Numa entrevista concedida ao SAVANA, o académico Severino Ngoenha reescreve, 11 anos depois do seu lançamento, a história da Agenda 2025, e afirma que não foi Joaquim Chissano, nem o seu governo, quem idealizou o projecto. “Quando estava na Suíça, vinha a Moçambique e convidei um grupo de pessoas, nomeadamente Elísio Macamo, Luís de Brito, Filimone Meigos, Eduardo Sitoe e José Castiano; e encontrávamo-nos, uma vez por semana, cada um com o seu café, num do hotéis da capital; e começamos a pensar em torno de perspectivas; foi assim que nasceu a Agenda 2025”. Outrossim: “Nos nossos encontros, a situação ficou muito conturbada, porque o Governo ficou preocupado e fez-nos perguntas: “o que vocês querem, aqui? O que estão a fazer, aqui? Porque se encontram lá? O que discutem lá?”, revela o académico. Na mesma entrevista, Nguenha fala-nos da sua vida académica, sobretudo do curso de mestrado em Filosofia dos Direitos Humanos, a ser introduzido no próximo ano pela Universidade de São Tomás de Moçambique (USTM). Este foi o pretexto para a nossa conversa.
SAVANA: Alguns cientistas sociais e juristas têm levantado debates e escritos, ainda que incipientes, sobre direitos humanos em Moçambique. Então, em que a filosofia (o filósofo) pode contribuir para o debate sobre direitos humanos no País?
Ngoenha: Para além de ser filósofo e professor, sou, há um ano, director de pós-graduação da Universidade São Tomás de Moçambique (USTM). Esta universidade tem um mestrado em Filosofia. A minha proposta é trabalhar, juntamente com um colega que vamos chamá-lo brevemente, para a transformação do actual mestrado em filosofia num mestrado em filosofia de direitos humanos, no sentido de lhe dar um cunho muito específico e uma particularidade moçambicana.
Que propostas de debate serão trazidas pela USTM?
Reivindicar direitos culturais...
Olha, uma vez que o Ocidente via o mundo a partir dos seus próprios olhos, os outros quadrantes do mundo, particularmente o continente africano, começa a reivindicar direitos culturais. Para mim, como filósofo, reivindicar direitos culturais significa incentivar a necessidade de se tomar em conta as particularidades humanas e culturais no debate sobre direitos humanos. Aliás, a Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos tem em conta particularidades culturais africanas, que não são tomadas em conta na Declaração Universal dos Direitos Humanos... O grande perigo que os africanos evitaram, através da sua Carta, é o universalismo etnocêntrico (ocidental) que se impõe ao mundo. Estes temas, certamente, farão parte dos nossos debates académicos e intelectuais na USTM.
Como começarmos a produzir conhecimentos em direitos humanos a partir de nós e para nós, em meio à dependência financeira externa?
É uma situação complicada, justamente por sermos um país com forte dependência. Mesmo as nossas lucubrações intelectuais e agendas científicas são intrinsecamente ligadas e dependentes da vontade do outro. Mas, ao mesmo tempo, temos que encontrar pequenos espaços para aproveitar as margens que os países financiadores e ONGs nos deixam para avançar com um debate útil, atinente aos nossos próprios interesses. Entretanto, é necessário que lembremos que direitos humanos podem ser duas coisas. Primeiro: os direitos humanos podem ser estratégia neocolonial para nos impor vontades e até para fazer intervenções externas. É visível isso através da intervenção do Ocidente. Recentemente, a intervenção ocidental sobre a Líbia ou Tunísia, em nome de direitos humanos; e não interveio na Síria, porque não há petróleo. Há uma estratégia neocolonial que é um facto.
Segundo: há um despertar de mais jovens sobre direitos humanos. Esta consciência está a crescer e vai dinamizando o debate de ideias em direitos humanos, mesmo que não haja autonomia financeira. O futuro do debate sobre direitos humanos em Moçambique pode vir, sim, a frutificar, porque começa a existir uma percepção de que os valores de direitos humanos ultrapassam as agendas hegemónicas do Ocidente e as nossas culturas.
Como debater a poligamia, dentro dos direitos culturais (particularismos), sem combater os direitos humanos (universalismo)?
Primeiro aspecto: existem pensadores, como o italiano Gianni Vattimo e o português Boaventura de Sousa Santos, que propõem a reabilitação de espaços culturais que foram completamente destruídos pela hegemonia ocidental, cujo resultado é pertencer à periferia. O problema dos direitos humanos é saber o que é direito humano e qual é a relação que estes direitos humanos têm que ter em relação às culturas. Se você disser que cada ser humano (homem e mulher) tem certo nível de dignidade, respeitabilidade, direito à escolha, direito à vida livre, direito à auto-afirmação, direito à educação (mandamos as crianças para a escola sem distinção entre rapazes e raparigas), como admitir, ao mesmo tempo, que um homem tenha três esposas, o que é inconcebível num mundo no qual vivemos.
Segundo aspecto: temos de fazer distinção entre o que é cultural, de um lado, e, histórico-cultural, de outro. (...) Ainda esta manhã, conversava com alguém que dizia você (S. Ngoenha) só olha o sul de Moçambique (Maputo, Gaza e Inhambane)... Nós fomos a parte da África em que primeiro deu escravos e, por último, deu escravos. Depois tivemos trabalhos forçados, numa altura em que os homens do sul, fugiam dos trabalhos forçados, como o xibalo, em virtude da colonização portuguesa para as minas da África do Sul, onde ganhavam algum dinheiro. Então, você (Ngoenha) estava numa zona onde havia escassez de homens, o que favorecia o aparecimento da poligamia. O que era um aspecto histórico (poligamia), até deplorável à nossa situação, tornou-se um aspecto cultural.
