MOÇAMBIQUE acolheu, logo após a sua independência em 1975 algumas gerações de gente privada de liberdade nos seus países. A história e a actualidade do nosso país inspiraram esses imigrantes a lutar pela sua emancipação, tal como inspirou também a interacção com cidadãos moçambicanos, desde o mais comum aos líderes políticos.
Um desses homens e mulheres que fizeram do nosso país um trampolim para melhor lutarem pelo seu foi o jurista sul-africano Albie Saschs, activista do ANC que se estabeleceu em Maputo durante 11 anos até ao fim do apartheid na África do Sul (1990). Para além de estabelecer com vários moçambicanos relações que ainda hoje perduram, Saschs aprendeu lições de que jamais se esquecerá, pois, tal como muitos sul-africanos da sua geração, forçados ao exílio, sabe que a liberdade de que o seu país hoje desfruta foi também buscada na nossa “zona libertada da humanidade” (assim se referia muitas vezes Samora Machel ao nosso país, no contexto da solidariedade com países dominados por regimes minoritários na região). O sul-africano de que falamos esteve recentemente em Maputo, desta feita para receber um “honoris causa”, outorgado pela Universidade Politécnica. E o “Notícias” entrevistou-o, partilhando, nas linhas que se seguem, excertos dessa conversa em que Saschs partilha o legado que traça de uma época:
- É um dos vários militantes do ANC que durante o apartheid esteve exilado em Moçambique e tem vestígios físicos dessa era, pois num atentado perpetrado por aquele regime perdeu um braço em Maputo. Que memórias pode partilhar, para além das que escreveu em “Soft Vengeance”, sobre os tempos do seu exílio e sobre os passos que a sua geração deu até que fosse erradicado o apartheid?
- Posso dizer muito, mas prefiro destacar um facto importante não só para mim mas para toda a minha geração, que é o facto de o contacto com Moçambique ter sido absolutamente fundamental. Mesmo dentro da África do Sul, naquele tempo, o contacto e o apoio do governo moçambicano e da Frelimo foram uma chave importantíssima para que a África do Sul se tornasse livre. E a inspiração de tudo foi a independência de Moçambique, que levantou a coragem do povo sul-africano. O levantamento do Soweto (16 de Junho de 1976) e outros episódios em que as pessoas começaram a gritar “a luta continua” na África do Sul foram inspirados na trajectória de Moçambique até à sua independência. Essa trajectória e o apoio que o vosso país nos deu, mesmo nos seus momentos mais difíceis, levantaram o espírito combativo do povo sul-africano. É nesse contexto que chegaram muitas pessoas para aqui (Maputo), algumas fugindo da África do Sul para juntarem-se ao nosso movimento de libertação, pois o ANC pode ser assim considerado também. Estar aqui a falar de memórias seria complicado. Não só pelo facto de correr o risco de estar a anunciar uma sucessão de episódios mas por não os poder enquadrar. Na verdade, daquele momento não se pode falar apenas de forma brusca e sucinta, deve-se sim explicar. De qualquer modo, posso salientar que se tratou de uma era importante na história dos dois países e da região como um todo. A amizade entre nós passou muito por aqui.
- A amizade a que se refere, que Nadja Mangheze descreveu como “traída e recuperada”, foi sempre vista de forma linear pelo ANC? Mesmo quando Samora Machel assinou o Acordo de Nkomati?
- Isso foi um facto muito perceptível por nós, embora tenha sido difícil de encarar. Maputo foi um elo indispensável na luta dos sul-africanos. O que aconteceu (a assinatura do Acordo de Nkomati) foi difícil para Moçambique também. Foi doloroso para nós e para os dirigentes moçambicanos ver camaradas do ANC saírem daqui. Eu fiquei, mas doeu-me de repente vê-los partir. Mas eu era membro de um grupo que chegou não como militante, como combatente, mas como cooperante. E os cooperantes chegaram aqui de todo o lado e havia vários. Eu vivi naquela altura na Inglaterra, no exílio, onde eu vivi como exilado, e sempre digo que naquele momento – eu vivi 11 anos na Inglaterra – fizemos muitas coisas positivas. E pessoalmente ganhei o doutoramento, não o honoris causa, mas doutoramento mesmo. Editei vários livros que foram publicados. Era pai de dois filhos, a nível familiar, mas mesmo quando eu estava feliz na Inglaterra sentia-me infeliz. Depois eu passei para Moçambique. E mesmo quando eu estava feliz sentia-me infeliz. Quer dizer, toda a ligação com o país, com a luz, as pessoas, a música, a dança, a política, com a maneira de ser, estava tão impregnada com a personalidade da África Austral, com os problemas da África do Sul, com os nossos problemas. Eu senti-me muito mais vivo, mais activo, e aprendi tanta coisa. Há coisas positivas e também coisas negativas. Foram lições para as utilizar depois na reconstrução da África do Sul.
