Moçambique, Portugal e o comércio internacional de escravos
Alberto Joaquim Chissano, sua fundação e outros nada ou pouco mal sabem da escravatura, nem da história de Moçambique, em particular, e África, em geral. É de espantar como é que a Universidade do Minho lhe tenha fornecido um doutoramento, em vez duma bolsa de estudos.
A escravatura é uma consequência das guerras e só acabará, em todas as suas formas, com estas. Aos inimigos que não morriam nas guerras era-lhes concedida a vida como cativos, em troca de trabalho forçado. Os homens primitivos resolviam os seus conflitos e promoviam os seus interesses pelas guerras. A subespécie do homem de Neandertal extinguiu-se, em consequência das guerras que os nossos remotos antepassados lhe fizeram. Nesse aspecto, ainda somos todos primários, porque a forma civilizada de resolver conflitos, pela Lei, só data de Hamurabi e Moisés, estando ainda longe de ser uma política aplicada por todos os poderes deste globo. Frequentemente e na prática, só um único poder e um dos mais pequenos territorialmente, o Vaticano do Papa de Roma, se manifesta pelas soluções civilizadas dos conflitos e se opõe às guerras, por princípio.
Para discutir este assunto e não nos limitarmos a Moçambique, consultámos o Capítulo XVI da História da Guiné, 1418-1918 do doutor médico, que ali exerceu na luta contra a doença do sono e outras, João Barreto, Lisboa 1938, Edição do Autor, 454 p. Ainda não estudámos referências sobre Angola e Brasil. O doutor Barreto, médico e historiador escrupuloso, ajuda-nos a tirar algumas das conclusões, que vão a seguir.
(1) Escravo é da mesma raiz do que eslavo, porque os eslavos eram caçados, não só por romanos, mas também por francos e germanos, para serem seus trabalhadores. Os romanos tratavam os escravos com tais requintes de crueldade, que eles aderiram em massa à seita cristã e subverteram a religião romana, substituindo-a pela religião cristã. Que se saiba, os russos e outros eslavos, vítimas da escravatura praticada pelas potências ocidentais da antiguidade, ainda não exigiram compensações. Civilizaram-se e compreenderam que a riqueza resulta do trabalho, o que parece ainda não ser o caso de Alberto Joaquim Chissano e outros arautos pouco cultos ou / e muito interessados em tirar compensações da escravatura, depois dos seus antepassados directos ou indirectos terem realizado, há mais de século e meio, as respectivas transacções comerciais.
(2) As religiões judaico-cristãs reformaram e suavizaram a escravatura, que se foi extinguindo na Europa, durante a Idade Média, por obra da Igreja. Na Inglaterra, os escravos eram mais numerosos que os homens livres. Esta situação só começou a modificar-se entre os séculos IX e XI. No País de Gales havia escravos até ao século XV. Os árabes com a seita, depois religião, de Mafoma ou São Mamede, como é conhecido em Portugal, que serviu de ideologia aos comerciantes da Meca para obterem o controlo das rotas comerciais convergentes nessa cidade, desenvolveram o comércio, em primeiro lugar o de trabalhadores forçados ou cativos. Estes são dos primeiros a quem os nossos militantes moçambicanos deviam pedir compensações, se para tal tivessem idoneidade. A costa do Natal e do sul de Sofala foi chamada Cafraria pelos árabes de kafir, plural kufar, que significa pagão, descrente, pessoa que as leis religiosas autorizavam a escravizar. Os produtos que os comerciantes aqui resgatavam eram o trabalhador forçado e o marfim.
(3) O principal porto dos árabes na África Oriental, chama-se Zanj-bar, ou costa dos negros. O xeque Al-Sayis Abi Amran mandou ali construir uma mesquita aos 27 de Julho de 1107. Foi depois feitoria portuguesa durante dois séculos até 1698, sendo retomado pelos árabes omanitas, depois de Portugal ter abandonado esta e outras feitorias e fortalezas do Golfo Pérsico e do Oceano Índico, nomeadamente Mascate, capital de Omão. A escravatura era a principal actividade comercial da segunda capital em África do Sultanato de Omão e só acabou oficialmente em 1873 com o protectorado britânico, dando lugar à plantação de especiarias.
