CRÓNICA Por: Gento Roque Cheleca Jr., em Bruxelas
“O Estado não pode ser asilo dos corruptos e dos indisciplinados”. Samora Moisés Machel, primeiro Presidente de Moçambique
Por teimosia minha, quiçá acicatado pela premente necessidade de estabelecer uma história comparativa entre o desenvolvimento sul africano e moçambicano mormente em termos de via de acesso, desafiei o apelo feito por alguns amigos e familiares sobre a maçada que iria encontrar quando chegasse à fronteira de Ressano Garcia, decidi fazer o percurso de Joanesburgo a Maputo de autocarro.
Como não havia, naquele momento, em Joanesburgo, lugar nos autocarros das tradicionais companhias que fazem esse trajecto, um bom samaritano, moçambicano, vendo-me acagaçado, por minha culpa, minha grande culpa, aconselhou-me a apanhar os chamados “Chapa 100”, se realmente quisesse chegar a Maputo naquele mesmo dia, sem antes dar-me o seguinte aviso que recomendo:
“Sr. Chaleca, quando se está no meio de desconhecidos, a viajar, o melhor é aplicar e nunca vacilar a implacável regra da prisão. Ou seja, nunca dar sua biografia a ninguém, nunca dizer donde vem, o que faz, onde vai, enfim, o silêncio cabe em qualquer lugar. Ouviu bem Sr. Chaleca? Abrir a boca apenas para comer e beber pois nunca se sabe a verdadeira intenção do seu vizinho”. Como o seguro morreu de velho, por império desse adágio, só me restava cumprir a prescrição do meu altruísta.
Até à fronteira de Ressano Garcia a viagem corria sem sobressaltos, não fosse alguns funcionários públicos, nomeadamente das Alfândegas, da PRM e das FADM (nota curiosa é que todas estas forças migratórias ali estacionadas, por incrível que pareça, juraram defender os superiores interesses da República) que violam os procedimentos disciplinar acoplados no Estatuto Geral dos Funcionários do Estado.
De um total de vinte almas que aquela minúscula carrinha transportava, apenas o autor destas linhas, o motorista e sua esposa eram portadores de respectivos passaportes com validade dentro da normalidade, os restantes, não tinham passaportes em ordem ou tinham como único documento de identificação o “vil metal” como diria o meu amigo Afonso Almeida Brandão, de que utilizariam para subornar mormente os agentes alfandegários.
Cada passageiro, variava do sintoma ou da gravidade da irregularidade apresentada, entregava a outros prevaricadores da lei, mediante o escalão do funcionário (entre eles, pelo que percebi, existe uma casta de hierarquia cuja bandeira flutuante é a corrupção), entre 20, 50 a 100 randes, para facilitar a passagem do viajante em claro prejuízo da República.
A trapaça é feita de forma desavergonhada, sem qualquer tipo de remorso. Não se importaram sequer em tapar o rosto ou esconder a identificação cravada no uniforme (juro que se tivesse olhos de águia teria podido apresentar alguns nomes) pois podiam estar sob vigilância de alguma câmara oculta.
Por diversas vezes, enquanto procedia a tramitação do expediente burocrático migratório, a corrente eléctrica faltou, permitindo deste modo um espectáculo gratuito de anarquia e desordem total. Este cenário trouxe-me à memória a película de Nacala-Porto; em visita ao porto local em 2008, acompanhei casos idênticos de funcionários alfandegários que desligavam a corrente eléctrica para promover o contrabando, deixando, para o efeito, entrar ou sair mercadorias de forma corrupta e desonesta.
Outro dado curioso observado nos arredores da fronteira é o consumo exacerbado de bebidas alcoólicas e a prostituição. É terrível. Pode parecer um conto de fadas, também podia ser do cansaço por a fronteira estar a funcionar nesta época da quadra festiva 24 horas por dia, mas não, o semblante dos funcionários alfandegários, da PRM e dos militares das FADM, carregavam um cansaço etílico e um hálito (alcoólico) de afugentar os mais sensíveis ao odor.
Talvez por se tratar dum domingo, no poente, em locais estratégicos, os visados consumiam bebidas alcoólicas sem o mínimo de pudor e de respeito pela farda que vestiam. A consciência era equilibrada pela nicotina do álcool. Alguns metros dali, da cancela, uma “manada” de garotada em idades compreendidas entre os 15 a 40 anos promoviam o terrorismo sexual.