Quer dizer que a poligamia não nos é tradicional, no sentido milenar?
A poligamia é alguma coisa que apareceu num percurso histórico-cultural. Os antropólogos e historiadores explicam-na de maneira diferente. Tentar fazer da poligamia um imperativo categórico quase kantiano (Emmanuel Kant) que faça de nós polígamos, em essência, é contraproducente. Posso tentar lembrar aqui o Islão: Maomé diz, pelo Alcorão, que o máximo de mulheres que um homem pode ter são quatro, porque isso era prático naquelas condições culturais. Mas, o mesmo nunca disse que o homem vai ficar sempre com quatro mulheres. Porém, pode-se imaginar que com a evolução dos costumes, educação, direitos das mulheres e participação pública foi se percebendo que é possível inverter a cultura da poligamia... Assim, não podemos usar os direitos humanos como justificação das nossas bizarrias culturais, como é o caso da poligamia. A cultura deve ser capaz de interrogar os direitos humanos e os direitos humanos devem interrogar a cultura. Os direitos humanos devem ser capazes de dialogar constantemente com as particularidades culturais divergentes, para que eles (direitos humanos) não sejam um prolongamento de direitos ocidentais.
Dentro desse argumento, qual é avaliação que faz da poligamia de Jacob Zuma, sendo o mais alto magistrado da África do Sul, país com altos índices de HIV/SIDA?
O Presidente Jacob Zuma comete bizarrice, por ser polígamo. No mundo em que vivemos e nas condições históricas e sociais nas quais nos encontramos, a justificação de um Presidente que mantém três esposas, invocando tradições quando lhe convém, deve ser completamente condenada. Não se trata de dignidade de Zuma ou da África do Sul ou da África no seu todo, mas sim das mulheres que as possui. Se ele aceitar que cada uma delas possa ter três homens, então, não há problemas, porque, no mínimo, estabelece o critério de igualdade. Mas que igualdade queremos numa sociedade que diz “one man, one vote”, (ou seja um homem, um voto: dignidade igual. Parece que Zuma entra em contradição, na sua situação de mais alto magistrado da África do Sul, com implicações no seu juramento, ao prometer defender a Constituição, em sua investidura. Em linhas gerais, a poligamia do presidente Jacob Zuma fere direitos humanos.
Corrupção
Qual é o impacto da corrupção na implementação de direitos humanos?
(...) Moçambique tem muita corrupção. Mas, essa muita corrupção moçambicana nada é, se comparada com a corrupção da Itália de Silvio Berlusconi (ex-Primeiro-Minstro da Itália) ou com o Chicago de Gabriel Al Capone (gângster ítalo-americano, 1899-1947). A corrupção moçambicana é uma coisa ridícula...
Pensa que a corrupção moçambicana seja ridícula para a nossa realidade?
A nossa corrupção não tem a ver com a questão de direitos humanos. Tem a ver com o Direito, simplesmente. Um país deve ter leis e lutar para fazer aplicar essas leis. Um país deve ter ordem e fazer aplicar a ordem. Um país deve lutar contra o abuso e corrupção. Eu acho que a questão da corrupção, repito, tem a ver com o Direito, simplesmente.
Minha colocação tem a ver com a corrupção que desvia recursos para a implementação dos direitos básicos dos cidadãos moçambicanos....
Não acho que haja muito desvio para a implementação de direitos fundamentais. Eu acho que haja (como diz um meu amigo que ocupa lugar na hierarquia política moçambicana. Até foi ministro no último governo) o nascimento selvagem do capital. É o que aconteceu na Europa nos Séculos XVII e XVIII, onde a maneira selvagem de produzir dinheiro e riquezas fazia parte do social. Agora, sim, você pode falar de direitos humanos, porque para a produção selvagem de dinheiro e riquezas tem que passar pela cabeça de outras pessoas. E nessa altura o corrupto não respeita as outras pessoas. Nisso, posso lembrar a expressão francesa “laissez–faire, laissez-passer”(deixem as pessoas fazerem tal como escolheram, deixem passar as mercadorias), que, em Moçambique, traduziu-se com o chamado cabritismo -“o cabrito come onde está amarrado”
Até que ponto a expressão “o cabrito come onde está amarrado” influenciou a consciencialização pública para a corrupção?
Joaquim Chissano, quando assumia a Presidência da República, não foi feliz nessa expressão. Ele não foi feliz nisso, mesmo que não quisesse usar essa expressão. Não há mal algum em afirmar que o ex-presidente Chissano não foi feliz. Ele estava numa situação de abertura, onde tudo era proibido e tudo passou a ser permitido. Só que dizer que cada um se arranje e come onde estiver amarrado criou uma espécie de concorrência e luta desenfreada; e que ficaram sufocados aqueles sem capacidade de luta para o roubo. E, aqui, está, filosoficamente, a separação do contratualismo entre as teorias de Roussan (o Estado tem que reequilibrar as diferenças sociais) e de Locke (o Estado tem que proteger as propriedades e capacidades dos indivíduos)... Por isso, temos de perguntar se o Estado é um espaço de luta de uns contra todos ou um espaço de equilíbrio que permite que todos possam viver juntos.
SAVANA – 13.02.2012