(4) Não sabemos se os árabes tratavam bem os escravos, respeitando a legislação religiosa. Porém, depois da independência em 1963, a revolução de 12 de Janeiro de 1964 dirigida pelo auto-apelidado marechal de campo John Okello, um ugandês que tinha feito um sonho profético, em que lhe pediam, que na sua qualidade de cristão fosse libertar os seus irmãos de Zanzibar, e recuperada pelo xeque Abeid Amani Karume depôs o sultão, resultando os ódios recalcados pelas classes populares contra as classes dirigentes em assassinatos e massacres de árabes, com centenas e milhares de vítimas durante o mês de Janeiro. Dos cinquenta mil árabes de Zanzibar, os que salvaram a vida, pouco mais de noventa por cento, retornaram à sua metrópole de Omão, onde foram os principais protagonistas do notável desenvolvimento social e económico do sultanato ou reino de Omão da península arábica.
(5) Os Ajauas de Moçambique e Tanzania foram subempreiteiros dos árabes de Zanzibar e também venderam escravos para as ilhas francesas do Oceano Índico, pelo porto de Moçambique. O comércio de escravos desenvolveu-se, no Oceano Índico muitos séculos antes de ter chegado Vasco da Gama a Inhambane e Quelimane. No Médio e Extremo Oriente, Portugal fez comércio de mercadorias mais bem cotadas, as especiarias. Em Moçambique interessou-se principalmente pelo ouro e outros metais. O efémero Estado Português da África Oriental com o seu próprio Vice-Rei teve por capital Sofala, que durante os séculos anteriores tinha sido porto do comércio do Império Chona do Monomotapa com o Oriente. O florescente comércio entre o Monomotapa e a Ásia foi organizado e dirigido pelos comerciantes e arquitectos judeus do grande Zimbauè.
(6) O comércio de escravos para a América era feito da África Ocidental até à sua abolição. Só depois disso foi praticado ilegalmente em Moçambique pelos árabes e outros traficantes. A comunidade macua do Natal dos Zulos deve a sua epopeia a esse comércio ilegal, mas os ritmos do sul de Moçambique foram para as ilhas francesas durante a época precedente. O ritmo punjante da marrabenta pulsa até hoje no ritmo suave da ségà das ilhas crioulas do Oceano Índico.
(7) Comparativamente a Angola, Moçambique pouco participou no comércio global da escravatura. Em condições de grande concorrência, o preço FOB da mercadoria humana não devia ser muito diferente nas costas ocidentais e orientais do continente africano. Para minimizar o preço CIF no destino, a exportação fazia-se das costas ocidentais para os mercados americanos e das costas orientais para os mercados asiáticos. Poucos escravos moçambicanos devem ter chegado às Américas. Só depois da subida de preço resultante da abolição pelas potências ocidentais é que se tornou competitivo para os traficantes virem comprar escravos a Moçambique e dobrar o Cabo das Tormentas, com todos os riscos inerentes, para levá-los para os mercados americanos.
(8) Porém, muito antes da chegada dos portugueses, a costa oriental de África forneceu escravos para o Próximo, Médio e Extremo Oriente. Além do Arquipélago das Mascarenhas, sangue moçambicano corre certamente nas veias das comunidades de origem africana das Índias, da comunidade de Karachi, que ainda fala suahili, dos descendentes de africanos do Sul do Iraque, da Turquia, etc. Para esses países os escravos foram levados, por mar, pelos comerciantes árabes de Zanzibar e, por terra, nas caravanas de dromadários dos comerciantes árabes e mouros da África do Norte e do Sudão, que atravessavam o deserto do Sahara de Oeste para Leste e de Sul para Norte. Os comerciantes portugueses levaram escravos de Moçambique para a Índia Portuguesa e para Ceilão. Nas Índias, onde a mão de obra era abundante e barata a importação de escravos africanos não atingiu grandes proporções, tratava-se de um produto de luxo nas condições económicas locais.
(9) Vários conflitos entre as autoridades de Moçambique e as autoridades da Macuana tinham por origem comerciantes portugueses ou moçambicanos, que julgavam que podiam submeter como escravos, comprar e vender cidadãos macuas. Os Macuas, em Moçambique e em Madagascar lutaram contra a escravatura, séculos antes de aparecerem os herdeiros do império vátua a governar Moçambique inteiro, sem agradecimentos a quem o deviam, os portugueses Mouzinho de Albuquerque e António Enes. Em vez de agradecimento mandaram apeá-los das suas estátuas à pressa. Não foram sérios e ainda prosseguem na sua infeliz ignorância do país que governam.