- O que é que pode destacar dessas lições positivas e negativas?
- Positivas, eu posso dizer que a perspectiva nacional que aproveitava de qualquer contribuição, que qualquer pessoa pode dar independentemente da origem, da cor da pele, etc. O que era importante era ter um certo patriotismo democrático, era o sentimento de ser moçambicano. Moçambique inspira nisso. Os moçambicanos disseram-me naquela altura que não abandonariam a sua própria maneira de ser, porque para ser moçambicano como se tinha que ter valores e saber partilhar com os outros. E fizeram isso. Connosco partilharam muito. Por exemplo, eu comunico em português. É um sinal dessa partilha, como também são sinais as danças, a maneira de ser, etc., que muitos de nós aprenderam aqui. Mas também ensinámos o que tínhamos. É também por isso, por causa dessa história de luta e de partilha, que a África do Sul e Moçambique são unidos. Posso dizer que demos um pouco de nós na contribuição para a criação de uma personalidade moçambicana na sua componente de diversidade. Algo que posso destacar, que extrapola o sentido de tudo para se tornar também em valor cultural, mais do que político, é a atenção que Moçambique deu à emancipação da mulher. Não foi sempre realizada na prática, mas foi importante porque foi sempre pensada. Ainda que em algum sentido tenha sido mais teorizada do que necessariamente seguida…
- Teorizada? Será que se não punha em prática o que se teorizava sobre a emancipação da mulher neste país?
- Bom, o que eu quero dizer é que houve muito esforço para emancipar a mulher moçambicana. Muito! Moçambique é provavelmente uma escola grande nisso. Aliás, em termos objectivos, para a África do Sul foi e continua a ser uma grande escola. Com estes esforços que as lideranças moçambicanas fizeram para emancipar as mulheres moçambicanas, muitas saíram do tipo de dominação do género que era considerado normal antes disso, que em alguns locais ainda se considera normal, coisa que nós já passámos. E foi muito bom trabalhar com pessoas como Gita Honwana, por exemplo. Era uma pessoa brilhante, formidável em todos os sentidos, com bom sentimento, com sentido de humor, com inteligência – sobretudo esta –, coragem, com uma alta personalidade. Muito provavelmente, sem essa visão dos líderes moçambicanos da época em que estivemos aqui a lutar pela liberdade na África do Sul não teríamos aprendido de forma muito directa, de forma muito participada, as lições que aqui aprendemos.
- Já citou, algumas vezes, o que chamou sentido cultural dos moçambicanos. É também uma herança positiva dos seus tempos de militante do ANC em Moçambique?
- … Sim! Era realmente impressionante aqui a atitude para com as artes e cultura. Vou resumir isso a um compatriota vosso, o Malangatana (falecido em Janeiro). Ao invés de se confinar e seguir formalismos, ele era espontâneo a incitar os outros para as danças, cânticos, etc., sem falar do génio que ele não escondia que era o de pintor. Malangatana sempre disse que eu era muito africano. Cantou e dançou e criou o seu próprio centro cultural em Matalana, mas para ensinar à sua comunidade e aos visitantes, principalmente quando se apercebia que estavam por perto imigrantes. Mas não só em Matalana. Em sua casa no bairro do Aeroporto, onde visitei-o algumas vezes, pintava a cantar, interrompendo para dançar. Mas o que cantava? Música tradicional misturada à operas de de Bethoveen, Mozart, ao jazz e à música africana. Esse era o génio moçambicano, como génios são muitos moçambicanos que, espontaneamente, mostrava tudo de cultural que tinha, seja em comícios, seja no centro da cidade e seja nos subúrbios. Para nós, sul-africanos, oprimidos e escondidos, aquilo era o máximo. Quando eu voltei para a África do Sul (já depois do apartheid) havia muito debate sobre o eurocêntrico e afrocêntrico. Mas eu comparava ao que via em Maputo e concluí que aqui sempre foi “peoplecentric”, mesmo tendo um povo diversificado, com origens diversas. Essa experiência serviu para nos iluminarmos com a arte e com a cultura.
- Certamente que algo de negativo lhe terá marcado na sua relação com Moçambique nos tempos em que por cá andou. O que é que não lhe pareceu bem?
- A história é o que ela é por causa dos factos e por causa do tempo. Todos nós temos a nossa história. E essa é uma riqueza que não pode ser posta de parte. Aqui em Moçambique, para mim, o aspecto mais importante, e que faltou, era a necessidade de permitir um sistema multipartidário. Confesso que fiquei muito impressionado quando cheguei pela força da Frelimo e vi que ela era única. Apesar de sozinha, o trabalho que fez em prol do país naquela época foi extraordinário. Ninguém diria que se conseguisse tudo o que se conseguiu naquele tempo, mas conseguiu-se. Este país andou muito acima de muitos em África e não só. Mas mesmo assim, faltava um pluralismo político no país. Talvez não se terão apercebido da sua necessidade, mas era de facto uma necessidade para um mundo que se quer evoluído. O monopartidarismo não foi de todo sustentável. Porquê digo isso? Se não existe lugar para a oposição trabalhar legalmente, a oposição cria as suas oportunidades internacionais. Nós reparamos esse erro e foi uma das coisas que fez com que, ao criarmos a nossa Constituição na África do Sul, olhámos para a necessidade de permitir a diversidade e o pluralismo.
