Por Carlos Nuno Castel-Branco*
INTRODUÇÃO
Na semana passada, as Nações Unidas publicaram o Relatório anual de Desenvolvimento Humano (RDH) que contém o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Este índice pretende ser uma aproximação para a avaliação da qualidade de vida dos cidadãos em todos os Países onde a informação pode ser recolhida. Embora, naturalmente, inclua uma componente respeitante ao crescimento económico, o IDH expande a análise para incluir outros indicadores de qualidade de vida, como a educação e esperança de vida ao nascer. A publicação deste relatório teria passado despercebida se não fosse o facto de qualquer variação nos indicadores de qualidade de vida em Moçambique, por mais marginal e insignificante que seja, ser sempre um factor de confrontação política entre os que apregoam que a pobreza está a ser fragilizada e os que, ao contrário, argumentam que fragilizada está a luta contra a pobreza. Este pequeno artigo não vai tomar uma ou outra posição, mas vai comentar o debate para tentar contribuir para voltar a pôr o foco no essencial.
TERMOS DO DEBATE
Assim que foi publicado o RDH/IDH, os meios de comunicação social reagiram e tomaram-se no principal palco do debate. Isto é louvável porque mostra a vitalidade de uma comunicação social que sente o pulsar e os problemas do País. No entanto, os primeiros artigos focaram-se no facto de que Moçambique, na classificação mundial “baixou”, relativamente ao ano anterior, para 184º lugar. Alguma informação adicional foi fornecida, mas o foco era este facto de descida na classificação. As reacções não se fizeram esperar. Foi clarificado que Moçambique já era, e continua a ser, o quarto País a partir do fim da lista, e que a “descida” se deve ao aumento do número de Países contemplados no estudo. Foi questionada a informação utilizada pelo estudo das Nações Unidas por estar desactualizada: foi mesmo afirmado que se os dados usados não estivessem desactualizados, o IDH de Moçambique seria 0,325 em vez de 0,322, o que elevaria a classificação de Moçambique um par de lugares na tabela mundial. Mas se os dados eram desactualizados, talvez seja altura de o Governo e as instituições nacionais de estatística entenderem que é no interesse de todos garantir o acesso fácil e transparente à informação actual e desagregada, o que se está tornando cada vez mais difícil em Moçambique. Além disso, discutir se Moçambique deve ser o quarto ou o sexto do fim, se o nosso IDH deve ser 0,322 ou 0,325, é o mesmo que argumentar que alguém que morre afogado a 100 metros de profundidade tem uma qualidade de vida melhor que outro que se afogou a 150 metros de profundidade. Foi, ainda, questionada a metodologia, particularmente as mudanças metodológicas operadas desde o último RDH. E foi questionada a seriedade de Países em guerra e vivendo em caos social estarem acima de Moçambique no ranking mundial.
“Quão útil é este debate e o que é que ajuda a esclarecer?”, é a questão imediata que se deve colocar.
Pode ser que o debate tenha sido, e continue a ser útil, para esclarecer aspectos do IDH. Mas será que a clarificação do IDH é o problema central a resolver?
ÍNDICES E SEUS PROBLEMAS
Para todos os efeitos, um índice é uma tentativa de agregar num número uma complexa rede de fenómenos, dinâmicas e tendências, os quais são medidos por indicadores individuais por si já agregados.
Portanto, um índice é uma super agregação. Além disso, raramente os constituintes do índice podem ser medidos directamente, pelo que se usam aproximações que reflectem modelos e pressupostos. Os indicadores que compõem o índice já incluem factores de erro, quer por agregarem dados, quer por serem aproximações de fenómenos, dinâmicas e tendências não mensuráveis directamente. A agregação faz perder informação, enquanto a escolha de indicadores de aproximação do que não é directamente mensurável inclui uma grande dose de subjectividade.
É óbvio que os analistas tentam o seu melhor para que os índices que constroem reflictam o que querem analisar, mas eles não podem evitar as duas fontes mais óbvias de erro: a perda de informação e a subjectividade na selecção dos indicadores de aproximação (proxys, no jargão da profissão) na construção do índice.
Há um par de anos atrás, o African Economic Outlook (reputado relatório internacional produzido pelo Banco Africano de Desenvolvimento e pela OCDE) incluía um índice de estabilidade política em África.