Os preços variam de acordo com o estado clínico da algibeira do freguês, ou seja, a cobrança é feita em função da gordura financeira de cada cliente. Por na altura estar indumentado com traje de inverno europeu, foi-me apresentado um cardápio de preços que não memorizei por questões meramente religiosas. Esta é, na minha opinião, uma das poucas vantagens que o Homem leva em relação à outros animais: a capacidade de absorver no estreito funil da sua consciência aquilo que ele quer, deseja ouvir ou memorizar.
Outra situação preocupante é a questão da agiotagem que é praticada às barbas das autoridades policiais. Não há lei na fronteira de Ressano Garcia. O “vil metal” é o combustível que faz movimentar aquele mundo – no interior de Moçambique – em estado avançado de decomposição moral, ético e profissional.
O terreno na fronteira de Ressano Garcia é fértil para a prática da corrupção.
E depois questionamos quando os serviços de secretaria das organizações nacionais e internacionais colocam o nosso país no pódio dos países mais corruptos do mundo, quanto a fronteira de Ressano Garcia a bandeira da República é invertida pelos apetites dos mais fortes e corruptos elementos das forças migratórias. Dizia o escritor Miguel de Sousa Tavares, "O grau de democracia de um país começa a medir-se na forma como [as pessoas] são tratados nas suas fronteiras: quanto maior a arrogância dos funcionários, mais falsa é a sua democracia."
Procurei denunciar a situação à hierarquia máxima, pedindo um livro de reclamações que não me foi apresentado.
Mesmo que eu o quisesse fazer por meio de uma ‘vuvuzela’, gritando bem alto que o Estado estava a ser vítima dos seus próprios agentes, era inútil, porque a agitação e a azáfama da clientela deixar-me-ia a pregar no deserto.
Tentei ligar para alguns directores e gestores das Alfândegas que conheço, e também para alguns generais do exército, indivíduos que respeito não somente pelo profissionalismo acentuado, mas também, e muito mais por isso, pela pureza de alma e de valores inabaláveis, em vão, porque a princesa mCel acabou fazendo das suas, dando-me boas-vindas à pátria com um “tututututu”, rede ocupada ou sem rede.
Enquanto insistia em ligar, o motorista do “chapa 100”, apercebendo-se da minha inútil ginástica, disse mais ou menos estas palavras:
“Sr. Chaleca, isto que o senhor vê é apenas uma ponta do iceberg. Venha cá no meio de semana, verá que a arruaça é maior. Aconselho-o Sr. Chaleca a cumprir às recomendações do moçambicano que o trouxe a este carro. Bico calado, entendeu bem, bico calado, ok? Vossemecê pode terminar a sua viagem aqui mesmo se quiser questionar a legalidade dos procedimentos desta selva. Fique tranquilo para que a sua família não fique órfão de um ente querido saudoso”.
De facto , APRENDI NA FORMATURA DA VIDA QUE NÃO SE PODE LUTAR CONTRA O MOINHO. MAS TAMBÉM APRENDI, QUER COM O SAUDOSO DR. DAVID ALONI E AGORA COM O DR. MARCOLINO MOCO, A NÃO VERGAR-SE PERANTE ÀS INJUSTIÇAS QUE LOCUPLETAM OS NOSSOS OLHOS E ENVERGONHAM À NOSSA CONSCIÊNCIA. A REPÚBLICA ESTÁ EM PRIMEIRO LUGAR.
Porém, para que não incorra no erro de generalizar, defeito imperdoável de alguns escribas (isto significa que um erro praticado apenas uma vez e por um grupo de funcionários desonestos não define o carácter da maioria ou de quem os represente; o acidental não é regra), reconheço, portanto, que também há, na fronteira de Ressano Garcia, entre os agentes lá colocados, gente honesta que conhece, de facto, o verdadeiro sentido da palavra remorso.
O remorso, senhores leitores, é uma virtude que quando cai no regaço de um funcionário infractor virtuoso, este perde sono reparador e rebelar-se face ao mal cometido.
Esta crónica é a minha revolta por aquilo que vi acontecer no passado domingo do dia 11 de Dezembro do corrente ano, na fronteira entre o bem e o mal, em Ressano Garcia, por volta das 21h.
“ Kochikuro ” ( Obrigado )
PS: Em Maputo mantém-se estacionário o velho problema dos transportes públicos. Não sei com que políticas concretas o governo espera ultrapassar este problema, o certo porém é que todo o esforço neste sentido envergonha o executivo em geral e o ministro do pelouro em particular. (x)
WAMPHULA FAX- 20.12.2011