2011: Ano Samora Machel
Tanto o homenageado como os promotores da homenagem são pessoas que viveram e vivem de falsidades. Nesta reflexão não nos propomos a inventar absolutamente nada. Propomo-nos, sim, é dizer o que outros temem em não dizer em público, porque entendemos que não basta afirmar que Samora Machel foi um ser humano como qualquer outro, e teve suas falhas, para de seguida se apontar apenas virtudes aparentemente positivas e não falha nenhuma. Os crimes de sangue que durante o seu reinado se cometeram em Moçambique não se trataram de simples falhas ou erros humanos quaisquer, como também se tenta reduzi-los. Foram crimes sérios, perpetrados, se não sob seu directo comando, no mínimo, sob sua cumplicidade.
Barnabé Lucas Ncomo
Em jeito de introdução começo por referir que durante os longos dias do ano passado os moçambicanos foram chamados a ouvir e a recordar a voz do homem a quem se atribui as mais nobres virtudes de combatente em prol do “bem-estar social” dos moçambicanos!
A Rádio oficial e a Televisão pública fizeram-se incansáveis trampolins da evocação da “heroicidade” desse homem em comemoração da passagem dos 25 anos do seu desaparecimento físico.
Ouviram-se vozes das gentes habituais da área da cultura; politica; académica, etc. Ouviram-se vozes de escritores, amigos, aconchegados e correligionários de Samora; todos, a enaltecerem a grandeza da sua figura, com uns a afirmarem que “Samora foi um grande homem” e outros, de forma sorrateira, admitindo que embora tal seja verdade (grande homem), “durante o seu reinado cometeu algumas falhas como qualquer humano os cometeria”.
Seguiram-se depois vários colóquios culturais; edificações e inaugurações por algumas cidades capitais do país das réplicas, em miniatura, da estátua gigante erguida na praça da independência em Maputo; etc., etc.
Ora, sem dúvidas, nenhuma mácula se veria nisso se tal homenagem não encerrasse alguma falsidade dos que a promoveram, e o próprio homenageado tivesse sido, em vida, uma pessoa coerente consigo mesmo, isto é, um político cujos actos fossem consentâneos com o seu próprio discurso público.
Tanto o homenageado como os promotores da homenagem são pessoas que viveram e vivem de falsidades.
Nesta reflexão não nos propomos a inventar absolutamente nada. Propomo-nos, sim, é dizer o que outros temem em não dizer em público, porque entendemos que não basta afirmar que Samora Machel foi um ser humano como qualquer outro, e teve suas falhas, para de seguida se apontar apenas virtudes aparentemente positivas e não falha nenhuma.
Samora: um homem diabólico e monstruoso
Não duvidamos que se Liengme fosse hoje chamado para caracterizar a figura de Samora Machel fá-lo-ia com o mesmo tom mordaz com que o fez em relação a Ngungunhane.
Diria Liengme que Samora foi um homem “diabólico e monstruoso”.
Pois, igualmente como Ngungunhane, o comportamento político de Samora era, todo ele, “falso, absurdo e cheio de duplicidade, o que tornava difícil conhecer os seus verdadeiros sentimentos”.
Se por um lado Samora era dotado duma enorme capacidade de retórica, por outro, é preciso afirmar que ele jamais usou tal capacidade em prol duma sociedade justa em Moçambique, onde todos pudessem se sentir livres e independentes.
Usou-a para estabelecer no país uma sociedade submissa à sua própria vontade, e, quanto muito, à vontade de homens como o Marcelino dos Santos e uns pouco mais.
Samora foi um homem que deturpou o conceito do próprio socialismo que dizia defender e a essência da independência nacional. Confundiu o seu egocentrismo com amor ao povo. Traiu a confiança de quem lhe pôs na direcção máxima da condução dos destinos dos moçambicanos.
E quem o pôs em tão alto posto pode ser “o povo” – indo pela linha populista da própria Frelimo – ou os seus camaradas do Comité Central da FRELIMO em Maio de 1970. Desde então, por vontade própria, Samora deixou-se transformar numa espéciev moçambicana de Adolfo Hitler, Josef Estaline, Muammar Kadhafi e outros ditadores que o mundo conheceu.