Nesse índice, o Zimbabwe era o País Africano que mais progresso tinha feito na estabilização política da sociedade. Dado que “estabilidade política” não é directamente mensurável, a construção do índice incluía na análise factores como ausência ou não de greves, manifestações de rua, e outros factores normalmente associados com práticas normais e toleradas em sociedades minimamente democráticas. A mão de ferro do Presidente Mugabe na repressão de qualquer manifestação de oposição tinha, de acordo com o índice, tornado o Zimbabwe num País de rápida progressão no que diz respeito a estabilidade política.
Portanto, qualquer índice tem que ser lido, entendido e usado com cuidado. Índices são corrigidos com frequência porque as variáveis de aproximação (as proxys) têm que ser substituídas. Além de ser necessário entender como foi construído o índice, é preciso enquadrá-lo num contexto mais amplo. O índice é um número, e um número não pode fielmente retratar uma realidade complexa. O índice é um modelo teórico dessa realidade complexa, pelo que é subjectivo. Então, a melhor maneira de usar um índice é pô-lo no contexto de outra informação que é útil e faz sentido – se as tendências reveladas por esse conjunto de informação, incluindo o índice, são semelhantes, o índice confirma as tendências. Se as tendências são muitos diferentes, então o índice excita interesse.
INTERPRETAÇÕES RELEVANTES DO IDH PARA MOÇAMBIQUE
A relevância do último IDH não é se o seu valor é 0,322 ou 0,325, ou se Moçambique é o 184ª (de 187), ou se a maneira de medir saúde e educação mudou, ou que a informação mais actualizada teria melhorado o IDH marginalmente. Que Moçambique é um dos Países no Mundo com melhor progressão em termos de IDH também não é uma informação particularmente reveladora. Desde o fim da guerra, em 1992, o IDH para Moçambique melhorou substancialmente. Isso não deve ser surpreendente para ninguém – compara-se o índice de hoje com um 20 anos atrás quando se tinha atingido o auge da destruição da sociedade e de miserabilização dos moçambicanos, por causa da guerra. Surpreendente seria se em 20 anos não tivesse havido um progresso substancial. É importante saber que esse progresso existe, mas não isto não é particularmente revelador.
O que é revelado pelo índice que tem alguma relevância? Muito pouco, para além de dois factos.
Primeiro, o IDH de Moçambique continua a ser um dos piores do Mundo, o 4º pior entre 187 Países, apesar do progresso registado ao longo dos últimos 20 anos. Este facto pode indicar que é necessário intensificar o esforço de desenvolvimento. Segundo, a taxa de melhoria do IDH de Moçambique tem tendência de desacelerar (a melhoria continua, mas a ritmo mais lento) apesar de o IDH ainda ser muito baixo. Este facto pode revelar que intensificar o esforço de desenvolvimento não chega, mas é sobretudo preciso repensar que direcção o desenvolvimento está a tomar. Parecendo conclusões aproximadas, no entanto estamos em presença de problemas e tendências diferentes e conclusões analíticas potencialmente divergentes (acelerar ou reestruturar).
Mas o mais interessante é o que o IDH não revela. Primeiro, o IDH não capta desigualdade no progresso social. Por exemplo, em média, a esperança de vida ao nascer aumentou tal como expandiu o tempo em que crianças e jovens permanecem nas escolas. Mas o IDH não capta os desvios da média – o que é que acontece com os diferentes grupos de rendimento na sociedade. O mesmo se pode colocar em relação ao Produto Nacional Bruto (PNB) – o crescimento do PNB e do PNB per capita, mantendo o resto fixo, melhora o IDH. Mas o PNB per capita é apenas uma indicação média do rendimento que cada cidadão teria se o PNB fosse distribuído de forma perfeitamente igualitária. Portanto, o IDH não discute a distribuição real do rendimento. Em suma, não captando a diferenciação social, o IDH de facto não é uma boa aproximação para qualidade de vida.
