão a que os novos tempos os sujeitam na distribuição do bolo na “manada humana” a que sempre pertenceram por vontade própria, despertam para a realidade amarga e crua em que se mergulharam.
Está claro que enquanto naquela “manada” se lhes garantia o quinhão por direito de participação efectiva nas tramas contra as vidas de outros cidadãos, tudo estava bom. Agora que se entrou na fase histórica de “cada um por si, Deus por todos” descobrem os nossos heróicos senhores que não têm poder nenhum, “foram simplesmente usados por outros” e é preciso denunciá-lo aos irmãos, a quem ontem se virou as costas.
Muitos destes senhores, da verdade absoluta de ontem, como o finado de que se fala, já rendidos, proporcionam-nos um espectáculo absolutamente espantoso. No leito da morte, assumem-se já como islâmicos ou bons cristãos depois de terem pactuado na destruição das vidas de outros seres humanos em nome do “pensamento comum” e da “inexistência de Deus”. Num divórcio que aparenta ser todo ele contencioso, recusam-se que seus corpos se juntem a de seus camaradas no mausoléu que juntos construíram para si próprios nos tempos áureos da unidade de pensamento.
Numa atitude que caracteriza a sina dos homens pequenos, apartam-se de tudo na esperança de quebrar os corações dos da casa, na esperança de que estes venham em socorro do irmão em apuros.
O que repugna nesta história toda é que há gente que cai na cilada. Acham que todos os moçambicanos devem sentir pena dum homem “que tudo fez para nos libertar do colonialismo português”, mas que já não é suficientemente valorizado. Exige-se então que todos nós descubramos as mágoas do defunto nos últimos anos de sua vida (mágoas eventualmente confessadas em privado com próximos), e que passemos então, todos, a acreditar que o homem foi usado e descartado, por ser de lá e não de cá, como se todos nós tivéssemos culpa que alguns nasçam com vocação congénita de serem usados!
É preciso que reflictamos: Bonifácio Gruveta não foi usado por ninguém. Fazia parte de um todo que jamais se preocupou com o desenvolvimento nem dos zambezianos, nem dos quelimanenses quaisquer como se procura propalar por aqui. Ele e seus camaradas na FRELIMO preocuparam-se, sim, foi com o seu desenvolvimento pessoal.
É verdade que Gruveta lutou contra um sistema condenável para libertar o país e seus concidadãos, não o negamos. Contudo, Gruveta está entre os históricos da FRELIMO que não foram honestos connosco. Se tivesse dito aos moçambicanos que longe de “libertar o homem e a terra” a missão que o movia resumia-se à continuação da opressão em substituição do colonialismo português, talvez muitos não o tivessem seguido. Porque decidiram de livre e espontânea vontade instituir um sistema sanguinário no país. Ninguém os mandou fazer o que fizeram.
Cansados de matar às escondidas como o fazia o colonialismo português, Bonifácio Gruveta e seus camaradas acabaram, eles mesmos, instituindo o que o próprio colonialismo português se esqueceu de instituir oficialmente em Moçambique: a pena capital.
Embora se louve a iniciativa de luta empreendida por Gruveta contra o colonialismo português, não deixa de ser verdade que longe de libertar acabou por transformar, por iniciativa própria e de seus camaradas todos os moçambicanos em escravos do seu pensamento. Mandava matar todos aqueles que não concordassem com ele e seus camaradas, imputando a esses crimes sem sequer conduzi-los aos tribunais para serem julgados. Nos tempos áureos do seu “bem-estar político e social” a lei era ele e seus camaradas.
As pessoas resistiram, uns de armas na mão, outros por outras vias, acabando por ganhar a batalha, vencendo-o a ele e a seus camaradas. É este o quadro real que alguns procuram esquecer.
Não somos contra os que se beneficiaram da “sua bondade” em vida; aqueles que por mão dele conseguiram coisas que a maioria não conseguia. Somos contra aqueles que, na sua pobre inocência, insultam outros, transformando a amizade pessoal que os ligava ao finado Gruveta em tábua de limpeza onde se procura escorrer o sangue dos que por iniciativa dele, e de seus camaradas, morreram.
Gostaríamos que ao chorarem seus mortos “bondosos”, os familiares, amigos e camaradas o fizessem no silêncio dos seus seres, sem precisarem de ferir a sensibilidade de outros. Porque os familiares, amigos e camaradas do “bondoso morto” da Zambézia, não são, por si sós, todos os moçambicanos ou todos os zambezianos. Há zambezianos e muitos outros moçambicanos que foram enlutados pela acção voluntária do homem cujos feitos positivos, direccionados apenas a alguns, se generalizam a todos os zambezianos.
Lamentamos ter que escrever isto num momento em que o sangue nas veias de Gruveta ainda não secou, exactamente num momento em que o seu corpo acaba de descer à terra. É o preço da imprudência de alguns que fazem da comunicação social televisiva, da imprensa escrita, do Facebook e de alguns sites da Internet, locais de orgias de insultos. Não estaríamos aqui.
Com o mundo cheio de torcionários benevolentes, só nos falta um dia vir a público alguém a exigir que se eleve ao estatuto de “grande benevolente” o assassino
(escondido – diga-se de passagem) de Siba Siba Macuacua e outros mais, simplesmente porque um dia se beneficiaram de algo desse assassino. Porque tal como os heróicos assassinos da República moçambicana de ontem, que bondosamente não se cansavam de dar apoio, bolsas de estudo e uma mão carinhosa aos que a eles se aproximavam de mão estendida, não espanta que o oculto assassino do malogrado jovem economista esteja hoje também a salvar “alguma humanidade” à sua volta, dentre os quais filhos, sobrinhos, enteados, vizinhos, conterrâneos, etc.
Em jeito de despedida, gostaríamos de inclinar a nossa cabeça e dizer o seguinte: Desejamos que o major-general Gruveta descanse em paz.
Aos Sheiks e Padres atiramos a espinhosa missão de salvar a sua alma: tal como todos, os que vão a Deus de alma aberta, se lhe perdoem os “deslizes pecaminosos” que tenha cometido em vida, pois a ser verdadeira a teoria da sua marginalização e exclusão nos últimos anos da sua vida, fora apenas vítima de si próprio, e daquilo em que acreditou.
Avisos não lhe faltaram.
Gostamos de ver nas suas exéquias fúnebres um dos sonantes filhos de duas das vítimas do regime que ele impôs aos moçambicanos – o Lutero Simango – a inclinar-se perante o seu corpo inerte. A ter que se falar de grandezas humanas, isto é quanto basta: conhecer e viver na essência do termo. Nada obrigava Lutero a estar no funeral dum homem como Bonifácio Gruveta senão o amor ao próximo e à vida.
Canal de Moçambique – 04.10.2011