Samora foi uma espécie de “cão de guarda” que, uma vez ciente da nova condição social em que se encontrava, se pôs a aterrorizar o dono e a morder os filhos deste a ponto de todos acabarem por perder o seu controlo. Morreu ciente de que havia ido longe de mais. Muitos já não o queriam, pois ele é que era o obstáculo.
Aliás, di-lo ele próprio semanas antes da sua morte. Na verdade, pouco tempo depois da proclamação da independência nacional, a euforia que arrastava de forma voluntária multidões para ouvirem Samora e outros dirigentes da FRELIMO em comícios deixou, praticamente, de existir. A brutalidade então oculta nos “lindos discursos” do presidente cedo se revelaria a ponto de os métodos civilizados de mobilização de massas deixarem de ser eficazes.
O receio de não cair nas graças de quem mandava no país se instalou em cada esquina e na maioria das pessoas no país. Cedo, as pessoas se aperceberam de que, longe daquilo que o presidente falava em público, os seus actos e os actos dos seus representantes ao nível dos bairros, serviços e na rua, eram caracterizados por uma violência sem precedentes.
Em resposta a este mal-estar instalado pela força de armas por Samora, o povo respondeu, de inicio, com a única arma que possuía: a apatia.
Muitos cidadãos já não iam de forma voluntária para ouvir ou receber o Chefe do Estado nos aeroportos e estádios. A violência física; a desconfiança e a tortura psicológica por parte daqueles a quem se atribuíra a missão de chefia e administração da vida social nos bairros passaram a ser uma constante. Os Secretários dos Grupos Dinamizadores; a polícia secreta à paisana (SNASP), e até um simples indivíduo ostentando uma farda militar eram a lei e o terror de todos em nome da linha política representada superiormente por Samora Machel.
Nas cidades, o simples uso de uma saia curta ou o andar aos beijos com a namorada num banco de um jardim público já constituía um crime de “lesa pátria”. As pessoas eram arrastadas para quartéis ou esquadras da polícia para aí serem punidos, cavando buracos para absolutamente nada, e voltar a tapá-los, capinando ou lavando retretes sujas.
Tudo sob pretexto de terem sido apanhadas a “fazerem corrupção”.
Como se de crianças nas aldeias rurais em constante guerra aos passarinhos se tratasse, para além da indumentária que o identificava, em visita a familiares ou a namorada qualquer militar ou polícia saía fardado do quartel ou posto policial rigorosamente carregado de material de guerra, como se fosse a um assalto a uma base inimiga. Carregava consigo a sua inseparável AK47; um monte de cartucheiras de reserva abarrotadas de munições à volta da cintura, baionetas e granadas ofensivas.
Os que nunca na vida estiveram em teatros de operações militares, a maioria dos quais crianças em idade escolar nas cidades vilas e aldeias, passaram também a saber que existe uma arma de fogo chamada bazuca, pois há quem não se separava dela mesmo em visita a tia lá no subúrbio.
A inseparável bazuca tinha que estar pendurada a tiracolo, para simbolizar o poder! Na verdade, a situação no país de Samora transformou-se num constante policiamento a tudo e a todos, ao que a maioria foi respondendo com silêncios sepulcrais.
Como resposta a este clima de apatia que foi-se instalando pela força da violência física e psicológica, Samora e o seu governo responderam com um método mais draconiano de “mobilização de massas” para lhes ouvirem nos comícios: a obrigação.
Arregimentadas sob várias ameaças pelos Secretários dos Grupos Dinamizadores nas empresas, bairros e nas escolas, as multidões em audiência com Machel passaram a ser controladas como se de gado se tratasse. Descarregadas em autocarros e caminhões, as multidões dirigiam-se aos locais dos comícios sob olhares assustadores de elementos das Forças de Defesa e Segurança. À força, de baionetas e de fuzis, todos eram mantidos no interior do perímetro onde decorriam tais comícios sem que se lhes fosse permitido abandonar o recinto antes que o presidente ou o dirigente acabasse o seu discurso. Mesmo que um desarranjo intestinal o exigisse, o mais importante para Samora e seus correligionários era que se preservasse a ideia de que as pessoas estão a escutar o seu presidente ou dirigente, e estão muito contentes.
