Por Pedro Nacuo, em Pemba
Volta ao debate um tema que em Setembro de 1995 foi levantado na província de Nampula sobre se a integração de régulos ou de outros líderes tradicionais no poder institucional não seria mais um erro. Receava-se na altura que tal poderia não vir a resolver na globalidade a problemática em torno da participação das autoridades tradicionais no processo de democratização e descentralização, se bem que, tal como no período colonial, a ascensão ao cargo estava a ser feita por indicação e com alguma conveniência à mistura, razão porque poderiam não estar a representar a sociedade tradicional a que se dizem servir.
Uma pesquisa conduzida pela então Associação para o Desenvolvimento da Província de Nampula (ASSANA), com um envolvimento activo da Cooperação Técnica Alemã (GTZ), trazia ao de cima as condições em que, nos meados da década 60, a administração colonial colocou à frente de algumas regedorias, cipaios e outros homens da sua confiança, uma vez que os legítimos donos haviam sido presos pela PIDE, por suspeita de colaborarem com a FRELIMO.
Em 1995, logo depois de anunciado que se estava a preparar a base legal da integração da autoridade tradicional, tinham sido identificados pela referida pesquisa casos de gritantes de influências políticas na actuação e escolha de régulos, sendo que em alguns distritos, como foi o caso de Nacarôa (Nampula), haviam nas mesmas regiões uns da Renamo outros da Frelimo. A pesquisa avançava que poderíamos estar perante uma realidade em que o governo estaria a voltar a cometer um erro, tal como o fez quando foi para o desmantelamento das estruturas tradicionais, cujos efeitos estão a custar caro ao tecido social, impondo-se, logo a seguir à independência, a uma geração inteira a negação ao poder tradicional, e agora fazendo o mesmo em relação a uma outra geração, esta para desta feita aceitar o mesmo poder. Receava-se, por isso, que o retorno ao regulado pudesse vir a ser contra a vontade popular, devido a uma aparente pressão política por detrás da exagerada flexibilidade do executivo para tão intricado assunto de importância transcendente.
Cólera como o elo mais fraco
Em Cabo Delgado, a pouco e pouco está parecer certo que os problemas de desinformação à volta da cólera tem como base uma luta silenciosa entre líderes tradicionais ou régulos, que não concordaram com a indicação de determinadas figuras da região como representantes dos outros, pois houve erros aparentemente voluntários cometidos pelo processo, em função da conveniência, se bem que os procedimentos tradicionais que regem a indicação e/ou a sucessão não foram observados. Alguns deles não são reconhecidos pela população.
Namarrecua é uma aldeia, a cerca de 30 quilómetros a norte de Montepuez. O nome tornou-se manchete, por na noite do dia 30 de Dezembro passado, um grupo de seis homens ter ido acordar Luis Pedro, o régulo da zona, a quem espancaram, amarraram, levaram-no consigo até irem o matar e abandonar o seu corpo à porta da casa de banho da escola primária local.
Nascido em 6 de Agosto de 1962, na mesma aldeia, Luis Pedro foi legitimado régulo Caúla, no quadro do processo que teve lugar sob a batuta do Ministério da Administração Estatal, no meio de muitas desinteligências que hoje dão lugar a estranhos comportamentos de gente vivendo na mesma aldeia. Ele era acusado de ter trazido de Pemba comprimidos que, hipoteticamente, serviriam para disseminar a cólera, mas a acção foi antecedida por uma reunião nocturna de outros líderes, da ala que se acha dona legítima do poder tradicional na zona, incluindo a Rainha, Amissina Bulaimo.
Na verdade, em Namarrecua, com 1.979 habitantes, a divisão política e tradicional está fisicamente representada pela estrada Montepuez/Mirate, sendo que do lado direito vivem pessoas da Renamo e outros partidos da oposição e do outro lado, simpatizantes e membros do Partido Frelimo. Esta divisão corresponde igualmente à localização de quem reconhecia ou não a autoridade do régulo legitimado.
Luis Pedro não era consensual, assim como o actual chefe da aldeia, Arcanjo Binasse Salimo que diz, falando para jornalistas e quase a lacrimejar que “não sei como vou mandar nesta aldeia, até porque os que mataram o régulo, foram ouvidos a dizer que falta matar uma pessoa”. Teresa Constantino, esposa do régulo assassinado, assistiu o seu marido a ser levado sob todo horror possível e ouviu mensagens discriminatórias com base nas diferenças encimadas.
A cólera, que nem sequer atingiu a aldeia de Namarrecua, foi o elo mais fraco encontrado pelos seus contrários, principalmente porque acabava de regressar duma reunião em Pemba, orientada pelo governador provincial, Eliseu Machava, na qual os régulos e líderes tradicionais foram instruídos a lutar contra a desinformação, a ajudar o governo na sua tarefa de levar mais raparigas para a escola, combater as queimadas descontroladas, entre outras medidas, incluindo ao cumprimento da directiva “Cada líder uma floresta”.
Na opinião dos detractores do já finado régulo Luis Pedro (Caúla), não teria sido ele a ir àquele encontro, que teve lugar no dia 23 de Novembro passado, supostamente porque não os representava, se bem que a sua ascensão ao poder terá sido possível por ser conveniente e não pelos procedimentos tradicionalmente aceites.
Em Namarrecua todas as actividades são feitas conforme tais diferenças segundo confirmou-o Lúcia António, do departamento de Saúde Pública que trabalha na Direcção Provincial, que já esteve noutras ocasiões naquela aldeia, em campanhas de vacinação, nas quais encontrou muita renitência conforme seja, de pessoas apoiantes ou não duma das alas.