(10) As guerras da reconquista na Península Hispânica tinham incrementado a escravatura de ambos os lados e os escravos em Portugal estavam sujeitos a leis inspiradas nos códigos romanos. Só no século XVII, os alvarás de 23 de Março de 1621 e de 1 de Junho de 1641 proibiram a escravatura dos descendentes dos mouros, que vinha da reconquista cristã. (António Pedro de Carvalho, 1877, Ds Origens da Escravidão Moderna em Portugal, Lisboa, 59 p.) O comércio com a Mauritânia incluindo ouro em pó, peles e banha de elefantes do mar, assim como aquisição de escravos, primeiro por rapto à mão armada, depois, a partir de 1448, por troca comercial, pode ter enriquecido alguns comerciantes de Lagos, mas ficou longe de financiar os empreendimentos, inviáveis a curto prazo, do Infante Dom Henrique (e da Ordem de Cristo), cujo património acabou por ficar desfalcado. Durante a sua vida, chegaram 927 cativos azenagues da Mauritânia Meridional, pretos, pardos e brancos, a Portugal, que foram bem tratados e integrados na sociedade portuguesa (Gomes Eanes de Azurara, Crónica do Descobrimento e Conquista de Guiné, 1448, capítulos XXV e XXVI).
(11) As mercadorias para resgatar escravos na Guiné, entre o rio Sanaga, que separa os mouros brancos dos jalofos pretos, e a Serra Leoa, onde rugiam as trovoadas, eram trazidas de Portugal e produzidas em Cabo Verde, nomeadamente pano colorido de algodão, cavalos, açúcar, vinho, etc. A escravatura não beneficiou financeiramente Portugal, nem as suas colónias, que exportavam escravos. As finanças das capitanias de Cachéu, Bissau e Farim foram cronicamente deficitárias.
(12) As classes dirigentes dos reinos da costa da Guiné, nada investiram para o desenvolvimento e gastaram os rendimentos da venda de escravos na compra de mercadorias de luxo e ostentação, sem falar das armas, que as autoridades portuguesas proibiam de negociar, mas que eram fornecidas por operadores privados e outras potências. Estas classes dirigentes em nada se comportaram de maneira diferente das classes dirigentes dos outros reinos e regulados da África Ocidental, estudadas e caracterizadas com o termo de predadoras pelo Professor Ibrahima Thioub da Universidade Cheikh Anta Diop de Dacar, uma autoridade sobre a história da escravatura.
(13) O museu de Abomé, no actual Benim, está recheado de produtos de luxo, entre eles grandes vasos de porcelana de Portugal, que pertenceram a El Rei Behanzan do Dahomé. Este soberano manteve o seu exército permanentemente mobilizado contra os países vizinhos. Quando escasseavam soldados homens, mobilizou mulheres comandadas por generais do sexo feminino. Quando o seu exército já não conseguia raptar escravos em número suficiente, vendeu e exportou para a América e Brasil os seus próprios súbditos. Este é um dos tristes exemplos da incompetência das classes dirigentes africanas dos séculos dezoito e dezanove para desenvolverem os seus próprios países. Há muitos outros bem conhecidos.
(14) Moçambique já está em pleno século XXI e os moçambicanos têm o direito de exigirem dirigentes sérios, competentes e descomplexados a quem o Professor Ibrahima Thioub não possa chamar predadores, nem ninguém considerar aproveitadores do trabalho alheio. Os povos de Moçambique já participaram em várias eleições refeitas pelos programas informáticos nos computadores da comissão eleitoral central, sem ninguém ter mexido em nenhuma palha… Não querem ver em Moçambique os derramamentos de sangue e massacres das últimas eleições presidenciais do Quénia.
(15) A Igreja portuguesa em Cabo Verde e na Guiné (três frades da paróquia de Bissau, em 1700, apoiados pelo Bispo de Cabo Verde Dom Vitoriano do Porto) e a espanhola nas Antilhas (Bispo Bartolomeu de las Casas) combateram a escravatura e seus abusos. Admitiram-na, porque não a podiam mudar e daí tirarem partido para o catequismo e educação dos escravos, dando-lhes esperança e preparando-os para lutarem pela dignidade. Dom Valeriano do Porto, procurou proibir o embarque dos escravos para as Antilhas, antes de serem catequizados, durante seis meses. A Igreja manteve-se assim consequente com a sua história, fiel à sua doutrina e lançou sementes para as futuras gerações colherem. Foram pastores e padres cristãos, que estiveram nas primeiras linhas da luta contra o racismo e opressão, tanto na América, como em Angola e outros países. Só alguns são conhecidos, por terem perdido a vida e a liberdade e terem sido enviados para o exílio, a grande maioria trabalhou sem alardes.