Nas sessões de fuzilamentos em público então protagonizados por pelotões das Forças de Defesa e Segurança, sempre sob o comando dum quadro destacado a partir dos escalões mais altos da direcção máxima do Partido/Estado, as pessoas não podiam manifestar nenhuma repulsa; virar as costas ou ir-se embora. Estavam sempre as “gloriosas” FPLM com as suas AK47 empurrando a assistência para presenciar o acto.
Aos olhos de um “garoto” nascido na década de 70 ou 80 o que acima se narra pode constituir um absurdo do tamanho do mundo. Jamais lhe pode passar pela cabeça que o enfeitar a Praça da Independência em Maputo com barracas como hoje se faz; o ir àquele local pular, conversar ou distrair-se com uma garrafinha de aguardente, água mineral, cerveja, chipses, ou galinha assada enquanto o Chefe do Estado ou o dirigente da Frelimo está na tribuna a discursar, constituía, noutros tempos, uma heresia susceptível de encaminhar todo mundo, inclusivamente o Presidente do Conselho Municipal de Maputo, a reeducações de que só se saia por força de graças divinas.
Samora: um ser humano especial
Se por um lado se pode olhar com alguma simpatia para a actual postura da Frelimo, de conduzir os destinos do país dentro de um “quadro de concórdia” ditado pelos novos tempos, por outro, a falta de coragem desse partido condenar o seu passado tenebroso vem reflectir o dilema com que se depara para a sua própria sobrevivência como força política a respeitar.
A Frelimo corre o risco de ter o mesmo fim que a da maioria dos partidos radicais da esquerda, ou direita, que existiram no mundo.
Dificilmente a Frelimo resistirá a uma democracia multipartidária em que não esteja ela própria no poder, tal como aconteceu com o NP de Pieter Botha que não sobreviveu aos novos ventos na África do Sul.
Confundir Samora com qualquer ser humano comum é uma forma bruta de desconversar. Samora não pode ser tido como tendo sido um ser humano qualquer, como se imagina.
Foi um ser humano especial, que tinha em suas mãos o destino de milhares, milhões de outros seres humanos. Só o facto de supor-se que era o garante da justiça numa época em que sob seu comando as autoridades governamentais neste país cometiam crimes de sangue faz dele também um réu especial, que deve ser tratado como tal, uma vez que cabiaba ele a nobre missão de fazer justiça a todos de igual modo. Não o fez.
Os crimes de sangue que durante o seu reinado se cometeram em Moçambique não se trataram de simplesbfalhas ou erros humanos quaisquer, como também se tenta reduzi-los.
Foram crimes sérios; perpetrados, se não sob seu directo comando, no mínimo, sob sua cumplicidade.
Quando se afirma aqui que não se trataram de simples falhas ou erros humanos quaisquer, queremos que o leitor entenda o absurdo de se confundir uma falha qualquer, como, por exemplo, o da concepção política ou económica de um Estado, com crimes de sangue nesse Estado.
Podem ser falhas humanas as concepções políticas ou económicas que não se concretizam por insustentabilidade da sua própria base conceptual ou por outras razões.
Tais espécies de falhas são susceptíveis de serem corrigidas por outras políticas económicas mais consentâneas com a realidade humana nesse Estado. O decidir, em consciência, matar outrem por não concordar com a nossa concepção política ou económica não pode ser tido como falha simplesmente porque a morte não se corrige. Alias, a serem entendidos os crimes de sangue como simples falhas ou erros humanos nenhum tribunal no mundo os condenaria, porque bastaria para isso que as defesas e os acusados nos tribunais alegassem que “foi uma falha” para que juízes, réus e familiares dos assassinados andassem aos beijos e abraços. Tudo na santa paz!
Samora e a legalidade (1)
A legalidade em Samora era um conceito tão ambíguo que tornava-se difícil alcançar o seu raciocínio. Samora tinha uma capacidade invulgar de fazer-se passar por inocente, tanto no que se refere aos crimes de sangue ou atrocidades que as Forças de Defesa e Segurança sob seu comando protagonizavam, como aos erros de concepção de políticas económicas que ele defendia. Sabia atribuir as culpas dos fracassos das suas políticas aos seus subordinados, aterrorizando-os em público e ameaçando-os.