Segundo, embora o PNB (que mede o valor acrescentado produzido por nacionais dentro e fora do País) seja uma medida mais aproximada da riqueza nacional do que o PIB (que mede o valor acrescentado gerado dentro do território nacional, mas que pode não ser por e para cidadãos/empresas nacionais), o crescimento do PNB não indica que tipo de economia está sendo gerada nem quem beneficia ou perde com esse tipo de economia. Quer dizer, o padrão de crescimento não é revelado. A entrada em funcionamento de uma mina de carvão pode provocar um rápido crescimento do PNB no momento de impacto (quando a exploração da mina se aproxima do seu ponto alto), mas isso não quer dizer que a economia como um todo e os cidadãos estejam a beneficiar da exploração. O crescimento do PNB diz pouco ou nada sobre produtividade, condições de trabalho, impactos ambientais, distribuição real do rendimento, emprego real e outros factores que são importantes determinantes da qualidade de vida, provavelmente mais importantes do que as taxas de crescimento. O mesmo se pode dizer sobre outras dinâmicas fundamentais da economia (o que está com os salários reais, com os rácios salário/trabalho, com os rácios importações/exportações, com a diversidade, amplitude e articulação da malha económica, etc.) – olhar para a taxa de crescimento do PNB ou do PNB per capita não nos diz nada sobre estas questões. Isto é, se o IDH não se pode pronunciar sobre os padrões económicos e a distribuição real de rendimento deles resultantes, então este índice não pode ser uma boa proxy para qualidade de vida humana.
Na mesma lógica de pensamento, a informação sobre os anos de escolaridade não diz nada sobre o que as pessoas de facto aprendem nas escolas. Todos sabemos quão má é a qualidade da educação em Moçambique, a todos os níveis. E sabemos que este problema está a piorar. Portanto, nem sequer é possível dizer que ficar mais anos na escola é melhor, do ponto de vista de educação, do que ficar menos, porque se a qualidade da educação estiver a piorar cada novo ano na escola adiciona menos e menos às capacidades e qualidades das pessoas. Se os estudantes não aprendem a ler e escrever, a pensar lógica e criticamente, a adquirir independência intelectual, a desenvolver a sua capacidade de aprender e de criar, se a escola não estimula o espírito crítico e a capacidade de questionar para reconstruir modos de pensar, então o que e que a escola ensina? Se apenas os filhos das classes médias e médias altas têm acesso a educação com alguma qualidade porque podem pagar ou ter acesso a bolsas para melhores escolas dentro e fora do País, então de que vale medir a média de anos de escolaridade? Não há dúvida que acesso à escola e ao centro de saúde melhorou muito substancialmente desde o fim da guerra. Mas acesso à escola e permanência na escola não significam automaticamente acesso a melhor educação. A qualidade da educação a que se tem acesso continua a variar substancialmente por região, por grupo social de rendimento, por período, género e grupo etário. Sem captar estes elementos de diferenciação o IDH diz pouco sobre o que vale o acesso à escola.
Terceiro, o IDH não menciona o acesso a comida e a bens e serviços básicos de consumo que são tão vitais para todos, mas especialmente vitais para os grupos mais pobres da população, isto é, para a maioria dos moçambicanos.
Quarto, o IDH não trata de outra questão vital – não permite revelar nem discutir o aparente paradoxo da economia nacional ter uma tendência de longo prazo de crescimento robusto, mas ser ineficaz a reduzir pobreza e dependência externa.
CONCLUSÃO
O que o IDH recentemente publicado diz sobre Moçambique não deve surpreender ninguém. O muito pouco que o IDH pode revelar está revelado por outros estudos: o inquérito aos agregados familiares, o inquérito agrícola e outros censos e estudos de caso sobre as dinâmicas e padrões de acumulação em Moçambique e as suas implicações para a pobreza e a dependência externa. O mais relevante desta série
de estudos não é revelado no IDH, nem pode ser a não ser que o índice seja completamente reconstruído.
Mas também não é preciso mais outro índice para revelar o que já sabemos.
Sobretudo, a questão mais importante para o debate e para as políticas públicas não é a discussão do índice, mas a discussão dos problemas que neste texto muito ao de leve foram tocados, pois são esses problemas (que o IDH não revela nem discute), e não a qualidade de qualquer que seja o índice, que têm relevância social para os cidadãos, o Estado e as empresas.
*[Boletim IDeIAS nº 40 (do IESE), 16 de Novembro de 2011]
SAVANA – 18.11.2011