- Que reacções houve no seio de vós, militantes do ANC em Maputo e outros fora de Moçambique, quando Samora Machel assinou o Acordo de Nkomati. Nadja Manghezi refere-se a uma “traição”. Foi linearmente assim lida essa opção de Moçambique no seio do ANC?
- Foi um momento muito duro. Especialmente quando (o Acordo) foi proclamado como uma vitória. Não era vitória, era uma derrota. Eu lembro-me muito bem que Joaquim Chissano, que naquela altura era ministro dos Negócios Estrangeiros, disse que não queriam morrer corajosamente. Isto eu entendi. Isto foi uma derrota, foi um “feedback”, mas talvez fosse inevitável. O que era importante era não arcar o sentimento de decepção que estava muito forte dentro do ANC. Não permitir aquele sentimento, não permitir que se alargasse e criasse mais problemas. A liderança do ANC estava muito correcta nessa leitura, como era necessário não atacar e criticar Moçambique, era necessário entender os problemas que, porque, por si e depois de ter feito muito por nós, Moçambique nunca decidiria de ânimo leve abandonar um barco que ajudou a construir. A história tem destas coisas, deixa os factos acontecerem para depois os explicar. Para o caso concreto da nossa relação com Moçambique nada está beliscado, porque, entendemos, não foi fácil tomar aquela decisão, pois o país estava a caminhar mais depressa para o abismo também por causa da coragem que teve em nos apoiar.
- Os sul-africanos entenderam naquele momento ou depois?
- O mais importante é que entenderam. A liderança do ANC, mais do que a maioria dos militantes, foi a primeira a entender.
- O que ficou em si depois daquele dia de 1988, em que perdeu o braço e a visão num dos olhos?- Já escrevi um livro inteiro sobre isso (“Soft Vengeance”), por isso não gostaria de me alongar nisso. De qualquer forma, eu lembro-me muito bem do momento de saída. Quando eu cheguei pela primeira vez em Moçambique, eu vi um militar com a sua arma, senti-me cheio de medo, 11 anos depois quando saí, vi um militar assim. Não era a mesma pessoa, mas não queria ver mais arma, pois muitas armas, que o mundo está cheio delas, significam muitos tiros e muitas mortes. Relaciono arma a tudo de mal, incluindo o que me aconteceu, mesmo que elas sejam uma necessidade dos estados. Mas quero ressalvar que a minha experiência moçambicana é riquíssima, valiosa, com muitas lições positivas e negativas, úteis, mas muito mais ricas do que a vivência na Inglaterra, com informações de todo o mundo, com toda a liberdade, etc. Em Moçambique eu vi e vivi as dificuldades da África Austral, mesmo com as perdas físicas que sofri.
- Os mártires da liberdade dos sul-africanos, geração de que faz parte, avaliam o resultado da sua luta com o presente. Sentem, vocês, que o vosso país, hoje, é aquilo com que sonharam, por que lutaram?
- Nesse sentido de experiência minha sobre Moçambique era muito importante, porque quando eu voltei à África do Sul depois de 24 anos de exilado encontrei-me com muitos camaradas que se sentiram roubados... Eles estavam sempre à espera de uma revolução no sentido da que vocês tiveram aqui. Eu estava tão satisfeito porque em Moçambique havia uma revolução que foi brilhante, fantástica em muitos sentidos, embora com os problemas que surgiram depois. Houve tanta brutalidade, destruição, raiva em Moçambique. Eu achei que era muito melhor passar para a frente mais lentamente, menos radicalmente, mas mais seguramente. Em linhas gerais eu acho que nós conseguimos isso, embora não se possa falar de uma revolução de transformação total, igualdade para todos, etc., porque para nós não foi isso. Mas na África do Sul houve avanços muito reais, visíveis. Fizemos isso pacificamente, essencialmente. Através do diálogo, através de falar conseguimos integrar dois, três, quatro exércitos que estavam a lutar uns contra os outros, mas conseguimos juntá-los em um único exército. Conseguimos transformar – não escangalhar – mas, transformar as instituições do Estado sem criar desfuncionamento. Estamos num país em que as eleições acontecem de cinco em cinco anos e ninguém duvida, são livres e bem organizadas. O nosso Presidente sai depois de no máximo dirigir o país por 10 anos. Aqui é a mesma coisa. Mas, no continente africano isso não é automático. Temos uma imprensa muito aberta, muito forte, que não tem dificuldades em ser crítico, e até às vezes tem críticas muito fortes.
- Gil Filipe