Quem ousasse contrapô-lo no momento em que o diabo lhe comandava o cérebro corria sérios riscos. Era um ditador nato que só fazia com homens como Marcelino dos Santos (seu conselheiro-mor) e uns poucos mais dentro da Frelimo. A maioria dos seus subordinados directos estava farta dele e finge hoje que morre de saudades dele.
A chamada “Ofensiva Política Organizacional (OPO) ” por exemplo, que pôs meio mundo em pânico e levantou o cabelo a muitos ministros e directores em diversas instituições estatais na década de 80, é, disso, ilustrativo.
Dificilmente se pode perceber o que ia na cabeça de Samora quando entendeu durante algumas semanas ir assustando os seus subordinados nas instituições estatais. Não sabemos o que pensava Samora que um director da APIE devia fazer com o mobiliário que se removia das casas abandonadas, numa situação em que as ordens para qualquer acção vinham sempre de cima, isto é, do governo central por si dirigido.
Não estamos aqui a falar de mobiliário duma única casa apenas.
Estamos a falar de toneladas de mobiliário vindas de milhares de casas abandonadas, cujos proprietários, em fuga precipitada pela nova conjuntura política de 1974-75, ou pela justiça por injustiça de que resultou a acção decisória da então directiva 24-20 (abandonar o país em 24 horas com apenas 20kg de carga), viam-se forçados a deixar para trás. Não é preciso muito exercício mental para perceber o dilema que os diversos directores da APIE, o Ministro de pelouro e as Direcções das Obras públicas por todo o país tinham entre as mãos. Havia apenas uma única ordem superior sobre o destino a dar a tal mobiliário: alugá-la a quem alugasse uma casa a APIE e necessitasse dela. Essa medida estava clara.
O aluguer da mobília nacionalizada era, portanto, facultativo.
Uma vez que à maioria das pessoas que conquistaram o privilégio de viver na cidade cimento lhes bastava apenas o prazer e o conforto das paredes de alvenaria, ou de viver uns metros acima do solo, dispensaram então o aluguer do mobiliário, levando para os prédios as suas esteiras, pilões e o pouco que tinham lá no subúrbio. Disso resultou então a tal acumulação de mobiliário nos armazéns das APIEs por todo o país, que durante os anos que se seguiram a fuga de seus proprietários foi servindo de pasto para traças e baratas. É essa mobília que Samora foi então encontrar nos armazéns da APIE na sua famosa OPO, que viria a atiçar a sua ira contra os “infiltrados” e “inimigos do povo” à sua volta.
O ministro, director, ou seja lá quem fosse naquela instituição deparava-se com uma série de chatices: Uma vez que a melhor mobília havia sido encaminhada para rechear e enfeitar as casas dos responsáveis do Estado, nenhum outro responsável estava preocupado com o destino da tralha que restava nos armazéns. Se levasse alguma dessa mobília para sua casa corria o risco de ser acusado de ladrão e ser reeducado; Se a distribuísse atabalhoadamente por quem dela precisasse, tinha que encontrar um critério que ainda não havia sido estabelecido pelo centro do poder; Mesmo que por iniciativa própria procurasse distribuí-la pelos necessitados, corria o risco de ser acusado de nepotismo ou beneficiar pessoas que conhece, uma vez que todos os moçambicanos tinham direito ao conforto; A despeito de existirem algumas casas de leilões no país (a exemplo da Leilões Eusébio em Maputo), e alguns terem sugerido a venda a essas casas do mobiliário remanescente, não havia ordens para encaminhar nada a essas casas, pois havia o risco dos proprietários desses estabelecimentos comerciais se transformarem em capitalistas. E capitalistas eram o que os novos “donos” da terra não queriam; As soluções simples como vendê-las em hasta pública careciam também de ordens superiores que ainda “estavam por vir”, pois a matéria merecia um estudo profundo ao nível do partido para evitar que açambarcadores não se aproveitassem da “deixa” para enriquecerem. etc., etc.