Em consequência do assassinato, até terça-feira passada, haviam sido recolhidos para as celas policiais, em Montepuez, 15 pessoas, sobre quem recai a suspeita de terem urdido o plano de eliminação física do régulo Luis Pedro, incluindo os supostos autores materiais do crime.
Lider detido em Ancuabe
No dia 30 de Novembro do ano passado um surto de diarreias e vómitos assolou a aldeia de Nacaca, distrito de Ancuabe, vizinho de Montepuez. Localiza-se no posto administrativo de Mesa, a poucos quilómetros da Escola Secundária de Mariri. A doença mata 11 pessoas e as autoridades sanitárias correm a socorrer a população, mas esta, tendo à testa um líder reconhecido, recusa a montagem de um Centro de Tratamento. As autoridades distritais, incluindo a quase totalidade do governo, por duas vezes vão a Nacaca pedir para a montagem da tenda para o tratamento dos doentes e encontram a mesma recusa.
Por detrás está o facto de que o régulo da zona, não é da mesma linhagem do líder e o chefe da Localidade, sediada na aldeia Campine, Luis Romão Muanga, tenta em vão resolver a contenda silenciosa, mas mortífera, como é no caso vertente, que parece não terminar.
O lider, Simão Auca, esteve na já referida reunião dirigida pelo governador provincial, onde foram dadas orientações contra a desinformação. Chegado a Campine e no fim duma missa na igreja católica local, pediu a palavra para acusar o chefe da aldeia e da Localidade de estarem por detrás da doença que já havia feito 11 mortos.
A mensagem pegou e foi sendo retransmitida para os que não estiveram na igreja, incluindo jovens que decidiram fazer uma campanha de desinformação, em barracas e outros locais de lazer e convívio. Simão Auca, mais dois jovens, Eusébio Luís e Pedro Mwito, estão detidos, ora na cadeia distrital de Ancuabe.
Campine e Nacaca, são separadas por cerca de cinco quilómetros, com palhotas relativamente maiores, ruas largas e muita criação de suínos. Na terça-feira passada, eram na verdade aldeias fantasmas, onde era difícil avistar vivalma e as poucas pessoas presentes denotavam um receio de falar com estranhos.
O medo reina naquelas aldeias, porque, apesar de muitas pessoas se terem recolhido às machambas, outras razões não justificam o facto de estarmos em plena campanha agrícola, mas sim, têm explicação no receio que há de serem associadas ao fenómeno que resultou da desinformação e consequente detenção do líder e os dois jovens.
Governo, vá as aldeias trabalhar!
A situação que se vive em algumas aldeias destes dois distritos, convida a presença permanente dos governantes, porque ficam muitas evidências de que a chamada autoridade tradicional, vista como o papel do régulo, não se acha forte, principalmente nos locais onde este não é da mesma linhagem dos restantes líderes de opinião.
A sensação com que ficamos nos locais por onde passamos é de que o trabalho que há por fazer não cabe apenas à saúde, cujos técnicos, agentes e activistas estão a corresponder ao momento. Sugere-se que seja conjunto, envolvendo também, as outras forças vivas da sociedade, incluindo políticas.
A saúde está a fazer muito nas aldeias ora com casos de doenças diarréicas ou cólera, e muitas pessoas foram salvas devido à pronta resposta que as autoridades deste sector deram, mas paralelamente deveria haver outro tipo de trabalho de consciencialização e divulgação das medidas já existentes, o que obrigaria a que o governo estivesse sempre presente para não se surpreender com situações de richas clânicas que explodem na sociedade, porque há muito que estavam incumbadas. Um estudo de ordem antropológico ou sociológico, recomenda-se, partindo do facto de que a desinformação contra a cólera tem lugar nos mesmos lugares, ano a ano, nas mesmas regiões do sul da província.
A luta silenciosa existente entre as partes leva à desmobilização parcial ou total em algumas aldeias, porque as populações não acreditam em quem não foi consensualmente escolhido, sendo que no conjunto dos novos régulos há, inclusive, jovens que são vistos como destoando todo o poder que era respeitado na história das relações tradicionais da sociedade.
Alguém comentava à nossa Reportagem, em que medida se poderia respeitar um régulo ou líder tradicional que depois duma cerimónia solene tira o fardamento para se ir meter em discotecas ou barracas, com os jovens, seus dirigidos, com os quais consome bebidas alcoólicas.
“A sociedade tem os seus líderes, que nem sempre coincidem com aqueles que foram legitimados. A própria palavra legitimação diz tudo. Só se legitima o que não é legítimo! A autoridade tradicional muitas vezes é envolta de muitos mitos, incluindo o feitiço. As pessoas devem ser temíveis e a transmissão do poder significa também a passagem desses mitos e feitiços de alguém que esteve no trono para outro, e ai não deveria entrar o governo” concluiu.
Numa aldeia vizinha de Namarracue, Chipembe, onde houve mortes por causa de doenças diarréicas, os responsáveis, incluindo os líderes tradicionais, abandonaram as populações depois que a doença eclodiu.
Um ancião, que esteve numa pequena reunião orientada pelo director provincial de Saúde, Mussa Ibraimo Hagy, perguntou se eram chefes aqueles que abandonam a sua população quando está aflita.
“Estiveram na reunião em Pemba, mas ainda não transmitiram o que ouviram e pelo contrário fogem-nos porque estamos doentes. E para ver, esta doença não atingiu ninguém do clã daqueles que dizem ser chefes. Não os queremos mais, que os tirem”!
Nota do Editor: Pedro Nacuo é jornalista do “Notícias”, baseado em Pemba. Com este artigo, ele galardoado com um dos Prêmios Saúde para Jornalistas, na sua 13ª Edição (2011), patrocinado pelo Ministério da Saúde, em parceria com o Sindicato Nacional de Jornalistas e a ONU
RM – 25.12.2011