(16) O país europeu que menos aproveitou a escravatura para o seu desenvolvimento económico foi Portugal e o que mais aproveitou foi a Inglaterra, que até enviou escravos irlandeses para colonizarem a Serra Leoa, seguida pela França, Holanda, Espanha e países escandinavos. No final do século XVIII, só na Inglaterra existiam mais de 14.000 escravos negros e a sua presença tornara-se banal (António Carreira, 1983, Notas sobre o tráfico português de escravos, segunda edição revista, Univ. Nova de Lisboa, Fac. de Ciências Sociais e Humanas, 108 p.). Os holandeses e ingleses compraram escravos não só na África, mas também na Ásia e trouxeram-nos para a província do Cabo na África do Sul.
(17) Já algum alto dirigente moçambicano foi pedir indemnizações nas universidades inglesas de Cambridge ou Oxford? Seria melhor negócio do que reclamá-las da pobre Universidade do Minho. Porque não vão lá os herdeiros do Império Vátua? Acham-se suficientemente compensados com as armas e bebidas alcoólicas fornecidas pelos seus aliados do século XIX?
(18) A ideia das compensações teve naturalmente origem nos Estados Unidos, mas foi combatida no continente africano pelo doutor médico Houphouet Boigny, que dissuadiu os seus estudantes idealistas de importarem mais essa moda americana, porque era uma vergonha, tendo os escravos sido vendidos pelos antepassados familiares deles próprios, sem proveito algum para o desenvolvimento social e económico da Costa do Marfim e porque, em contraste esclarecedor, descendentes de escravos eram altos dirigentes dos Estados Unidos, citando vários, entre eles o general Colin Luther Powell de ascendência jamaicana, que foi chefe do estado maior do exército mais poderoso do mundo.
(19) O Doutor Houphouet Boigny poderia também ter citado o maior poeta russo. O avô de Alexander Sergeyevich Pushkin (1799 - 1837) era um jovem escravo originário da bacia do Lago Chade ao Norte do Rio dos Camarões, que um embaixador russo comprou no mercado de escravos de Constantinopla e que o imperador da Rússia mandou fazer altos estudos militares em França.
(20) Mais perto de nós, se conhecesse, o Doutor Houphouet Boigny poderia também ter citado o maior orador e prosador da língua portuguesa, Padre António Vieira (Lisboa, 6.2.1608 - Baía 18.7.1697), cuja avó paterna era escrava preta do Alentejo. O Padre António Vieira da Companhia de Jesus, no Brasil e na Europa, já no século XVII, tinha dedicado a sua vida à defesa dos direitos humanos e da liberdade de pensamento e esforçou-se por combater as causas da decadência do Império Português.
Joaquim Alberto Chissano e os nossos militantes moçambicanos chegam bastante atrasados ao negócio das compensações, ficando fora de moda logo à entrada.
(21) A abolição do comércio internacional de escravos pela Inglaterra, como a guerra civil nos Estados Unidos, resultou do desenvolvimento do capitalismo, que frequentemente trouxe boas coisas a toda a humanidade, e da concorrência entre potências ocidentais. Portugal foi a primeira potência a juntar-se à Inglaterra, na primeira metade do século dezanove, para abolir gradualmente a escravatura.
(22) Em fins de 1857 foi apresado na costa de Moçambique um barco negreiro francês com o nome de “Charles et George”. Transportava escravos capturados em Moçambique, que foram libertados e enviados para as suas terras. O capitão negreiro foi julgado e condenado pelo Tribunal de Moçambique. Tendo o negreiro recorrido da sentença do Tribunal de Moçambique, foi levado com o seu barco para Lisboa, onde se devia apresentar no Supremo Tribunal. O Governo de Napoleão III não esperou pela sentença do Supremo Tribunal, apressou-se a exigir a libertação do negreiro francês e a entrega do seu barco. Mandou ancorar a frota do almirante Lavand, no Tejo em frente de Lisboa, para obrigar o governo português a ceder ao ultimato. Este ultimato é menos conhecido do que o ultimato inglês contra o mapa cor de rosa e ambos estão ligados a Moçambique.
(23) A escravatura existe ainda em países africanos e árabes. Assim, por exemplo, a Mauritânia, onde os portugueses foram iniciar essa actividade comercial há mais de cinco séculos, já aboliu a escravatura várias vezes depois da sua independência, no século XX. Outro exemplo é o da empresa pública maliana das salinas de Taudeni, que abriu falência, voltando os indígenas desse oásis a porem-se ao serviço dos seus patrões e donos mouros e tuaregues para poderem receber rancho e comercializar sal.
Marcelino Sithole
30.6.2012
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