Se da direcção da APIE não se via nenhuma autonomia de decisão para alguns casos como o do destino a dar ao mobiliário que sacudiu a ira de Machel durante a OPO, o mesmo se pode dizer do apodrecimento de alguns produtos agrícolas nas Machambas Estatais ou Machambas do Povo nos anos 80. Numa época em que a maioria das pessoas passava fome em Maputo e arredores, amanhecendo nas bichas à procura do mínimo para a sobrevivência, nas machambas estatais, em Matutuine e Goba, toneladas de batata-reno apodreciam por falta de políticas consentâneas com a realidade. Os que saiam de Maputo de comboio a procura desse produto em quantidades mínimas para o consumo doméstico não conseguiam absolutamente nada porque a sua distribuição carecia da chancela do poder central. A batata tinha que ser somente encaminhada para as Lojas do Povo. As Lojas do Povo não tinham o produto porque não tinham como comprá-lo; transportá-lo e mantê-lo em ambientes climáticos adequados.
O responsável da machamba, por sua vez, zeloso com a linha de distribuição e venda traçados superiormente pelo Centro do Poder em Maputo, para além de não ter como ensacar a batata e transporte suficiente para distribui-lo pelas diversas Lojas do Povo, só podia, quanto muito, tirar uns quilitos para consumo próprio (lá no local; não em sua casa – entenda-se).
Se pretendesse levar um saquito de 20 quilos para os seus filhos na cidade tinha que rezar todas ave-marias do mundo para não cruzar pelo caminho com a “vigilância popular”, que de AK47 em riste o encaminharia as autoridades sob acusação de desvio e açambarcamento de produto.
Não podia vender o produto aos singulares que a ele se dirigiam porque a ordem não era essa. E mesmo que a compaixão para com os famintos que lhe batiam à porta do gabinete o induzisse a vender alguns quilitos a partir do local de produção, corria o risco de se denunciar, uma vez que deparava-se com a dificuldade de controlo, facturação e contabilização dos pequenos valores monetários que amealharia, pois aos bancos só iam as receitas de vendas de carradas de sacos e sacos, e não de dois quilos ou cinco!
A soma disto tudo tinha como resultado o óbvio: toneladas de produtos agrícolas a apodrecerem nas próprias machambas. Era então isto que Samora depois pegava para berrar nos comícios, debitando as culpas aos ministros, directores e outros responsáveis, condenando-os tanto por ter cão, como por não tê-lo. Ninguém podia contrariá-lo nos seus momentos de êxtase. Para ele, a politica estabelecida era boa.
Outros é que não prestavam.
Seria redundante faláramos aqui de pessoas que viram as suas vidas destruídas por serem apanhados com alguns quilitos de qualquer coisa. Como camarão por exemplo.
Samora e a legalidade (2)
Samora Machel instituiu no país o que chamou de reeducação e permitiu que dezenas de centenas de concidadãos seus fossem reduzidos a farrapos humanos, e muitos deles mortos. Em discursos públicos atacava o que chamava de infiltrados no Ministério do Interior, que maltratavam o povo e não respeitavam as liberdades das pessoas. No travesti julgamento de Nachingwea o mesmo Samora havia afirmado que “respeitava os direitos humanos”. Em resposta a um jornalista que quis saber sobre o destino que reservava às centenas de presos políticos que apresentava no então Centro de Preparação Politico e Militar do então movimento, Samora respondeu que “não tinha coragem de matar nem a Simango, nem a ninguém.
A FRELIMO não é assassina”– afirmou. “Vamos reeducá-los para servirem de lição às gerações vindouras”. Dois anos mais tarde Simango e seus acompanhantes eram barbaramente assassinados sob euforia e danças macabras de seus assassinos. Cumpria-se assim o respeito pelos direitos humanos!
A dimensão das atrocidades cometidas nos Centros de Reeducação instituídos a mando do governo de Samora dificilmente pode penetrar no cérebro dum homem que cresceu num ambiente de democracia multipartidária, como os jovens de hoje. Seria o mesmo que exigir a quem nunca comeu uma maçã que nos descreva o sabor dessa fruta (falsa fruta – entenda-se). Mesmo que a pessoa imagine que seja saborosa, o seu cérebro e paladar jamais alcançam a essência do sabor que imagina, simplesmente porque nunca a comeu.
Para se ter uma ideia da violência instalada no que Samora apelidou de Campos de Reeducação importa fazer apelo à memória de alguns acontecimentos.
Desconhecem-se em detalhe os factos que encerram o processo da liquidação física de Simango e outros presos políticos no Centro de Reeducação de M´telela em Junho de 1977. Todavia, o ano de 1977 é tido como o do início oficial da limpeza dos “vestígios coloniais-fascistas”, como o próprio Samora não se cansava de afirmar.
Na sequência da chamada tentativa de golpe de estado de Nito Alves em Maio de 1977 em Angola, que culminou com o massacre de mais de 60.000 pessoas a maioria dos quais da “família” do próprio partido no poder, o MPLA, Samora havia enviado um seu falcão a Luanda para perceber a razão de todo aquele imbróglio sangrento.
A lição que do Atlântico se trouxe foi de que aos adversários políticos e suas famílias não se poupa a vida. Em Junho daquele ano agudizaram-se os assassinatos nos Centros de Reeducação em Moçambique.
A par da liquidação física de Simango e outros em M´telela, em diversos locais do país foram-se executando extrajudicialmente muitos prisioneiros. Uns, detidos durante o processo da descolonização; outros, que foram caindo nas mãos das novas autoridades policiais e militares do regime à medida que Samora ia consolidando o seu papel de líder máximo do Partido/Estado. Em Nambude, na província de Cabo-Delgado, caíam naquele ano vítimas de espancamento e maus tratos o então comandante do batalhão de Mocímboa
da Praia Joaquim Mandeio Muthamangue (Francisco Ndeio) e seu adjunto Pedro Canísio.
No mesmo ano, já no Centro de Reeducação de Ruarua ainda em Cabo-Delgado, era enterrado vivo Jorge Jovêncio, natural de Maputo; enforcado o Artur Catine, natural de Inhambane; espancados até a morte os irmãos Simwange, nomeadamente Kubangamwali e Chuka, naturais de Cabo-Delgado.
Igualmente, morriam naquele centro vítimas de espancamentos Saidi Mitava e Domingos Raposo, naturais de Cabo-Delgado e Beira respectivamente. Pouco tempo depois, era fuzilado naquele centro Luís João, natural de Maputo.
O maltrato e as matanças nos Centros de Reeducação continuaram por todo o país. Só viriam a amainar com o fim da vida do próprio Samora e o soprar dos novos ventos que conduziriam o país à democracia multipartidária que hoje vivemos, a despeito das condições de detenção em muitos desses Centros ter permanecido ainda desumana durante nos primeiros anos da administração de Joaquim Chissano.
Seria em Rauarua onde anos mais tarde, e já em jeito de sacudir o capote, Samora afirmaria ter “sentido palha no estômago” quando os prisioneiros (reeducados) lhe contaram as histórias de massacres e torturas naquele centro prisional. Na tentativa de encontrar culpados, Samora embirra-se contra os “infiltrados” e “agentes do inimigo” no seio das Forças de Defesa e Segurança.
Mas jamais levou nenhum “infiltrado à forca”. O dirigente “amado”, de todo o povo, vendia assim a ideia de um homem muito preocupado com o seu povo.
As vítimas, esses, continuaram a aturar os sorrisos matreiros dos esbirros que sempre os maltrataram.
O governador da província onde a maioria dos presos políticos foram massacrados foi promovido para outro cargo; os chefes da Contra Inteligência Militar e da Policia a quem cabia a responsabilidade de tratar os prisioneiros de forma humana nada lhes aconteceu. Com a excepção de um, que “se fuzilou” sozinho por remorsos depois de ter liderado o assassinato de Muthamangue e Canisio, a maioria dos chefes e guardas daqueles centros permaneceu nos seus postos, alguns dos quais promovidos a outras categorias. Afonso Henriques Monbola, então comandante do Centro de Reeducação de M´telela morreu de morte natural junto a sua família depois de ter sido promovido a um cargo de chefia na Brigada Operacional (BO) em Maputo! Esta, é apenas uma pequena ilustração do que Samora foi capaz de fazer, ou permitiu que se fizesse num país sob seu comando.
Não vamos aqui falar das circunstâncias do desaparecimento de pessoas como o Fernando Baptista, Jossias Dhlakama e muitos outros que ocorreram durante a vigência do reinado dele. Meia palavra basta.
(Barnabé Lucas Ncomo/ Canal de Moçambique
– Continua na próxima edição) – 21.02.2012
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